"Legalize já! Legalize já!": O STF e a questão da descriminalização de drogas para consumo pessoal
terça-feira, 23 de maio de 2023
Atualizado às 07:42
"O álcool mata bancado pelo código penal
Onde quem fuma maconha é que é o marginal
E por que não legalizar? E por que não legalizar?
Estão ganhando dinheiro e vendo o povo se matar"
Música: Legalize já!
Compositores: Marcelo Peixoto / Peter Tosh / Rafael Lopes (1995)
Interprete: Planet Hemp
O trecho da música que inicia o título deste é tema central da música Legalize Já! do grupo de rock Planet Hemp lançada em 1995, a música tornou-se um grande sucesso no país, principalmente no sudeste brasileiro, embalando matinês, baladas e shows onde um público de jovens e adultos que reclamavam o direito de "queimar um até a última ponta", sem que houvesse a criminalização de sua conduta. De certa forma, a música que causou frisson colocou em pauta o complexo debate sobre a descriminalização de drogas para consumo pessoal.
Pois bem, essa semana o tema volta ao debate público, vez que a ministra Rosa Weber colocou em pauta o Recurso Extraordinário 635659, e o pleno do STF deve decidir sobre a possível descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. No RE em questão, está em debate a constitucionalidade do art. 28 da famigerada Lei de Drogas 11.343 de 2006, o tipo penal apresenta a seguinte condutas:
"adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal"
O artigo 28, desdobra-se em sete parágrafos, chamando atenção para o fato de que o parágrafo segundo, deixa a cargo do juiz, que atendendo "à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente", determinará se a quantidade apreendida com o indivíduo é para consumo ou destina-se ao tráfico de drogas. Atribuindo, a nosso ver, demasiada discricionariedade ao magistrado dando ampla margem a criminalização do usuário.
Ação interposta pela entidade Viva Rio busca a declaração de inconstitucionalidade do artigo na íntegra, sob o argumento de que a proibição do porte para consumo próprio é medida atentatória à autonomia, liberdade e privacidade do indivíduo, direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. Ressaltando que, conforme ilustra a música
O esperado julgamento teve em 2015 com voto do relator, Ministro Gilmar Mendes, que entendeu pela inconstitucionalidade do artigo, mantendo apenas aplicação das sanções administrativas, acompanhado pelos Ministros Edson Fachin e Roberto Barroso apenas para a descriminalização da maconha, houve vista do Ministro Alexandre de Moraes que assumiu a cadeira do Ministro Toeri Zavasck, após seu falecimento. Ocorre que o processo está liberado para julgamento desde 2018 e apenas agora retorna ao plenário.
Importante relembrar que quando a Lei de Drogas foi sancionada, ela foi apresentada como uma medida inovadora que estabelecia distinção de tratamento jurídico aos usuários e a traficantes de entorpecentes. No que diz respeito aos usuários o objetivo era a prescrição de medidas preventivas, além da necessária reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Doutro lado, manteve-se a criminalização ao porte de entorpecentes para uso próprio (artigo 28), extirpando-se, contudo, a pena privativa de liberdade.
Dos inúmeros debates que essa temática suscita, destaca-se o vertiginoso impacto da Lei de Drogas no encarceramento no Brasil, quando o grupo Planet Hemp gravou a música Legalize Já!, certamente não imaginaram que 11 anos depois sobreviria norma ainda mais rígida, que criaria a mazela do "crime de usuário".
Recentes pesquisas1 elaboradas com a finalidade de analisar o impacto da Lei de drogas apresentam conclusões bastante contundentes com relação à criminalização do porte de entorpecentes para uso pessoal:
A primeira conclusão que se pode extrair é que a distinção entre os crimes de porte para uso (artigo 28) e porte para tráfico (artigo 33) é extremamente frágil e insuficiente, culminando em ampla discricionariedade e arbítrio à autoridade policial responsável pela abordagem, culminando no vulgo "crime de usuário".
Em segundo lugar se observa que a maioria dos casos que envolvem porte de entorpecentes deriva de prisão em flagrante, ou seja, não há um trabalho de investigação por parte da polícia para combater os esquemas de tráfico de drogas.
Elenca-se como terceiro ponto no sentido de que há uma nítida seletividade no modus operandi da aplicação da lei, nesse caso o perfil é de jovens, pobres, negros e, em regra, primários.
E por fim, outra constatação é de que a maior parte das pessoas detidas por envolvimento com entorpecentes estava sozinha na hora do flagrante, tendo apenas a palavra do policial como prova da conduta criminalizada.
Não é demais lembrar que atualmente o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking das nações que mais encarceram no mundo, sendo o tráfico de entorpecentes o crime que mais encarcera.
Em 2005, antes da Lei de Drogas, os dados revelam que 14% dos presos haviam sido condenados por crimes relacionados ao tráfico, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).
Já no ano de 2019, o delito representava 27,4% e entre as mulheres, esse índice chega a 54,9% do total. Enquanto em 2005, havia nossa população carcerária era de 296.919 pessoas. Em 2019, eram 773.151 detentos, apontando para uma elevação retumbante e desordenada de 160%.
Os últimos dados do Infopen são de 2019, mas o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima que no ano passado havia 820 mil pessoas presas.
O debate sobre a descriminalização das drogas frequentemente é deturpado por um viés punitivista que não trata o uso de drogas e a dependência química como um problema de saúde pública que requer políticas de saúde públicas efetivas para prevenção e controle.
E ao fim e ao cabo esse é o debate que o STF terá de enfrentar.
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1 "Tráfico de Drogas e Constituição" (Série Pensando o Direito - nº. 1/2009 - Secretaria de Assuntos Jurídicos do Ministério da justiça (SAL), Faculdade Nacional de Direito da UFRJ e Faculdade de Direito da UNB); "Impacto da assistência jurídica a presos provisórios: um experimento da cidade do Rio de Janeiro" (Associação pela Reforma Prisional, CESEC/UCAM e Open Society Institute, 2011); e "Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo" (Núcleo de Estudos da Violência - USP e Open Society Institute, 2011).