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Isso não pode acontecer aqui, embora já o esteja: o antissemitismo como um dos indícios da decadência do liberalismo político

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Atualizado às 08:27

It can't happen here - traduzido como "Isso não pode acontecer aqui" ou "Não vai acontecer aqui" em cada uma das duas edições brasileiras concorrentes lançadas no mesmo ano, 2017 - é classificado como um romance de sátira e distopia política. Publicado no entreguerras e escrito pelo já então laureado Nobel de Literatura Sinclair Lewis, o livro ganhou sucesso comercial imediato e entrou no repertório e imaginário da cultura popular americana.

Não é exagero afirmar que, assim como "Nada de novo no fronte", de Erich Maria Remarque, esse livro inaugurou o gênero de romances pacifistas. A criação de Lewis é a fonte inspiradora de uma miríade de obras literárias e audiovisuais que exploram cenários antiutópicos, tendo como pano de fundo o totalitarismo político ou religioso. 

Tampouco é excessivo comparar a trajetória do livro com a da obra "Brasil, país do futuro", do filósofo e polímata judeu-austríaco Stefan Zweig: a simples menção do título evoca uma tese rapidamente identificável, apropriada pelo discurso público e incorporada a ele, e referenciada de maneira direta ou indireta, tácita ou explícita, por outras obras com temas semelhantes.

Sem menoscabo aos demais autores que se debruçaram sobre o livro do qual se origina o título deste artigo, talvez as duas críticas mais famosas, tanto por causa da inspiração elevada quanto por causa do poder analítico, sejam a obra colaborativa editada pelo professor da Escola de Direito de Harvard, Cass Susteini, e o livro de autoria do CEO da Liga Antidifamação, Jonathan Greenblattii.

Sinclair Lewis descreve o percurso de Berzelius "Buzz" Windrip, senador pelo Partido Democrata, desde o nascedouro de sua ambição presidencial até a deposição de seu infame governo por um golpe interno e, em paralelo, a tentativa de a resistência liberal e democrática, expatriada, retomar o poder.

A narrativa começa em 1936, na prática, o penúltimo ano de duração do New Deal. O cenário é o de uma América do Norte em franca recuperação, que cumprirá, quatro anos depois, a meta de pleno retorno aos padrões macroeconômicos anteriores e da retomada da vitalidade pré-crise. Nada obstante os efeitos práticos e evidentes do New Deal, ocorreu que, em 1936 e, mais acentuadamente, a partir do ano seguinte, reclamações sobre a elevação da dívida pelo aumento dos gastos públicos, das renúncias fiscais e do assistencialismo fizeram com que o Acordo perdesse velocidade, embora não a benignidade de seus efeitos acumulados.

Em comparação com a conjuntura de partida do New Deal, contudo, o panorama não era o de uma generalizada comoção ou crise social, da qual, rezam os manuais, costumeiramente nascem os líderes demagogos e autoritários que, explorando forças profundas psicossociaisiii, engajam multidões em sonhos megalomaníacos e revanchistas como subterfúgio para realizar os próprios desígnios iv. Havia, naquele momento, em 1936, uma relativa estabilidade social, que, no entanto, seja como for, serviu de passagem para a exploração política na forma de uma pauta moral.

Essa agenda de costumes, no ano em que a ficção se descortina, consiste, justamente, no desejo temporariamente acomodado, contudo jamais debelado, de eliminação do "outro"v do espaço público. Roosevelt, tentando lidar com o racismo e o machismo enraizados, constrói uma coalizão de sindicatos com a participação de mulheres, afro-americanos e outros grupos étnicos. Tenta avançar proposições no plano legislativo, mas o receio de ruptura da frágil coligação política do governo adia esse momentovi. Na visão de alguns grupos políticos conservadores, já haviam sido feitas concessões demasiadas.

Quanto à plataforma presidencial do personagem Buzz Windrip, chamada "Os Quinze Pontos da Vitória dos Esquecidos", 9 referem-se diretamente à exclusão e ao sufocamento de minorias nos espaços públicos, seja na economia ou na política; 4 abordam os judeus como os principais atores ou promotores dos pretensos males a serem combatidos (como a liberdade do sistema financeiro); 2 falam diretamente dos judeus como um problema, seja pela profissão de sua fé, seja por sua participação indesejada no espaço púbico, para o qual estariam habilitados apenas mediante o pagamento do dobro dos tributos e das taxas devidos pelo cidadão comum; 1 menciona a exclusão do negro; e 1 a exclusão da mulher.

O nono dos infames Quinze Pontos é, de todos, o mais categórico:

"Criticamos veementemente a atitude anticristã de certas nações em tudo mais progressistas na sua discriminação contra os judeus, que já deram provas de estar entre os mais ativos apoiadores da Liga, e que continuarão a prosperar e a ser reconhecidos como plenamente americanizados, embora apenas na medida em que sigam apoiando nossos ideais."

O progressismo e o vanguardismo tinham como um de seus corolários a discriminação contra os judeus, e, no contexto dos Quinze Pontos, do judaísmo. 

