A teocracia do espetáculo
terça-feira, 26 de setembro de 2023
Atualizado às 07:47
A desinformação contra grupos vulnerabilizados sempre foi um problema da sociedade, quando falamos da população LGBTI+ foi construído no imaginário popular um estereótipo nocivo que se perpetuou no decorrer dos séculos.
Quando a separação entre igreja e estado não era clara havia perseguição institucional contra esse grupo, isso pode ser verificado a partir de uma análise das Ordenações do Reino, que tinham em seu rol de crimes a sodomia, punida com a morte na fogueira e o uso de trajes vistos socialmente como de outro gênero com a pena de açoite e degredo.
Na leitura dessas legislações históricas é possível perceber a forte influência da igreja no Estado, os textos dos crimes se baseavam na tradição cristã. A título de exemplo, nas Ordenações Filipinas, o crime de sodomia estava previsto no Livro V, título XIII com o nome "Dos que cometem o pecado de sodomia, e com alimárias" que era tratado a todo tempo como pecado:
Toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado, e feito pelo fogo pó, para que nunca de seu corpo ou sepultura possa haver memória, e todos os seus bens sejam confiscados para a Coroa de nossos Reinos, posto que tenha filhos e netos ficarão inábeis e infames assim como aqueles que cometem o crime de lesa majestade.
A pena de morte na fogueira era justificada não somente como a morte do corpo, mas a morte da memória, o que é bem significativo já que grupos reacionários e fundamentalistas buscam apagar a memória da população LGBTI+ a todo momento.
Muito disso se dá em razão de pensarem que ser LGBTI+ é uma escolha, logo essa escolha seria uma falha de caráter, um desvio moral, algo a ser combatido, a lógica de que se alguém escolheu um caminho que é repudiado pela sociedade deve arcar com as consequências.
Devo frisar que ser LGBTI+ não é uma escolha, mas uma característica inerente ao ser humano que pode ser descoberta em várias fases da vida, mas ainda que fosse uma escolha deveria ser respeitada.
Esse pensamento de apagamento da memória é visto até hoje em projetos de lei, como o PL 504 e São Paulo, que visava proibir publicidade com pessoas LGBTI+, seguindo a mesma lógica muitos pensam que a publicidade é capaz de influenciar pessoas a serem LGBTI+.
Com o Código Penal do Império aqueles crimes deixaram de existir, mas a discriminação não, essa sempre esteve presente na sociedade, por muito tempo foi reforçada pela mídia hegemônica que sempre tratava essa população de forma caricata, muitas vezes atribuindo características nocivas a personagens.
A população trans foi a que mais sofreu com essa construção de imagem, eram sempre retratados como pessoas violentas, não confiáveis, mulheres trans e travestis eram vistas como pessoas que desejavam enganar os homens, etc.
No primeiro filme do Ace Ventura há uma cena em que o detetive descobre que beijou uma mulher trans, logo após a descoberta ele é visto se sentindo enojado, como se tivesse sido vítima de violência sexual.
Felizmente na última década parte da grande mídia tem tentado mudar essa imagem e personagens mais humanizadas têm aparecido em meios de comunicação tradicionais.
Apesar disso, desde a popularização das redes sociais temos enfrentado o crescente fenômeno da desinformação na internet.
Um dos recentes espantalhos criados por esses grupos fundamentalistas é a chamada "ideologia de gênero", algo que simplesmente não existe nem tem uma definição clara, mas que é usada de forma genérica para atacar a população LGBTI+ como um todo.
Isso tem um reflexo no processo legislativo brasileiro e pode ser verificado por ferramentas como o Google Trends. A expressão "ideologia de gênero" viralizou no país em julho de 2015, depois disso o termo "gênero" deixou de ser usado em novos projetos de lei.
Antes desse espantalho viralizar pela primeira vez, era comum que o termo "gênero" aparecesse na legislação, um exemplo claro é a própria Lei Maria da Penha.
A própria lei de feminicídio, que usava "gênero" em seu texto durante o projeto, sofreu uma emenda de redação e a lei trouxe a expressão "sexo", uma óbvia tentativa de excluir pessoas trans dos mecanismos de proteção do Estado.
Isso também aconteceu com a lei de stalking, violência política e outras que visam proteger mulheres.
