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PEC's n. 45 e 34 de 2023: Tentativas de constitucionalização da guerra às drogas

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Atualizado às 08:05

Em resposta ao julgamento do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 635659, popularmente conhecido como "RE de drogas" - sobre esse tema já publicamos artigo nessa coluna -, parlamentares da Câmara e do Senado Federal se mobilizaram rapidamente para a coleta de assinaturas e apresentarem Propostas de Emenda à Constituição (PEC) que tratam da política de drogas.

Os dois textos (PEC 45/2023 no Senado e PEC 34/2023 na Câmara) dirigem seus esforços para a mesma direção: constitucionalizar a famigerada Guerra às drogas, o que significa aprofundar o proibicionismo e suas consequências nefastas no Brasil.

O texto propõe alteração do artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais do ser humano, para inclusão do inciso LXXX, que após tramite na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) sob a relatoria do Senador Efraim, teve o seguinte texto aprovado:

"LXXX - a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes ou drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre o traficante e o usuário, aplicáveis a este último, penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência".

Existe aqui a nítida e direta intenção de mencionar o texto do art. 28 da Lei de Drogas (11.343/2006), atualmente vigente. E, diga-se de passagem, não só vigente, mas também responsável pelo super-encarceramento de comerciantes varejistas de drogas, em sua maioria homens, negros, jovens e moradores das periferias brasileiras.

Já a PEC iniciada na Câmara Federal tem texto maior e mais perigoso, se avaliarmos seus possíveis desdobramentos práticos e suas consequências negativas para a defesa dos direitos humanos/garantias individuais.

No texto, propõe-se a alteração do artigo 3º da Constituição Federal, onde figuram os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, para inclusão de um novo inciso; "V - erradicar o tráfico, a produção, a posse, o porte, e o consumo de drogas ilícitas."  Além de inserir no art. 5 º o inciso LXXX, com a seguinte redação:

LXXX - é assegurado o direito à proteção contra os efeitos prejudiciais das drogas ilícitas, observados os seguintes princípios: a) é dever do Estado, com a colaboração da família e organizações da sociedade, tais como as comunidades terapêuticas, entidades da iniciativa privada e instituições religiosas, promover a prevenção ao consumo e o tratamento dos usuários, de forma a preservar a saúde, a segurança e o bemestar dos cidadãos; b) é dever do Estado promover a repressão ao tráfico, a produção, a posse e ao porte de drogas ilícitas, ainda que para consumo próprio, sendo vedada a descriminalização dessas condutas; c) é vedada a legalização, para fins recreativos, de quaisquer outras drogas entorpecentes e psicotrópicas que causem dependência física ou psíquica, além das já consideradas lícitas pelo ordenamento jurídico vigente;

 Esses delírios em forma PEC nos fizeram lembrar do artigo 49, parágrafo 2, letra e que consta na Convenção Única sobre Drogas (1961) da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabeleceu:

"A mastigação de folhas de coca será proibida dentro de 25 anos após a entrada em vigor da presente Convenção", isto é, pretendia-se que em 1986 este hábito milenar das culturas andinas fosse totalmente erradicado, em flagrante derespeito àquela cultura. O que obviamente não aconteceu e não acontecerá.

Aliás, a ONU mudou diametralmente seu entendimento sobre as maneiras mais efetivas para atuar nas políticas sobre drogas,em posicionamento conjunto de todas as agências da ONU sobre o tema publicado em 2018, uma das diretrizes de ação é: "promover alternativas ao encarceramento e punição em casos apropriados, incluindo a descriminalização da posse de drogas para consumo pessoal (.)".1

A despeito do acinte que são essas duas PEC's, destacamos a alínea "a" do trecho do texto da Câmara que atribui ao Estado, familiares e organizações da sociedade civil, com destaque para instituições religiosas o dever de promover a prevenção ao consumo e o tratamento dos usuários, de forma a preservar a saúde, a segurança e o bem-estar dos cidadãos". 

Neste caso, assombra-nos a ausência de qualquer referência ao Sistema Único de Saúde e seus serviços de prevenção, redução de danos e tratamento. Ao contrário, são mencionadas as comunidades terapêuticas, entidades geralmente religiosas onde violações graves de direitos humanos têm sido constatadas frequentemente.

Em breve análise sobre o aspecto jurídico e político da proposta, causa-nos temor a desfaçatez e o descaramento incutida neste texto, que ao fim e ao cabo, é nada mais que um cabo de guerra entre o Poder Legislativo Federal e o Supremo Tribunal Federal. De um lado o Congresso Nacional - aqueles que assinam a propositura das PEC's querem afirmam que o supremo invade sua competência ao decidir sobre a legalidade e quantidades do porte e posse substâncias entorpecentes para consumo pessoal e, de outro lado, o Supremo Federal afirmando que apenas cumpre seu papel ao apreciar a constitucionalidade de uma norma e sua adequação ao ordenamento jurídico. E o meio dessa guerra política egóica está a população mais atingida pela guerra às drogas e que, em sua, consequência figura como protagonista nas estáticas prisionais e de vítimas da letalidade policial.

Porém, nada mais aviltante do que propor a alteração dos artigos que sintetizam os fundamentos da República e os direitos e garantias fundamentais, cláusulas pétreas inspirados inclusive na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, para atribuir à guerra às drogas a alcunha de direitos fundamentais, ignorando deliberadamente o entendimento já firmado na literatura especializada quanto ao necessário caminho da saúde pública como base para uma política de drogas efetiva.

Além de serem propostas flagrantemente inconstitucionais, pois atentam contra a imutabilidade de cláusulas pétreas para redução de direitos e ampliação da repressão, é também atentatória ao princípio da juridicidade da norma, vez que não está em conformidade com os princípios formais do direito, da licitude e da legalidade.  

Em síntese, estas PECs, se aprovadas terão efeitos devastadores em relação a toda política pública que respeite os direitos humanos e que tenha vinculação com a realidade; na realidade, aprofundarão os resultados negativos atualmente vigentes na sociedade brasileira em relação às políticas sobre drogas.

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1 Disponível aqui. Acessado em 27.11.2023.