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A Corte Interamericana não nos salvará - Controle de convencionalidade e respeito à Convenção Americana

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Atualizado às 07:36

Nos últimos anos, livros, professores e concursos têm discutido bastante o controle de convencionalidade.

Em boa medida, o debate tem se prestado a introduzir a noção de um novo fundamento positivo da validade do ordenamento em matéria de direitos humanos, fundamento esse radicado, ou exclusivamente em normas de direito internacional, a Convenção Americana de Direitos Humanos, ou em uma mescla de direito nacional - a Constituição - e internacional - a Convenção.

Partindo da ideia da transposição das normas fundamentais de direitos humanos para o ordenamento internacional, a dogmática jurídica passou a buscar respostas sobre a melhor maneira de lidar com o alargamento do controle judicial dos atos estatais. Assim, a doutrina está a tratar de uma releitura daquele controle, tanto no que diz respeito ao padrão contra o qual será aferida a validade destes últimos, quanto no que concerne à autoridade investida da competência para o exercer.

Na sua versão mais radical, aquela em que a Convenção Americana substitui a Constituição como norma positiva de maior hierarquia, por força da própria Convenção a Corte Interamericana tomaria o lugar do Supremo Tribunal Federal para funcionar como maior autoridade judiciária.

O cenário não é substancialmente alterado quando se admite a concorrência das jurisdições interamericana e brasileira, com a prevalência da Convenção como norma básica positiva de direitos humanos. Preservar a autonomia do ordenamento jurídico nacional não faz desaparecer, nem o dever de conformação deste à regra maior, nem a sobreposição da Corte ao Supremo.

A discussão se revela, portanto, limitada por pressupostos normativistas, definindo problemas e propondo soluções de acordo com a lógica que toma o direito como a atribuição da autoridade para resolver sobre o significado abstrato das normas jurídicas. Aliás, a própria escolha do nome "controle de convencionalidade" é evidência dessa inclinação em direção a Kelsen, pois é remissão óbvia ao controle de constitucionalidade, calcado na validação hierarquizada da normatividade.

Essa aproximação é confortável, pois permite escapar de reflexões complicadas, próprias da filosofia do direito, e, melhor, já traz consigo o roteiro de solução reciclado da teoria da jurisdição constitucional. O que restaria discutir é puramente dogmático: adequações processuais e reformas de rito para facilitar o arranjo que, a depender da linha de pensamento, faz do judiciário brasileiro, ou submetido, ou integrado à jurisdição interamericana exercida pela Corte.

Contudo, a facilidade de compreensão proporcionada pelo emprego de conceitos com os quais todos já estão razoavelmente familiarizados cobra um preço que acredito ser alto demais.

A escolha, ainda que irrefletida, dos pressupostos que servem como ponto de partida para a discussão repercute no resultado. Assim, abordar a maneira acertada de entender a normatividade dos direitos humanos no Brasil pela perspectiva normativista, acaba por restringir o alcance do debate ao poder para dizer o conteúdo das normas-quadro (conceito que priva todas normas de qualquer conteúdo), o que não é, de modo algum, desejável.

Mesmo que se escape desses termos, ou seja, ainda que a identidade entre controle de constitucionalidade e controle de convencionalidade pudesse - e não pode - passar ao largo da compreensão das normas como meras molduras, há fortes razões para recusá-la.

Ninguém ignora que o judiciário, especialmente o Supremo Tribunal e os tribunais superiores, enfrenta enorme dificuldade para entender e aplicar as disposições da Convenção Americana. A bem da verdade, a dificuldade é muito mais ampla, alcançando a compreensão dos direitos humanos como um todo. São muitas as críticas a decisões pontuais e à jurisprudência consolidada sobre garantias dispostas para a proteção dos aspectos mais fundamentais da existência humana.

