Dos griões à ausência de terras: percurso de uma liberdade não concedida e a ausência de política pública de reforma agrária do Brasil
terça-feira, 25 de abril de 2023
Atualizado às 08:53
O direito a moradia no Brasil é tutelado constitucionalmente, devendo ser efetivado pelo Estado através de políticas públicas voltadas para a habitação e para a redução das desigualdades. Na contramão desse direito está o racismo estrutural no Brasil, como engrenagem do sistema gerando segregações e violação de direitos de toda ordem, tais como, a moradia e a dignidade humana. Neste sentido, é de total pertinência analisar tais questões à luz da realidade brasileira, partindo do entendido que a moradia é um direito humano básico.
O diálogo, tem origem no fato de que o direito à propriedade é vinculado ao instituto da função social da propriedade a medida em que se limita esse direito à restritas camadas sociais mais abastadas, também gera impacto no desenvolvimento e progresso social e econômico do país, corroborando para o alargamento dos abismos sociais.
Segundo Gonzaga; Cunha (2020), para entender o mundo atual, em especial na perspectiva do racismo, se revela necessário olhar para a colonização das Américas e a escravização dos povos originários e negros, pois foram tais processos históricos e políticos que construíram as estruturas das sociedades modernas e seus valores. No caso do racismo e inferiorização de raças, tem-se que, a partir da colonização do país se produziu a racialização dos corpos, estabelecendo-se hierarquias raciais, que até hoje determinam quem pode viver e quem deve morrer (MBEMBE, 2011). Neste contexto, a pseudociência eugenista do determinismo biológico, oferece as bases do "direito de matar", na desumanização dos corpos o negro, na promoção violência racial-colonial e intersecciona-se à violência de gênero atingindo objetivamente as mulheres negras em inúmeras dimensões da vida.
No Brasil, assim como em outros países de colonização europeia, houve a subjugação de determinadas raças, para fins capitalistas, tais como, econômicos e políticos. Assim, desde a história de sua colonização o Brasil traz consigo uma herança de escravismo e objetivação de raças. Gonzaga; Cunha (2020) advertem ainda que essa herança se projeta fortemente no presente, em que o racismo estrutural e institucional faz parte da sociedade brasileira, através da ideologia do branqueamento.
Entre os anos de 1845 e 1850, duas leis importantes para compreensão das desigualdades atuais foram implementadas no Brasil, Lei Bill Aberdeen (1845) e Lei Eusébio de Queirós (Lei n. 581, de 4 de setembro de 1850), essa última proibindo o tráfico de escravos. No entanto, preocupados com o acesso dos povos até então escravizados aos direitos de todos os cidadãos, após duas semanas da instauração da Lei Eusébio de Queirós foi criada a Lei de Terras (lei n. 601, de 18 de setembro de 1850), como uma resposta da elite agrária do país para que os escravos acreditassem serem detentores de direitos. A aludida lei dispôs normas sobre a venda, a posse e a utilização de terras a partir do Segundo Reinado, tendo sido criada como forma da manutenção da concentração agrária nas mãos de poucas pessoas privilegiadas, favorecendo os grandes proprietários rurais, tendo em vista que tornou a compra/venda como única maneira de acesso à propriedade de terra, passando a assumir o status de propriedade privada.
A problemática apresentada, revela que o acesso a moradia para a população negra não é problema atual, sendo que Costa e Azevedo (2016) afirmam que essa falta de acesso a moradia e propriedade pelos escravizados negro, desde a época colonial, são os marcos fundante da situação atual, que lança à condição de invisibilidade toda população negra na sociedade brasileira. Fazendo com que essa população migrasse das senzalas para as favelas e comunidades.
Santos e Silva (2018) apontam que até os dias atuais a escravidão é a grande questão do Brasil, apontada por uns como uma instituição arcaica que atrapalhava o desenvolvimento econômico e social do país, sendo ainda um empecilho à imigração europeia. Com o fim do sistema escravista e a abolição inconclusa, o problema passou a ser o destino da população negra e seus descendentes, herdeiros apenas do espólio da escravidão e das teorias racistas eugenista que até hoje fustigam a existência negra nesse país.
