"Todo camburão tem um pouco de navio negreiro": A questão do perfilamento racial nas abordagens policiais e o STF
terça-feira, 28 de fevereiro de 2023
Atualizado às 08:42
Pretensiosamente, estreamos essa coluna com o desejo e o objetivo de trazer para o debate público pontos de vistas plurais e diversos sobre temas pujantes e atuais no campo dos direitos humanos no Brasil e no mundo, sabendo que o desafio que nos impomos será espinhoso, haja visto que a seara dos direitos humanos, frequentemente é submetida a narrativas deturpadas e que intentam fragilizar a hermenêutica jurídica desse campo.
E para essa estreia, não por acaso, escolhemos intitular esse primeiro artigo com a frase que dá nome a uma música do grupo "O Rappa", lançada em 1994: Todo camburão tem um pouco de navio negreiro1, e que apresenta uma narrativa enriquecida de detalhes sobre o cotidiano de pessoas negras, em especial homens negros, diante das abordagens policiais perfiladas na raça, que ocorrem Brasil a fora, e cuja "fundada suspeita" não é outra, se não a raça-cor da pessoa abordada.
A necessária e ácida crítica contida na música dialoga diretamente com o julgamento do HC 208.240-SP pautado para esta semana (1/3) pelo Supremo Tribunal Federal, impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em favor de determinado paciente que sofreu abordagem policial baseada com suspeita fundada em sua raça (negra); o HC tem por objetivo enfrentar as sistemáticas e estruturais violações de direitos fundamentais ocorrem por meio do uso de perfis raciais na abordagem policial e também no encarceramento em massa.
"Tudo começou quando a gente conversava
Naquela esquina ali, de frente àquela praça
Veio os homem e nos pararam
Documento por favor"2
O respectivo julgamento se insere no atual contexto social e político como um momento histórico, em que oportuniza ao STF manifestar-se acerca do racismo institucional que orienta as políticas criminais de segurança pública e, no caso específico, sobre o instituto legal da "busca pessoal" ocorrida nas abordagens policiais sem a "fundada suspeita" conforme determina o disposto no § 2o o art. 240 do CP:
§ 2o Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.
Percebe-se que o comando legal não abre oportunidade para argumentos tergiversantes ou supérfluos acerca de sua interpretação, nem possibilita agente que fuja à norma, eis que a suspeita deve estar fundada na ocultação de arma proibida ou objetos mencionados no dispositivo legal.
Contudo, são incontáveis as abordagens policiais arbitrárias perpetradas por policiais iletrados que subjugam e humilham pessoas negras e de grupos vulnerabilizados.
Não obstante, o art. 243, incisos I e II do mesmo Código, determina que o mandado de busca indique "o mais precisamente possível" (.) "no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifique", e ainda determina que seja mencionado "(...) o motivo e os fins da diligência;". Cabendo sua dispensa, apenas, nos termos do art. 244 do CP:
"A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar."
Vejam que a excepcionalidade criada pelo legislador à busca pessoal sem mandado é inequívoca, ao passo que em regra trata-se de diligência que pressupõe a exigência de manifestação do Poder Judiciário, por meio de ordem expressa e fundamentada, inclusive porque submete a pessoa inspecionada à constrangimento público e quando trata-se de pessoa negra, reforça sobre ele(a) a pecha de "bandido", "marginal", "trombadinha" e etc. Registra-se que o poder judiciário sempre adotou a conduta da manutenção das condutas baseadas em perfil racial, assumindo o papel de é corresponsável na continuidade do racismo institucional no sistema de justiça brasileiro.
Neste contexto, importa destacar que as opressões de raça, gênero, orientação sexual, território e etc. se interseccionam, tornando a discriminação sobre pessoas negras não heterocisnormativa mais acentuada, resultando na maior vulnerabilidade desses grupos ao escrutínio persecutório de uma busca pessoal fundada apenas no perfil, aa exemplo, citamos pessoas travestis negras ou de pessoas gays do gênero masculino e que expressam atributos de feminilidades, além de serem constantes alvos de chacota, sobre esses grupos indesejados se naturalizou a violência e perversidades como forma de elimina-los.
Nesta linha, lembramos a memória de Luana Barbosa3, mulher negra e lésbica que não expressava atributos de feminilidade em sua forma de se vestir e foi barbaramente espancada por policiais até a morte numa abordagem policial em que Luana ousou questionar a motivação.
No sentido de combater o perfilamento racial, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em relatório recente tratou da existência do racismo institucional e do perfilamento racial em decisão proferida no caso Acosta Martínez e outros versus Argentina4 reconheceu que os elementos constitutivos do caso possuem íntima conexão com o contexto brasileiro.
Já no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, em abril de 2022, foi proferiu decisão histórica no HC n. 158580, relatada pelo ministro Rogerio Schietti Cruz, onde reconheceu a existência do perfilamento racial nas abordagens policiais, destacando que a busca pessoal exige elemento objetivos, sólidos e concretos, a fim de evitar "a repetição - ainda que nem sempre consciente - de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural."
A decisão ainda adverte que, "O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como rotina ou praxe do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata", porque "Não satisfazem a exigência legal, por si sós", baseando-se apenas em intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial".
"Quem segurava com força a chibata agora usa farda
Engatilha a macaca
Escolhe sempre o primeiro negro pra passar
Escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista"5
Em que pese a discursiva mítica da democracia racial, o Brasil é um país segregado racialmente cuja expressão desse fato público e notório está nas avassaladoras e nefastas desigualdades raciais e sociais que atracam pessoas negras ao piores índices de desenvolvimento humanos, cita-se, a exemplo, as estatísticas carcerária. Além de o Brasil ser o terceiro país que mais encarcera no mundo, segundo Infopen, até dezembro de 2020 a população prisional era de 811.707 , sendo que 65,9% eram negras.