Quando tais garantias são dispostas pela Convenção Americana, a dificuldade do Supremo parece aumentar exponencialmente, o que explica a maior acidez dos comentários doutrinários. Dada essa impressão, que de forma alguma me parece equivocada, oferecer uma maneira de diminuir a força do Supremo Tribunal na construção dogmática dos direitos humanos soa como algo bastante positivo.

Mais do que entregar à Corte Interamericana o poder de se sobrepor ao Supremo, a principal vantagem estaria na vinculação formal deste à jurisprudência interamericana. Dificilmente, porém, disso decorreriam benefícios reais.

No que toca à submissão das decisões do Supremo Tribunal à jurisdição interamericana, apesar de não haver dúvida alguma quanto à sua admissibilidade quando satisfeitas as condições estabelecidas na Convenção, entre as quais o esgotamento dos recursos internos, nem por isso a Corte se tornaria instância superior à que se integra ou concatena o judiciário brasileiro.

A exigência do esgotamento não significa que a Corte estará limitada ao exame da decisão que resolveu o último recurso interno. Via de regra, porque há exceções, o esgotamento condiciona a inauguração da jurisdição interamericana que, inaugurada, permite a análise ampla sobre o desrespeito das disposições da Convenção pelo Estado e pelo ordenamento jurídico brasileiro.

O julgamento pela Corte não consistirá na reforma da decisão que esgotou os recursos internos - tanto que será perfeitamente possível que o resolvido sequer tangencie o decidido pelo Supremo. O acesso à jurisdição interamericana não tem as feições de um recurso, e eventual condenação consistirá no reconhecimento de violação da Convenção pelo Estado, e não de um erro procedimental ou de má interpretação do texto normativo pelo Supremo. E, ainda que se pudesse concatenar a Corte ao circuito judiciário brasileiro, faltaria combinar com a própria Corte que, dificilmente, se deixaria levar por aí.

Quanto à pretensão de vincular formalmente o Supremo à jurisprudência interamericana, não é a melhor meta a ser perseguida. Tal vinculação, que repete a intenção de reduzir o peso e a importância do Supremo para a afirmação dos direitos humanos, não enfrenta o verdadeiro problema da aplicação da Convenção no Brasil. Isso porque o Supremo e os tribunais superiores seriam interpostos entre a interpretação da Corte e a que se imporia como vinculante às instâncias ordinárias nacionais e, funcionando um e outros na posição de intermediários, certamente perpetuariam o status quo.

A tentativa de corrigir o desconhecimento ou a má interpretação da Convenção fazendo uso do instrumental que tem servido para perpetuar ambos os defeitos, é claramente uma ideia ruim. Melhor será que não se imponha o filtro vinculante do Supremo e dos tribunais superiores à aplicação e ao conhecimento dos parâmetros interamericanos por todos os juízes do Brasil.

Além disso, não há dúvida que o Supremo e os tribunais superiores merecem a reprovação que a doutrina lhes dirige, mas não são, de maneira alguma, os únicos responsáveis pelo persistente desrespeito aos direitos humanos no país. O judiciário - o Estado brasileiro por inteiro, aliás - é vacilante e omisso no enfrentamento das violações que são levadas ao seu conhecimento.

A incorporação da jurisprudência interamericana como parâmetro para a aferição do acerto das decisões sobre direitos humanos deve alcançar o judiciário diretamente em sua base. Apenas assim uma cultura de aplicação da Convenção, livremente desenvolvida, poderá influenciar positivamente a uniformização da jurisprudência pelos tribunais superiores e pelo Supremo.

A solução, portanto, não é forçar a aplicação dos parâmetros interamericanos pelo topo do judiciário fazendo usando das súmulas ou da repercussão geral, mas sim estimular que as instâncias ordinárias construam a dogmática judicial sobre direitos humanos levando em conta a jurisprudência da Comissão e da Corte Interamericana. A consolidação deve vir de baixo para cima.

O caminho é longo e não há atalho, mas o acerto do resultado depende que se percorra todo o trajeto.