O que permitiu a realização do projeto de poder de Buzz Windrip, a morte da democracia liberal e do republicanismo nos Estados Unidos e a retração dos direitos civis foi traduzido na fala do personagem Doremus Jessup, jornalista que representa a consciência moral na narrativa de Sinclair Lewis: "[...] não existe país no mundo capaz de ser mais histérico - sim, ou mais obsequioso! - do que os Estados Unidos da América."

O paradigma americano do livre mercado de ideias2 é um terreno propício para os discursos de ódio, a intolerância e o racismo. E propício para o fascismo, situado à direita, quando se serve de prédicas morais contra estas que são as fissuras estruturais de uma estrutura política liberal, no sentido a ela atribuído por John Rawls: pluralidade razoável de doutrinas conflitantes, mas razoáveis, com suas próprias concepções do bem, compatíveis com a plena racionalidade humana e verificáveis com os recursos de uma concepção política de justiçavii.

A obra de Sinclair Lewis foi resgatada e incensada nos anos Trump. Todavia, é falacioso crer que ela amargou qualquer ostracismo reputacional artístico ou político, ou mero esquecimento, no longo interregno entre a vitória dos Aliados e o fim do mandato Obama. Nem sequer o poderia: como obra-matriz da especulação sobre as disfuncionalidades do sistema político americano, e como um freio de arrumação imagético, sempre foi relembrada a cada embaraço da democracia americana.

Em contrapartida ao paradigma americano, há países cujos ordenamentos jurídicos que - assumindo a tese do paradoxo de Popper[viii], pelo qual a democracia pode se destruir ao permitir e normalizar a intolerância no ambiente público - impõem limites constitucionais e legais mais claros para a liberdade de expressão, a punição ao racismo sob todas suas formas, ao discurso de ódio e a apologia ao crime. Há países, como o Brasil, que reconhecem, legal e jurisprudencialmente, o antissemitismo como forma racismo.

Mesmo nesses países, tem-se percebido, por parte de autoridades, figuras públicas, celebridades midiáticas ou intelectuais, discursos inflamatórios, quando não a conivência, o silêncio covarde, obsequioso ou eloquente a atos de racismo, de intolerância, de violência.

Quão confusos são os jogos de sinais quando, justamente à esquerda do espectro político, nascedouro do fértil e necessário pensamento crítico e da defesa dos direitos humanos, discursos de ódio, intolerantes e racistas, são sugeridos, premiados ou permitidos!

Segundo Jonathan Greenblatt, mencionado no terceiro parágrafo deste artigo:

A hostilidade enraizada em relação aos judeus entre alguns da esquerda ficou dolorosamente clara durante o pico de antissemitismo mencionado anteriormente na primavera de 2021. Durante um período de duas semanas, a LAD [Liga Antidifamação] acompanhou um aumento de 75% nos incidentes antissemitas, de assédio a vandalismo e violência. (...)  as estatísticas não transmitem a crueldade do que os judeus experimentavam. Em Los Angeles, uma multidão agitando bandeiras pró-palestinas atacou um grupo de judeus enquanto jantavam em um restaurante. Em Nova York, um homem gritando palavras de ordem antissemitas atacou um judeu a caminho da sinagoga, chutando-o e perseguindo-o por quarteirões. Em Miami, homens em um SUV gritaram insultos e ameaçaram estuprar as mulheres de uma família judia.

Tais episódios evidenciam a mesma raiva e ódio não adulterados que vimos quando nacionalistas brancos marcharam por Charlottesville (...) uma série de autoridades públicas proeminentes e outras figuras da esquerda pareciam sem palavras ou incapazes de oferecer condenações claras e convincentes, muitas vezes qualificando suas declarações com críticas ao Estado de Israel ou comentários sobre o ódio antipalestino. (...). Em comparação, quando os asiático-americanos nos Estados Unidos sofreram uma onda de ataquezaxs violentos e feios a partir de 2020, os líderes políticos não condenaram os ataques, ao mesmo tempo em que argumentaram que a China deveria mudar sua política externa ou que os direitos dos uigures deveriam ser preservados. (...).  

Nossa sociedade está se tornando cada dia mais vulnerável ao ódio tanto à esquerda quanto à direita. (tradução livre)ix

Por sua vez, o capítulo final da obra editada por Cass Sustein "Can it happen here? Authoritarianism in America" (Pode acontecer aqui? Autoritarismo na América), Geoffrey R. Stone, não fazendo ressalvas ao estado da arte do mercado de ideias norte-americano, oferece como antídoto ou prevenção ao esgarçamento do liberalismo político a necessidade de líderes com clareza moral e caráter para preservar as liberdades constitucionais de todos os grupos. Isso requer a intervenção contramajoritária, a impugnação dos humores das massas em nome da proteção de minorias, fundamento da permanência da própria democracia liberal. E fecha seu raciocínio lembrando a frase de Louis Dembitz Brandeis, Ministro Associado da Suprema Corte Americana, curiosamente, judeu: "Aqueles que conquistaram nossa independência (...) sabiam que a coragem é o segredo da liberdade".