As buscas pessoais sem fundada suspeita baseada apenas no "tirocínio policial" que por sua vez é forjado no racismo institucional - ainda que inconsciente - não surgiu de forma aleatória, pelo contrário, ela encontra abrigo nas teorias da raça do final do século XVIII, início do século XIX.
Essas teorias apresentam como pano de fundo duas ideias essenciais, as noções de edenização e detração do ser humano, a partir das visões monogenista e poligenista que voltavam seus estudos para a origem do ser humano. Para essa corrente de pensamento, a classificação da humanidade iria de, o mais perfeito sendo aquele que mais se aproximava do Éden - daí a ideia de edenização do ser humano -, ao menos perfeito, aquele que mais se distanciava do Éden mediante a degeneração e detração da espécie, em decorrência de fatores como a mestiçagem6.
O racismo científico que fundou pseudociência da eugenia, fez com que o Brasil fosse enquadrado por cientistas da época, como Sylvio Romero e Tobias Barreto entre outros - como um caso único de degeneração da espécie em decorrência do alto grau de mestiçagem da população entre negros, indígenas e brancos. Aos olhos do mundo, éramos vistos como um povo degenerado, débil, inferior, detraído e "naturalmente" sujeito a prática da violência a depender do grau de mestiçagem.
A partir de Nina Rodrigues, os paradigmas da criminologia positivista de Cesere Lombroso passam a ser destrinchados e sedimentam os estudos das ciências criminais no Brasil. O negro que por mais de 400 anos foi submetido a condição de coisa - não humanos - e escravizado, quando livre recebe escrutínio persecutório da legislação penal, que cria tipos penais para criminalizar o modo de vida dos negros, como a vadiagem, a capoeira (art. 402 do CP de 1890) e ainda, o crime de curandeirismo, aludindo às práticas da religiões afro-brasileiras que, pasmem-se, ainda encontra-se previsto no art. 248 do atual Código Penal.
Na obra "Raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil"7, escrita em 1890, baseado nos estudos biológicos da raça - calcados no racismo científico - afirma:
"Posso iludir-me, mas estou profundamente convencido de que a adoção de um código único para toda a república foi um erro grave que atentou grandemente contra os princípios mais elementares da fisiologia humana Pela acentuada diferença da sua climatologia, pela conformação e aspecto físico do país, pela diversidade étnica da sua população, já tão pronunciada e que ameaça mais acentuar-se ainda, o Brasil deve ser dividido, para os efeitos da legislação penal, pelo menos nas suas quatro grandes divisões regionais, que, como demonstrei no capítulo quarto, são tão natural e profundamente distintas."
Referenciando-se em Tobias Barreto e Sylvio Romero, Nina Rodrigues desenvolve sua teoria da degeneração das raças graduada pela mestiçagem, estabelecendo quatro níveis de selvageria e degeneração de acordo com o grau de mestiçagem e defende a ideia de Códigos Penais distintos baseado nesses quatro níveis.
Isto é, aos brancos advindos da civilização europeia compreendidos pela "ciência" da época como "raças superiores" legislação mais branda e aos mestiços, esses compreendidos como "raças inferiores" quanto mais próximo do negro ou do "índio" , fosse, legislação mais severa seria a lei. Nesta obra, Nina ainda defende a redução da maioridade penal para os negros à idade de nove anos, baseado em argumentos igualmente racistas sobre o desenvolvimento psíquico, emocional e a capacidade de discernimento da criança negra, em teoria, nessa idade mais elevada que da criança branca.
Esta breve digressão na nossa história ilustra de forma límpida as raízes do racismo institucional nas forças de segurança pública brasileira, que em seu princípio foi criada para "caçar" negros ainda no período de D. João VI com a chegada da família real no Brasil, em 1808.
Com o forte arcabouço do racismo científico da época, o racismo institucional foi entranhado não apenas na legislação penal brasileira, mas também na formação acadêmica e militar desses servidores. E com a evolução dos tempos, a pecha do "escravo fujão" se converteu na pecha do "negro ladrão".
É por isso que é chegada a hora de o STF se manifestar de uma vez por todas e enfrentar o atroz racismo institucional no oportuno o julgamento do HC. 208240, de modo que venha a assegurar os fundamentos da Constituição brasileira do direito à cidadania, à dignidade humana e de construção de uma sociedade livre, justa, solidária e sem preconceitos prevista na Carta Magna, bem como os direitos fundamentais à não discriminação e à isonomia, previstos em seu art. 5º.
Considerando ainda que o texto constitucional repudia todas as formas de racismo (art. 5º, XLII) e todas as discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) é que concluímos ser pertinente, que o STF aplique interpretação aos arts. 240, §2º, 243, I e II, e 244 do CPP conforme o texto constitucional exigindo que a abordagem policial baseada em fundada suspeita fundada em elementos objetivos que possam ser racionalmente justificadas, descrita com a maior precisão possível em termo escrito aferida de modo objetivo e devidamente justificada por indícios e circunstâncias do caso concreto, para possibilitar responsabilização civil, penal e/ou administrativa de agentes que agirem sem tais elementos objetivos.
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1 Compositores: Marcelo Falcão Custodio / Marcelo De Campos Lobato / Alexandre Menezes / Nelson Meirelles De Oliveira Santos / Marcelo Fontes Do Nascimento Viana.
2 Trecho da música: Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.
3 Disponível aqui. Acessado em: 27.02.2023.
4 Disponível aqui. Acessado em 26.02.2023.
5 Idem 3.
6 SCHWARZ, Lilia Moritz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
7 RODRIGUES, RN. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011, 95p. ISBN 978-85-7982-075-5. Available from SciELO Books.