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Diversidade nas procuradorias-Gerais de Estado e do Distrito Federal: A falta de dados como um dado em si

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Atualizado às 07:32

Foi lançado na última quarta-feira, 29 de novembro, o Panorama da Diversidade nas Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, em que se realizou um diagnóstico abrangente da força de trabalho da Advocacia Pública estadual brasileira. O trabalho teve por foco identificar questões relacionadas à diversidade e à equidade entre procuradores(as), servidores(as) e outros(as) colaboradores(as) habituais, como estagiários(as) de ensino médio, superior e pós-graduação e terceirizados(as).

As Procuradorias-Gerais de Estado1 constituem a advocacia pública estadual e são responsáveis pela representação judicial e pela consultoria jurídica dos estados-membros e de outros órgãos da administração pública do ente respectivo. A chefia do órgão incumbe a um(a) Procurador(a)-Geral nomeado(a) pelo(a) Governador(a), com status de Secretário(a) de Estado. Trata-se de instituição integrante da estrutura organizacional de todos os Estados e do Distrito Federal, com assento constitucional2 como função essencial à justiça.

Apesar da relevância da função, até pouco tempo não havia dados sobre a composição social das Procuradorias estaduais, sendo desconhecida a diversidade étnico-racial e de gênero em seus quadros.

A ausência de dados sobre a diversidade da composição do seu quadro é já um dado relevante: a detecção do problema é item essencial para corrigir a sub-representação de grupos sociais nas carreiras essenciais à justiça3. O problema ora posto é como conciliar, por um lado, a concepção constitucional da advocacia pública como função essencial à justiça, e, por outro, a evidência de que a experiência de acesso e de conhecimento do direito é um privilégio de poucas(os)4.

Vale contextualizar que a advocacia pública estadual, desde década de 1980, uniu-se no Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal (CONPEG), com a finalidade de articular e centralizar uma atuação jurídica dos Estados5. O objetivo principal desde a sua criação é o fortalecimento da federação, através da defesa da legalidade, da construção de políticas públicas conjuntas e de ações de interesse comum, num federalismo dialógico6.

Dentro desta ideia, foi criado em 2022, no âmbito do CONPEG, o Fórum Permanente de Equidade e Diversidade, formado por representantes de cada procuradoria-geral de estado, indicados(as) pelo(a) respectivo(a) Procurador(a)-Geral, no formato de grupo de trabalho com temática de igualdade material de gênero, raça, orientação sexual e pessoas com deficiência. A criação foi sugestão da Procuradora-Geral do Estado de São Paulo, Dra. Inês Coimbra, mulher declaradamente negra, que, depois de integrar o movimento "Elas na Procuradoria", percebeu a necessidade de se levantar dados e de discutir questões de gênero e raça dentro da advocacia pública estadual7.

O primeiro passo do grupo foi realizar um panorama diagnóstico socioinstitucional8. Isso porque sem qualquer parâmetro concreto da realidade social seria difícil propor qualquer mudança.  Com a pesquisa, tentou-se compreender quem são aqueles que compõem as procuradorias-gerais dos estados-membros da federação.

Essa pesquisa veio em um período em que havia forte pressão de juristas pela indicação de uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal9 na cadeira da Ministra Rosa Weber, aposentada em setembro deste ano. Infelizmente, não tivemos a indicação de uma mulher negra, nem mesmo de uma mulher branca. Mas não é só o Supremo Tribunal que carece de diversidade. Além de observar a composição da cúpula do Poder Judiciário, é necessário também verificar a composição de outros órgãos que compõem o sistema de justiça.

Na cúpula da advocacia pública estadual, dos 26 (vinte e sete) Estados e do Distrito Federal, existem apenas 7 (sete) mulheres no cargo de Procuradora-Geral do Estado10, o que representa 25,9% de todos que   ocupam o cargo11. Dito de outra forma, 74,1% das PGEs e da PGDF são chefiadas por homens.