 Quando faltam discernimento ou coragem para contraditar o jamais aceitável, faltam também as ferramentas para manter a integridade do discurso público e se permite o temerário deslocamento da "janela de Overton"[x], ou o rosário de discursos públicos moralmente permitidos, para normalizar expressões e ideias intoleráveis que, ora atingem uma minoria, mas, em breve, assim o prova a História, atingirão outras.

Sem um decidido freio-de-arrumação, sem uma verdadeira clareza moral, sem coragem política, sem o autêntico exercício do ônus da liderança com responsabilidade social em relação a todos segmentos da sociedade e minorias, indistintamente, em breve, a deturpação do discurso público ruirá, lentamente, os pilares de sustentação da democracia liberal.

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Consultora Legislativa do Senado Federal. Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo. LL.M em Direito e Inovação pela UC. Berkeley. Mestre em História das Relações Internacionais. Especialista em Direito Internacional dos Conflitos Armados pela Universidade de Bochum, Alemanha. Presidente da Comissão de Relações Internacionais da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Distrito Federal. Conselheira.

  1. STUART MILL, John. Sobre a liberdade. Coleção Clássicos para Todos. Nova Fronteira, p. 64.;
  2. MILTON, John. Areopagitica: um discurso pela liberdade de impressão não licenciada ao Parlamento da Inglaterra. Editora Convivium, p. 38.

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[i] SUSTEIN, R. Cass (ed). Can it happen here? Authoritarianism in America. HarperCollins Publishers Inc. 195 Broadway New York, NY 10007. 2018 ISBN: 978-0-06-269621-2

[ii] GREENBLATT, Jonathan. It Could Happen Here: Why America Is Tipping from Hate to the Unthinkable-And How We Can Stop It. HarperCollins Publishers Inc. 195 Broadway New York, NY 10007. 2018. ISBN: 978-0-06-269621-2

[iii] CANESIN, Carlos Henrique. A ordem e as forças profundas na Escola Inglesa de Relações Internacionais: em busca de uma possível francofonia. Rev. bras. polít. int. 51 (1) .2008. https://doi.org/10.1590/S0034-73292008000100007.

[iv] CHURCHILL, Winstom S. Memórias da Segunda Guerra Mundial. Capítulo 3. Adolf Hitler. Editora Nova Fronteira. 2ª edição revista e impressa. 8ª impressão. Botafogo. Rio de Janeiro. ISBN85.209.0637-0 Pg. 28.

[v] O fenômeno da expulsão do outro é aparentemente higienizado e ganha invisibilidade, porém, maior destrutividade, no ambiente das redes sociais, das suas bolhas e do discurso acalorado sem a intenção ou o compromisso com o contraditório, mas o libelo. Segundo o filósofo coreano Byung-Chul Han:

 O terror do igual abrange, hoje, todas as esferas da vida. Viaja-se [Man fährt] para todos os lugares, sem se ter uma experiência [Erfahrung]. Tornamo-nos familiares [Man nimmt Kenntnis] com tudo, sem chegarmos a um conhecimento [Erkenntnis]. Acumulam-se informações e dados, sem se chegar a um saber. Cobiçam-se vivências e estímulos, nos quais, porém, se permanece sempre igual a si mesmo. Acumulam-se Friends e Followers, sem nunca se encontrar com o outro. Mídias sociais representam um estágio de atrofia do social.

Han, Byung-Chul. A expulsão do outro : sociedade, percepção e comunicação hoje. Tradução de Lucas Machado - Petrópolis, RJ : Vozes, 2022. Título original: Die Austreibung des Anderen. ISBN 978-65-5713-411-5 - Edição digital. Pg.8.

[vi] JENKINS, Lord Roy. Roosevelt. Apresentação: Fernando Henrique Cardoso. Editora Nova Fronteira. Botafogo. Rio de Janeiro. 2003. Tradução Glauber Vieira. ISBN 85-209-1710-0

[vii] RAWLS, John. Political Liberalism. Columbia Classics in Philosophy. Columbia University Press. Library of the Congress.  eISBN : 978-0-231-52753-8. Pg. 135.

[viii] POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos: o Sortilégio de Platão. Volume 1. Prefácio João Carlos Espada. Edições 70. Coimbra. ISBN 978-9724416588.

[ix] GREENBLATT, Jonathan. It Could Happen Here: Why America Is Tipping from Hate to the Unthinkable-And How We Can Stop It. HarperCollins Publishers Inc. 195 Broadway New York, NY 10007. 2018 ISBN: ISBN: 978-0-358-62337-3. Pg. 9

[x] A "Janela de Overton" é um modelo de análise da lavra do cientista político americano e vice-presidente sênior do Mackinac Center for Public Policy, Joseph Overton. Visa a demonstrar como as ideias na sociedade mudam ao longo do tempo e influenciam a política. O conceito central é o de que os políticos são limitados em quais ideias podem apoiar e, geralmente, só perseguem ou apoiam políticas que são amplamente aceitas em toda a sociedade como opções políticas legítimas. Assim, a incorporação e a normalização do discurso público de falas e ideias de intolerância civilizacional ou política tendem a contaminar a política e, com isso, aos poucos, toda a estrutura social.  Em: https://www.mackinac.org/OvertonWindow.