Para os autores, isso demonstra a necessidade ações que visem mudanças concretas na realidade, ainda de negação de direitos a negros e indígenas. Importante neste contexto ressaltar que os povos indígenas também são vítimas desse preconceito que ainda vigora na sociedade brasileira contemporânea:
Cor, raça e preconceito no Brasil compõem o plexo de concepções para o enfrentamento das questões raciais e de seus desdobramentos nocivos na formação de crianças e adolescentes, por meio da construção de uma nova forma de se pensar a formação da nação e da nacionalidade. Em todo plexo, é notória a interpretação do fato de o Brasil ser constituído da maior população negra fora do continente africano e isso não dar uma visibilidade - positiva - à cultura afro-brasileira, e, por conseguinte, ao negro. Muito frequentemente, este aparece como um problema social: sua condição, o lugar que ocupa na escala social seria resultado de problemas estruturais do país, e não do preconceito, ou somente de seu passado escravista - como defendiam as teses dos autores da escola paulista desde a década de 1950, conforme apontaremos no decorrer do texto. (SANTOS; SILVA, 2018).
Antes de se explanar acerca do racismo estrutural, se revela importante entender alguns conceitos correlacionados, assim como se deve distingui-los. Batista (2018) traz a definição de racismo como uma forma dentro de um sistema de discriminação que se fundamenta na raça e se manifesta por meio de determinadas práticas, que muitas vezes pode ser inclusive inconscientes, e que trazem como consequência desvantagens ou privilégios, de acordo com o grupo racial na qual se esta inserido.
Com relação ao conceito de propriedade, Sá (2019) pontua que a propriedade pode ter vários conceitos, dependendo do enfoque, e no presente caso como o que interessa é o aspecto jurídico o conceito de propriedade vai ser discorrido sobre o enfoque jurídico, legal e constitucional, e em seus aspectos contemporâneos e atrelado a função social. Ainda com relação ao conceito de propriedade, pode se refletir em variados conteúdo ou estatutos que exercem influência na relação entre os diversos objetos e sujeitos sobre os quais podem recair o domínio e a titularidade dos direitos, tal como a propriedade material, que abrange e a propriedade dos bens móveis e a propriedade dos bens imóveis, ou a propriedade imaterial, que abrange a propriedade literária e artística, a propriedade industrial, entre outros.
Assim, para o autor, verifica-se que a propriedade não possui um conceito único, porém nos tempos contemporâneos o conceito de propriedade abrange sempre usar, gozar e dispor e deve ser exercido através de sua função social. Portanto, o conceito de propriedade esta intrinsecamente ligada à sua função social. A propriedade, bem como sua função, sofreu modificações ao longo da história, e assim o foi também com o seu conceito, que sofreu modificações, principalmente após ser atrelado ao conceito de função social. Até então o direito a propriedade era absoluto, e isso se refletia em seu conceito, no entanto, com as modificações trazidas ao direito de propriedade privada, inclusive com sua relativização, o seu conceito também passou a ser relativizado.
Não é exagero afirmarmos que a propriedade nasce junto com o indivíduo, quase como algo inato do ser humano. Mais do que como um fenômeno jurídico, podemos caracterizá-la como um fenômeno social, por sua vez abraçado pelo Direito. O conceito de propriedade desenvolve-se quase que conjuntamente com a transição da fase do homem selvagem para a do homem sedentário, quando a civilização assenta-se sobre determinados espaços físicos, retirando da terra seu sustento e valores (ASSIS, 2008).
Ao se falar em direito a propriedade, Sá (2019) faz referência aos diversos direitos que formam o patrimônio de um indivíduo, ou seja, todas as situações jurídicas que envolva uma ingerência socioeconômica, sendo, portanto, a propriedade uma ideia ampla, não se limitando a titularidade do indivíduo sobre um bem mas sim a todas relações jurídicas advindas dessa propriedade.
Para Cruz (2015), a propriedade é um dos temas mais representativos da história do Direito, sendo ela um pilar de identificação do indivíduo moderno por compreender em si um indicador de poder econômico e político do homem. Portanto, sua importância esta ligada intimamente ao poder de um homem, pelo menos em uma sociedade capitalista. Para Sahd (2007, p. 220), se a humanidade tem o poder de amealhar os recursos naturais para a sua sobrevivência, esse poder só se converterá num verdadeiro direito quando for capaz de criar um efeito moral sobre o resto dos homens sem que com isso venha a causar danos irreparáveis e disputas sem fim.