A pesquisa foi iniciada com a expedição de ofício aos departamentos de recursos humanos de todas as Procuradorias em busca dos dados oficiais sobre a composição do órgão. Havia um objetivo ambicioso de realizar um censo de toda a advocacia pública brasileira. As respostas sobre dados raciais e de gênero dos Departamentos de Recursos Humanos, contudo, continham inconsistências internas que comprometeram a confiabilidade das informações. Ilustrativamente, uma das procuradorias informou que todo o seu quadro de pessoal era composto de pessoas autodeclaradas pardas.

Com essa dificuldade enfrentada, não foi possível verificar a composição racial dos procuradores e das procuradoras-gerais por meio de dados de autodeclaração nos recursos humanos de cada uma das Procuradorias.

O passo seguinte do diagnóstico de diversidade e equidade envolveu uma pesquisa dirigida a capturar experiências de todos(as) os(as) procuradores(as) do estado, servidores(as) e colaboradores(as) atuantes nas PGE's a partir do preenchimento voluntário do formulário elaborado e transmitido via Google Forms. O formulário foi voluntariamente preenchido por 5.381 profissionais atuantes nas PGE's brasileiras, equivalente a 36% do total dos quadros de pessoal.

No quadro de procuradores(as) houve 1.483 respostas, correspondendo a 27,56% dos(as) respondentes. Houve 2.407 respostas de servidores(as) efetivos e em comissão, correspondentes a 44,7% do total de respostas. Quanto a colaboradores - menores aprendizes, estagiários(as) de nível médio, superior e pós-graduação, residentes jurídicos(as), terceirizados(as) e demais vínculos empregatícios - foram 1.491 respostas, correspondo a 27,7% do total de respostas.

A análise que se segue faz um recorte nos dados relativos a gênero e raça de procuradores(as) e servidores(as).

No quadro de procuradores respondentes, 54,1% são homens cisgênero e 43,5% são mulheres cisgênero. Mulheres e homens transgêneros e pessoas não binárias somam 0,4%, 0,1% e 0,1% do total, com 6, 1 e 2 respondentes, respectivamente. Entre os(as) servidores(as), há 59,4% de mulheres cisgênero e 34,9% de homens cisgêneros. Mulheres e homens transgênero representam aproximadamente 1% cada. Somente 0,3% dos(as) servidores(as) participantes declararam-se como pessoas não binárias, enquanto 2,1% preferiram não declarar seu gênero.

Todos, homens e mulheres, foram questionados a respeito da percepção individual sobre equidade de gênero em sua procuradoria. Um percentual destacado afirmou "não ter certeza" sobre a existência, ou não, de equidade de gênero em sua PGE, ou preferiram não responder. Entre os(as) procuradores(as), 15,8% do total de respondentes disse não ter certeza. Entre os(as) servidores(as), 22,4% preferiram não responder. As pessoas que se manifestaram de maneira expressa sobre a equidade de gênero afirmaram em sua maioria que ela está presente - 59,6% e 58,7%, respectivamente.

Dado o alto índice de incerteza ou silêncio sobre o assunto, o relatório sugeriu a avaliação de cada PGE sobre a sensibilização do público-alvo sobre o tema da equidade, sobre a cultura organizacional e sobre iniciativas claras de gestão que promovam esta agenda.

A pesquisa contou com campo aberto para que os(as) respondentes informassem relatos e experiências sobre entraves para a equidade de gênero na respectiva Procuradoria. Ilustrativamente, as procuradoras gestantes respondentes da pesquisa relataram alguns episódios: "Um chefe já me falou que eu teria que combinar com outras mulheres do setor quando engravidar para não desfalcar o setor"; "A chefia feminina que me recebeu na PGE avisou para não engravidar durante o estágio"; "Já fui retirada de uma chefia por um chefe homem porque fiquei grávida". Entre as servidoras, destacam-se os relatos: "Afastamento por doença dos filhos não são bem-vistos e são objeto de comentários ruins de chefias e colegas"; "Eu assessorava uma procuradora, e quando eu fiquei grávida pela segunda vez, ela pediu pra me trocar porque eu iria faltar muito no serviço por conta dos meus filhos".