Mas a redação não foi o único fator que mudou com a viralização da desinformação contra a população LGBTI+, as mentiras passaram a ficar cada vez mais sofisticadas criando o chamado pânico moral na sociedade.
Com isso, projetos de lei discriminatórios passaram a ser apresentados em todo Brasil com justificativas aparentemente nobres como proteger as crianças da ameaça da "ideologia de gênero", preservar valores, etc.
Dentre esses projetos se destacam os da "escola sem partido" que em muitos casos proibia o debate sobre gênero, identidade de gênero e orientação sexual no sistema educacional. Obviamente todos os que foram aprovados e chegaram ao STF foram declarados inconstitucionais por uma série de fatores.
Hoje, a cada tema novo que viraliza, temos uma enxurrada de projetos que parecem ter saído do esgoto.
Recentemente um tema voltou aos holofotes, o casamento homoafetivo, as sessões na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família parecem ter saído do Conto de Aia.
Ressuscitaram o PL 5167/2009 no relatório do PL 580/2007, um PL sem grandes chances de aprovação, mas que busca manter seu relator e apoiadores nos holofotes da mídia e das redes sociais.
A justificativa do PL em questão é irônica, inicia com os dizeres:
"Este projeto deseja aclarar, de uma vez por todas, a situação de direitos de pessoas do mesmo sexo, em relação à família e ao casamento.
Preliminarmente, queremos deixar bem claro que não existe de nossa parte a intenção de discriminar ou violar direitos materiais de qualquer pessoa, pois esta atitude viria chocar-se aos valores cristãos dos autores e seria uma negativa, mas, ao mesmo tempo, temos que sair em defesa desses mesmos valores para manter a coerência de atitude e respeito à vontade do povo que nos elegeu".
Deixa "bem claro" que "não há discriminação" na tentativa de aprovar uma lei que discrimina, o relatório por sua vez ataca a decisão do STF na ADI 4277.
Vale dizer que a decisão da Suprema Corte é tão bem fundamentada e representa um avanço social tão grande que é considerada pela Unesco patrimônio documental da humanidade.
Importante destacar que o relator parece não compreender o conceito de laicidade e que o Brasil não é, pelo menos ainda não, uma teocracia do espetáculo, cito aqui trecho do relatório:
O Brasil, desde sua constituição e como nação cristã, embora obedeça ao princípio da laicidade, mantém, na própria Constituição e nas leis, os valores da família, decorrentes da cultura de seu povo e do Direito Natural. Nesse sentido, toda lei feita pelos homens tem razão de lei porquanto deriva da lei natural.
O projeto dificilmente será aprovado em definitivo, uma vez que ainda deve ser debatido na Comissão de Constituição e Justiça, no Senado, pode ser vetado e, eventualmente, questionado no STF.
A inconstitucionalidade do projeto é evidente, viola o arcabouço legal brasileiro e internacional. Vai de encontro ao princípio da igualdade e não discriminação, o princípio da proibição do retrocesso, prejudica a promoção da Justiça social e cria castas sociais no país.
Viola a Opinião Consultiva 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que "estabelece a obrigação dos Estados Partes de respeitar e garantir o pleno e livre exercício dos direitos e liberdades nele reconhecidos 'sem qualquer discriminação'".
Os princípios de Yogyakarta, dos quais o Brasil é signatário, que estabelecem uma série de parâmetros que os estados devem seguir para combater a discriminação relativa à orientação sexual e/ou identidade de gênero.
Há ainda uma série de decisões da Corte Interamericana de Direitos humanos sobre o tema ou questões correlatas como a adoção por pessoas LGBTI+ como Atalla Riffo e filhas v. Chile, de 2012. Nesse julgamento foi reconhecido que orientação sexual e/ou identidade de gênero são classificações suspeitas, ou seja, leis e políticas estatais que discriminem por essas razões serão presumidas como inconvencionais, salvo se o Estado apresentar forte fundamentação a partir de critérios objetivos e razoáveis. Isso foi reafirmado em 2016 nos casos Flor Fleire v. Equador e Duque v. Colômbia, respectivamente sobre discriminação nas forças armadas e no direito previdenciário.
Ainda assim, mesmo com a evidente inconstitucionalidade, é um sinal de alerta de que os direitos sociais nunca estão postos e que devemos ser vigilantes, afinal de contas se nos permitirmos voltar ao passado a fogueira pode esperar muita gente.