A propriedade privada é fruto de um longo processo histórico, e é intimamente ligada ao capitalismo, porém reconhecida como direito natural e fundamental do homem. O status quo ao qual é lançado o homem que é proprietário de um bem, aliados a outros fatos que agregam valor, faz com que a propriedade privada passe a se revestir de relevante significado, passando a ser um direito e uma necessidade de toda a humanidade, ou pelo menos naquelas capitalistas.
A Constituição Federal de 1988 cristalizou avanços no conceito de propriedade privada e do cumprimento de sua função social, assegurando a propriedade privada (art. 5º, XXII), mas condicionando-na a garantia do bem-estar social, dispondo que a propriedade rural atenderá à sua função social (art. 5º, XXIII), dirigida à justiça social, quando atender aos requisitos do artigo 186 da Constituição Federal. (MATIAS; SANTOS, 2009, p. 03).
O direito a moradia no Brasil pode se traduzir como o direito de ter um lar, uma moradia, seja ela própria ou alugada. Matias; Santos (2009) esclarecem que a Declaração Universal dos Direitos Humanos ocorrida em 1948 trouxe o direito a moradia como um direito fundamental, e sendo o Brasil um país signatário de tal instrumento internacional, assina embaixo do que diz a Declaração dos Direitos Humanos e em consequência o direito à habitação. Importante ainda ressaltar que o Brasil participou de outras declarações e Pactos, como o pacto internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado em 1996 e que orienta e reconhece o direito de toda pessoa ter acesso a direitos como alimentação, vestimenta e moradia adequados.
No Brasil direito como propriedade, moradia e dignidade fazem parte dos direitos fundamentais, previstos em Constituição. Tais direitos, mais que um fenômeno legal é um fenômeno social e político. Com isso passou tais direitos a ser chancelados pelo ordenamento jurídico do Brasil, que desde a sua primeira Constituição Federativa já contemplava a propriedade privada e o direito à propriedade, porém nos moldes da época. Importante esclarecer que o direito a moradia esta atrelado fortemente a outros direitos do homem garantidos constitucionalmente, como o da dignidade humana. Realizado os principais esclarecimentos a respeito da propriedade e do direito do homem à mesma, passar-se-á no capítulo seguinte a discorrer-se sobre o racismo institucional no Brasil.
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tornou-se impossível falar em direito à propriedade sem falar na função social da propriedade, tendo inclusive o próprio conceito de propriedade sofrido alterações após o advento da referida Carta Magna. Isso porque o conceito de propriedade foi atrelado à sua função social, sendo desta indissociável. Com o advento da referida Lei Maior o direito à propriedade restou relativizado de forma normativa e efetiva.
O artigo 173 da Carta Magna traz diversas limitações ao direito de propriedade, demonstrando com isso que tal direito não é absoluto, devendo em tempos contemporâneos estar de acordo com a função social, ou seja, com os interesses da coletividade, além de estar de acordo também com os interesses do Estado. Importante ressaltar ainda que a Constituição Federal de 1988 serviu como parâmetro para a confecção do novo Código Civil (CC) ao também determinar que a propriedade deve voltar-se para o bem comum.
O instituto da função social, cuja previsão é constitucional, veio a limitar e relativizar o direito à propriedade, atrelando este direito a função social da propriedade. Não que anteriormente não existisse uma relativização, mas não nos moldes propostos pela atual Carta Magna, que trouxe a previsão expressa em seu art. 5º, XXIII. O argumento para tal previsão expressa foi o baseado na nova noção de sociedade e coletividade, em que os direitos e interesses coletivos devem sempre prevalecer sobre os individuais.
A função social acaba por reforçar a tese da dignidade da pessoa humana na medida em que só se obterá a plenitude da dignidade com a efetividade da justiça social, e esta só será alcançada, entre outros, com o instituto da função social da propriedade. A função social deve ser buscada pelo Estado, e só gozará com sua proteção aquele que respeitar esses fundamentos dando a sua propriedade uma função social, ou seja, no interesse da coletividade. Tem-se então que a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade são institutos intrinsecamente interligados.
Em conclusões transitórias, consegue-se perceber que não há estruturalmente, discussão no que tange a política pública que dialogue na lacuna criada entre a abolição da escravidão no Brasil e a inserção das pessoas recém libertas formalmente com a democratização da terra.