O formulário também buscou compreender, além de outros temas, a dificuldade de conciliar o cuidado de filhos com as oportunidades profissionais. Neste ponto, as procuradoras mães negam mais convites profissionais em razão da necessidade de cuidado dos filhos do que os pais, correspondendo ao percentual de 62% para mães e de 37,8% para os pais. No quadro de servidores(as), o percentual alcançado foi de 33% para as mães e de 20,3% para os pais.

A partir dos dados coletados, o relatório trouxe a parentalidade como o maior desafio no alcance da equidade de gênero. O resultado coincide com o estudo de Claudia Goldin, vencedora do Prêmio Nobel de Economia em 2023 pelo trabalho publicado no livro "Understanding the Gender Gap". A economista demonstrou como a desigualdade na distribuição das tarefas domésticas impacta na ascensão profissional das mulheres, sobretudo quando a mulher vira mãe.

Embora não haja disparidade salarial entre servidores(as) públicas que ocupem o mesmo cargo, a parentalidade impacta na ocupação de espaços de chefia, na ascensão profissional e na qualidade de vida no trabalho12, como é possível perceber dos dados da pesquisa quanto a negativa muito superior de procuradoras-mães e servidoras-mães em relação a convites profissionais.

Sobre os dados raciais, reitera-se a falta de dados provenientes dos Departamentos de Recursos Humanos. Por isso mesmo, os dados contidos no relatório - que ambicionava trazer um censo da advocacia pública brasileira - referiram-se somente aos dados autodeclarados pelos(as) respondentes.

Pois bem, a maior parte dos(as) procuradores(as) respondentes autodeclara-se branca, totalizando 82% do total. Há 13% que se declaram pardos e 2%, pretos e amarelos, cada um. Expressiva maioria dos(as) respondentes servidores(as) públicos(as) autodeclara-se branca, representando 62,2% do total, com 1.496 participantes. Pardos(as) somam 27,2%, pretos(as) 6%, amarelos(as) 3,2% e indígenas apenas 0,4%.

Segundo dados do PNAD2, em 2022, 42,8% da população brasileira era branca, 45,3%, parda e 10,6%, preta13. Dessa forma, vê-se que a distribuição étnico-racial da população difere significativamente do perfil dos membros da Advocacia Pública.

Questionados sobre o equilibro racial em sua Procuradoria, 61,2% dos(as) procuradores(as) acreditam que não existe equidade, em contraposição aos 26,4% que afirmaram existir tal equilíbrio e 12,4% que não têm certeza. No quadro de servidores(as), os percentuais são de 42,5%, 36,8% e 20,7%, respectivamente.

Quanto chefia imediata no órgão, 80,2% de procuradores(as) afirmaram que não possuíram chefia imediata negra durante seu período de trabalho no órgão e 19,8%, que já tiveram, enquanto 78,3% de servidores(as) afirmaram que não possuíram chefia imediata negra durante seu período de trabalho no órgão e 21,7%, que já tiveram. O percentual assemelha-se à autodeclaração dos(as) procuradores(as) respondentes, o que parece indicar que a ocupação de cargos de chefia por procuradores(as) negros(as) demanda, em primeiro lugar, o aumento quantitativo de pretos e pardos nos quadros das Procuradorias Estaduais e do Distrito Federal. Quanto aos(às) servidores(as), verifica-se claro branqueamento das funções de chefia.

É importante destacar os vários relatos discriminatórios. Destacam-se, em todos os cargos, falas que reposicionam os(as) respondentes em serviços de limpeza e de servidão, situações de racismo recreativo14 e comentários depreciativos com atributos físicos relacionados à negritude, como o cabelo natural.

