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Novos rumos para velhas questões: o racismo estrutural e a perda de uma chance

Núbia Elizabette de Paula

terça-feira, 14 de março de 2023

Atualizado em 17 de março de 2023 07:25

Voltemos o nosso olhar para o racismo estrutural sob a perspectiva da responsabilidade civil em virtude da perda de uma chance como o tema proposto para esse nosso momento.

Nesses poucos mais de 20 anos do nosso código civil é imperioso destacar que há um acolhimento tímido em seu texto acerca da responsabilidade civil. Sobretudo diante tantos casos que precisavam de respostas legislativas, as construções doutrinárias, acadêmicas e jurídicas muito construiu e contribui para a responsabilidade civil no alcance que temos atualmente.

É inegável que, temos uma cultura e vivemos em uma sociedade patriarcal, machista, eurocêntrica e heteronormativa, onde o homem branco figura como símbolo de poder, sucesso e controle e, apesar de alguns avanços sociais, esta simbologia é constantemente retroalimentada pela indústria cultural que hegemoniza tal narrativa e pauta o direito.

Contudo, convidamos ao(a)s leitores (as) a refletir sobre questão central que suleia este texto: O racismo estrutural tem correlação com a responsabilidade civil, sobretudo com a responsabilização pela perda de uma chance?

Partindo desse ponto central para a ampliação do debate, é necessário colocar à mesa outras questões acessórias, porém, de igual relevância para situar os termos nos quais queremos disputar as narrativas emergentes nos últimos anos.  Neste sentido pergunta-se: O que é um ato de racismo para você?

Talvez a primeira resposta que venha em sua mente seria de atos explícitos e diretos como os xingamos - macaco, nega fedida, pretos preguiçosos, raça suja e etc. Isto sem dúvida, tanto a legislação que criminaliza o racismo quanto a jurisprudência majoritária é no sentido de verificar a existência do dolo na conduta do agente através da intenção de ofender ou discriminar aplicando-se aí a teoria da discriminação direta, mas quem dera todo racista e toda discriminação fosse explícita, quiçá saberíamos como e de quem nos defendermos.

Contudo, a hegemonia eurocêntrica arraigada em nossa cultura acrescida de elementos históricos fundantes da sociedade brasileita, tal como o mito da democracia racial, propiciou o fenômeno do racismo estrutural como uma tecnologia engendrada  e fincada sob pilares como o da discriminação indireta e na dissimulação e que produz repercussão no direito, na existência humana,  produzindo efeitos nefastos para os grupos discriminados e privilégios sociais, morais, econômicos, estéticos e etc., para os grupos hegemônicos.

A filósofa Djamila Ribeiro, em seus escritos chama a atenção para um aspecto decisivo e importante do racismo e que é deixado à margem do nosso olhar: "(...)não tem como discutir economia sem discutir racismo, não tem como discutir transporte, habitação sem discutir racismo, sem discutir sexismo". (RIBEIRO, 2018).

Dizer que que o racismo é estrutural implica na necessidade de voltarmos aos aspectos econômicos, sociais e existenciais do racismo, voltarmos o olhar para os efeitos indiretos e silenciosos que cada pessoa negra nesse país já sofreu e pior muitas vezes se dar conta, eis que o racismo se apoia na falaciosa narrativa da meritocracia para silenciar as gritantes disparidades raciais e sociais do Brasil.

Nesse sentido, o viés da teoria econômica do racismo aponta vários mecanismos de discriminação racial para além da esfera penal ou civil: "(...) a divisão racial do trabalho; o desemprego desigual entre grupos raciais; o diferencial de salários entre trabalhadores negros e brancos; a reprodução - física e intelectual - precária da força de trabalho negra; a violência simbólica dos corpos das mulheres pretas". (ALMEIDA, 2018, p. 133)

E a despeito da abolição formal da escravatura, em 1888, as bases da estratificação social já estavam delineadas e associadas à categorização racial. Os projetos políticos que sucederam a esse marco não conduziram a sociedade brasileira em outra direção, e a experiência da vida em comunidade assumiu uma feição própria para a parcela negra da população, acumulando desvantagens seculares de ordem política, econômica e social.

Em um teste simples e rápido é possível compreender o alcance do silencioso racismo estrutural, vejamos:

i) Quando se diz  que José é porteiro. Você o imagina de pele clara, cabelos loiros, olhos azuis? Mais fácil imaginá-lo preto ?

ii) Quando se diz que Lúcia mora em uma comunidade pacificada, uma empregada doméstica, tem 4 filhos que cria sozinha, você consegue de pronto visualizá-la uma mulher branca, cabelos lisos, e traços finos?

Com isso, indagamos: Por que algumas profissões foram naturalmente destinadas a pessoas negras? Por que é dada posição de destaque para a mulher negra como passista, mas não lhe é dada a mesma posição de destaque como uma médica, jurista ou desembargadora de um tribunal?

Se desde o Projeto Genoma verificou-se a completa ausência de fundamento científico para subdivisão da espécie humana em raças, fazendo elidir toda e qualquer conclusão cientifica anterior acerca das hierarquias biológicas raciais. De modo que, cientificamente falando não existe raça branca, amarela ou negra e a palavra raça atualmente é um termo que emprestamos da sociologia para o mundo jurídico, lembremos que esse entendimento foi assentado pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 82.424-2, conhecido como o caso Ellwanger onde se reconheceu o racismo contra o povo judeu

De modo que, numa leitura mais aprofundada dos contextos históricos e do construto sociológico da raça, temos que ela existe e serve ao racismo enquanto uma ideologia.

Esse é um dado fundamental à compreensão da estrutura e funcionamento da sociedade brasileira na qual se evidencia a marginalização dos grupos racialmente discriminados e o consequente paralelismo entre desigualdade racial e desigualdade social.   Inúmeros dados estatísticos ilustram tal realidade e, a título de exemplo, conforme dados coletados pela organização social TETO Brasil e pelo IPEA, em 2021, 70% dos moradores das favelas são negros; os negros tem menores índices de escolaridade, renda e representação política, os maiores índices de desemprego e subocupação laboral e ainda se encontram em piores situações de moradia. A conclusão é que: a pobreza tem cor e quem tem a cor da pobreza tem menos chances nesse país.

Diante dos dados e elementos apresentados questiona-se como a perda de uma chance se conecta a falta de acesso à informação no engendramento do racismo estrutual?

Sabemos que é dever do Estado assegurar o cumprimento das garantias fundamentais do cidadão independente de sua cor, gênero, orientação sexual, bem como, também é dever do Estado além da criminalização do racismo, lançar mão de políticas públicas para a superação do racismo em todas as suas dimensões. Por fim, é dever do Estado informar, (re)educar uma sociedade racista, machista e sexista a desnaturalizar condutas baseadas em estereótipos que negam acesso a direito a seus cidadãos?

Diante das afirmações acima que, registre-se, não são frutos da nossa imaginação, mas dão condão ao estado do bem-estar social, fica facilmente demonstrado que o Estado vem reiteradamente descumprindo o seu dever legal de agir colocando-se inerte na garantia direitos fundamentais à população negra e pobre nesse país.

E analisando dever precípuo do Estado à luz da limitação do princípio da reserva do possível estabelecido pelo STF, entendemos que é possível sim o Estado agir, sempre foi e sempre será

É possível a ação do Estado Social Civil em medidas de conscientização de direitos e garantias e implementação de medidas que assegure o seu comprimento e gozo. O estado não pode ser apenas punitivo - ele precisa antever o dano. Há que se ter necessárias ações para a superação do racismo sistêmico, estrutural e institucional, pois esse não tem rosto como àquele citado no início e que prática o racismo por meio da discriminação direta. Os efeitos produzidos pela discriminação indireta do estado nas omissões relatadas são perversos, nocivos e silenciosos e cotidianamente arrasta a população negra e pobre para o mais

Há uma conduta ilícita tipificada no código penal intitulada Racismo Estrutural? Sabemos que não, mas a atipicidade torna inexistentes condutas estruturalmente racistas que alocam determinado grupo populacional em lugares subalternizados? Não.

Então, por que não podemos falar em condenação pela perda de uma chance decorrente racismo estrutural em razão da inércia do Estado que - atentando contra o princípio da reserva do possível e seu dever de agir - sendo possível fazer não o fez? Deixando de tomar providencias para mitigação das desigualdades.