Diante da lacuna dos departamentos de recursos humanos quanto a registros de gênero e raça, o relatório recomendou a atualização dos registros, uma vez que a ausência de dados confiáveis dificulta uma análise interseccional das respostas apuradas no formulário.

Apesar das dificuldades enfrentadas, o Fórum de Diversidade da advocacia pública estadual muito avançou com os dados divulgados e não pretende se limitar ao lançamento do panorama de diversidade, com dados obtidos por meio da pesquisa realizada. Foi apenas um primeiro passo.

Cada representante das PGEs deve realizar o diagnóstico específico de cada procuradoria-geral, de modo a verificar as particularidades de cada Estado e do DF. Além disso, já no início de 2024, o Fórum pretende realizar uma cartilha sugestiva com boas práticas na promoção da igualdade material, com o combate à discriminação e ao racismo estrutural.

O CONPEG começou a dar os primeiros passos necessários. Quanto mais diversa a advocacia pública estadual, mais justo e inclusivo o ambiente de trabalho, melhor será o serviço público prestado. Segundo Ângela Davis, "Você tem que agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você tem que fazer isso o tempo todo". Sigamos.

__________

1 Em Minas Gerais, tem-se a Advocacia Pública de Estado (AGE).

2 Art. 132, caput, da CF/88.

3 Bonelli, Maria da Gloria; Oliveira, Fabiana L. De. Mulheres Magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. NOVOS ESTUDOS CEBRAP (ONLINE), v. 39, p. 143-163, 2020.

4 LAURIS, Élida. "Para uma concepção pós-colonial do direito de acesso à justiça". Hendu - Revista Latino - Americana de Direitos Humanos, v. 6, n. 1, p. 525, 2015.

5 BATISTA JR, Onofre Alves. O federalismo na visão dos Estados - uma homenagem ao Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal - CONPEG - aos 30 anos de Constituição, fls. 10

6 PEREIRA, Viviane; VIANA, Ulisses. A advocacia pública interfederativa e a Câmara Técnica do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do DF. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Amazonas, Manaus, 2022, p. 25.

7 Disponível aqui. Acesso em 02 de dezembro de 2023.

8 WIZIACK, Júlio. Procuradorias-gerais preparam diagnóstico de diversidade racial. Disponível aqui. Acesso em 19 jul 2023.

9 GULARTE, Jenifer. Ministros e autoridades pressionam por mulher negra no STF, com aposentadoria de Rosa Weber. Informação disponível aqui. Acesso em 23 ago 2023.

10 Apenas Acre, Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e São Paulo, possuem Procuradoras-Gerais do Estado atualmente. Tais dados foram extraídos dos sites oficiais das PGEs de cada Estado no dia 10 de novembro de 2023.

11 Informações coletadas visualizando o site oficial de todas as Procuradorias-gerais de Estado, uma a uma, no dia 1º de agosto de 2023.

12 MIGUEL, Luís Felipe; BIROLI, Flávia. Práticas de gênero e carreiras políticas: vertentes explicativas. Revista Estudos Feministas, v. 18, n. 3, p. 653-679, 2010. Disponível aqui. Acesso em 16 jul 2023.

13 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) é uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em uma amostra de domicílios brasileiros. A pesquisa é feita em todas as regiões do Brasil.

14 Expressão trazida por Adilson Moreira na obra "Racismo Recreativo", da colegação "Femininos Plurais", referindo-se a uma forma de opressão racial através da circulação de imagens derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma do humor, fator que compromete o status cultural e o status material dos membros desses grupos. O autor explica que esse tipo de marginalização tem o mesmo objetivo de outras formas de racismo, qual seja, legitimar hierarquias raciais presentes na sociedade brasileira, de forma que oportunidades sociais permaneçam nas mãos de pessoas brancas. Destaca-se o uso do humor para expressar hostilidade racial, numa estratégia que perpetua o racismo, mas protege a imagem social das pessoas brancas.