Um outro elemento necessário para que o dever de indenizar do Estado é a presença do dano anormal e específico. E podemos então falar em condenação pela perda de uma chance pelo racismo estrutural já que também temos danos que são anormais e são específicos.

Mas, o que seriam danos anormais?

Segundo estudos realizados por uma ONG Carioca, a cada 10 pessoas negras sob solo brasileiro, ao menos 7 já sofreram episódios de racismo estrutural. E se essa pessoa for Mulher os atos discriminatórios se agravaram: a cada 10 mulheres negras, 09 já sofrem atos de racismo e sexismo ligados à cor da sua pele/ características étnicas.

Isso não pode ser considerado normal e permanecer naturalizado na estrutura social. Naturalizar condutas indiretas de racismo é negar sua existência e fechar os olhos aos danos que ele provoca. Danos sem dúvidas existenciais, mas que permeiam a moralidade do sujeito e as suas chances reais de acesso a uma moradia digna, uma educação de qualidade e um cargo de destaque.

Ter acesso a informação, ter uma moradia digna, ter acesso a um trabalho digno e notável e não apenas em funções subalternas.

Não estamos pedindo um tratamento diferenciado à população preta nesse país. Estamos reivindicando e levando cada leitor(a) a refletir nas chances sérias e reais que o racismo estrutural tira todos os dias das pessoas negras e pobres desse país.

Continuamos sendo escravizados, só que em grilhões e troncos invisíveis, que podem não ferir o corpo, mas ferem nossa dignidade e nossa alma.

Nesse sentido, é dever do Estado responder por omissão. É dever do Estado reconhecer que não basta APENAS atuar tipificando condutas. É preciso resguardar direitos antes que eles sejam minados.

Requeremos o desfocar do óbvio: as pequenas condutas que minam e impedem a aquisição de direitos. Preterição pela cor, questionamentos quanto a competência em razão da cor, erotização em razão da cor. Os ditos "mimis" diários que somos submetidas (os) e que a cada dia furtam um pedaço de nós, da nossa força, da nossa percepção do que realmente somos e podemos ser. Assim, furtam sorrateiramente as chances que poderíamos alcançar.

A responsabilidade civil requer atenção nesse contexto, pois as condutas que refletem o racismo estrutural têm grande potencial para gerar danos, notadamente de ordem moral.

Isso porque tais condutas quase sempre resultam em prejuízo ou lesão a direitos de conteúdo não pecuniário e impassível de redução a pecúnia, por meio de transação comercial, como são os direitos da personalidade. O racismo, conforme o meio e circunstâncias através dos quais é praticado, pode macular a integridade física, moral e psíquica das vítimas, dando origem a danos indenizáveis.

Assim como o bullying, a prática do racismo pode ensejar a configuração de dano existencial, entendido como "dano a um projeto pessoal, que causa 'vazio existencial' (perdas de relações sociais, familiares, etc.) impedindo o sujeito de se comportar ou agir de acordo com os seus sentimentos e expectativas", configurando assim o dano pela perda de uma chance.

Com efeito, a construção dos projetos pessoais dos indivíduos negros na sociedade brasileira é continuamente obstruída pelo racismo.

Do quanto já exposto, conclui-se que o racismo gera danos e compete ao Direito Civil impor as reparações correspondentes. Diferentemente, entretanto, do que pode parecer à primeira vista pela simplicidade dessa dedução, esta não é uma tarefa fácil.

Um olhar sistêmico é essencial à punição da discriminação indireta, caracterizada quando "um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico. Essa forma de discriminação é especialmente nociva, porque oculta o critério racial, quando não o trata como reflexo natural e inevitável, favorecendo discursos que conduzem à impunidade".

Condutas racistas ofendem bens jurídicos de elevada importância, por vezes, até mesmo o tão essencial direito à vida. Ante os danos decorrentes disto, a reparação civil se apresenta como caminho para a compensação da vítima e a punição do ofensor, bem como promover o desencorajamento social da conduta lesiva.

Nossos agradecimentos pela leitura. Na certeza de que não viemos aqui trazer respostas taxativas a esse problema secular que impacta de maneira inegável as relações de trabalho, o acesso a direitos fundamentais e a percepção das pessoas negras sobre si mesmo.

Trazemos aqui questionamentos e desconforto para que juntos possamos garantir um futuro plural e acrômato.