A autonomia do Banco Central é constitucional?
terça-feira, 18 de maio de 2021
Atualizado às 07:47
A lei complementar 179, de 24/02/2021, define os objetivos e dispõe sobre a autonomia do Banco Central e a exoneração de seu presidente e de seus diretores.
Argumenta-se que a LC 179/21 trata de cargos em autarquia, na Administração Pública Federal. Ocorre que a norma é oriunda de Projeto de Lei Complementar (PLC 19/2019) do Senado Federal. Haveria inconstitucionalidade formal, porque invadiu a iniciativa do Presidente da República (art. 61, da CF).
Ademais, sustenta-se que, como a estabilidade de preços, passa a ser o objetivo fundamental do Banco Central, a eficiência do sistema financeiro, obtendo o controle da burocracia, diretamente vinculada aos bancos, retirando "dos governos eleitos pela vontade da soberania popular qualquer possibilidade de ação e iniciativa de política governamental voltadas à população". Temas como esses deveriam ser aprovados por plebiscito ou referendo, pois necessitam de intenso debate e aprovação popular.
Argumenta-se, portanto, que a autonomia do Bacen retira a autoridade do governo eleito sobre a definição central da política econômica. É como se a esfera eleita do Poder Executivo abrisse mão de uma competência constitucional. O Presidente da República perderia o controle sobre a política econômica, pois não poderia demitir diretores e presidente do Banco Central. Ademais, não há fixação de regras substantivas de controle, fiscalização, proteção e transparência. O governo eleito, por exemplo, não teria controle da política monetária e inflacionária.
Analiso, inicialmente, se há inconstitucionalidade formal da Lei Complementar 179, de 24 de fevereiro de 2021.
O artigo 61, § 1º, da CRFB/88, trata da iniciativa privativa do Presidente da República, estabelecendo as hipóteses em que só ele poderá propor o projeto de lei. Dentre elas, está a "servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria" e a "criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI" (61, § 1, II, c e e).
O Banco Central do Brasil é uma autarquia federal, integrante do sistema financeiro nacional (art. 1º, II, da CRFB/88). Portanto, integra a Administração Pública Indireta, fruto da descentralização administrativa. A LC 179/21 define os objetivos do BACEN, dispondo sobre a sua autonomia, a nomeação e a exoneração de seu Presidente e de seus Diretores. Portanto, versa sobre a sua organização administrativa e regime dos seus servidores: como o Presidente e os diretores serão nomeados (Art. 4º), a duração dos mandatos (Art. 4º, §1º e 2º), disposições administrativas de condução da política monetária (Art. 2º), modos de exoneração dos Presidentes e Diretores (Art. 5º), natureza do Bacen (Art. 6º), etc.
A organização administrativa é como um quebra-cabeças montado. O legislador se vale de cada peça administrativa para montar um cenário lógico de condução administrativa em prol das políticas públicas. É o que faz a LC em comento. Ela dispõe sobre alguns modos de funcionamento do BACEN. Apesar de não dispor inteiramente sobre a autarquia, determina parte substancial dela, inclusive o grau de autonomia do ente. A autonomia é a peça-chave da descentralização administrativa, a razão pragmática da Administração Indireta. A LC 179/21 versa sobre organização administrativa, dispondo sobre os servidores públicos do Bacen.
Ao versar sobre o Presidente e seus servidores, ela estabelece o seu regime jurídico, pois disciplina as relações estatutárias ou contratuais do Estado com os seus agentes. Por exemplo, formas de nomeação e provimento.
Foi o Senado Federal que deu início ao processo legislativo, que culminou na LC 179/21. Não foi o Presidente da República. Como a matéria é de iniciativa privativa do Presidente da República (61, § 1) e o vício de iniciativa é insanável pela sanção presidencial, não há outra saída: essa lei complementar é formalmente inconstitucional.
Inclusive, na ADI 6337, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser inconstitucional norma da Constituição do Estado de Minas Gerais, que permitia a convalidação de vício de iniciativa em ato posterior do governador. O processo legislativo é uma lógica que deve ser íntegra do início ao fim. Analisa-se cada etapa autonomamente, para verificar a sua higidez.
O Presidente da República não pode convalidar o vício de iniciativa, porque ele não versa sobre a pessoa do Presidente, que concorda ou não com o projeto de lei. O vício de iniciativa é a proteção ao princípio da separação das funções do poder e, diz respeito, a temperatura das relações entre as funções do poder. Assim, a sanção do presidente versa sobre a constitucionalidade ou o interesse público da norma. Ela não corrige inconstitucionalidade, porque o Presidente não tem soberania sobre a separação das funções do poder. Pelo contrário, ele tem o dever de manter a temperatura das relações das funções em parâmetros de constitucionalidade.
No que se refere à alegação de inconstitucionalidade material, trato sobre ela brevemente, uma vez que minha opinião constitucional já está logicamente resolvida pela etapa anterior de análise de constitucionalidade.
Enquadro a discussão da constitucionalidade material no âmbito da separação das funções do poder, porque ela, na trilha de Bruce Ackerman, não se restringe aos presidentes e parlamentos, mas também ao status das agências administrativas. Não enquadro a discussão no âmbito de constitucionalidade de fixação da política econômica, porque não verifico onde que, pragmaticamente, direitos fundamentais seriam violados pela estratégia administrativa do ponto de vista econômico. Parece-me, aqui, que se trata mais de liberdade de organização administrativa do que propriamente vedação constitucional. Que jurista poderia dizer, a priori, se a autonomia do Bacen seria melhor ou pior para os direitos fundamentais? Só é possível constatar isso por meio do direito comparado ou do experimentalismo constitucional. E, para experimentar, é necessário testar essa nova estratégia do Bacen. Depois, se der errado, volta-se aos parâmetros anteriores.
Já no meu enquadramento, ou seja, no plano da separação das funções do poder, a Constituição não impede que haja essa reestruturação administrativa e nem a LC 179/21 perturba o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido. O que a Lei faz é estabelecer níveis maiores de autorrestrição da Administração Direta em relação à Administração Indireta. Os Presidentes continuariam tendo gerência sobre o sistema financeiro nacional e a política econômica, mas com mais restrições por escolha legislativa.
Bruce Ackerman afirma que não devemos buscar salvação em engenharias constitucionais. Sociedades são diferentes e podem requerer organizações distintas. A boa engenharia constitucional combina sensibilidade cultural e realismo econômico. Parece-me que não há violação às relações do Poder Executivo com ele mesmo e nem haveria ingerência indevida de um poder ao outro, uma vez que uma norma dessas só será válida, se o processo legislativo iniciar pelo próprio Poder Executivo.
Desse modo, a reserva da técnica em uma sociedade varia de acordo com as escolhas legislativas. Os status das agências administrativas dependem do procedimento democrático, mas não estão enrijecidos pela Constituição. A organização administrativa não pode ser estática, porque ela serve à efetividade dos direitos fundamentais. Ela não é teleologicamente flexível. Ela é pragmaticamente flexível, ou seja, muda para ser mais efetiva e atingir melhores resultados para os povos brasileiros.
Nessa coluna, não defendo que o conteúdo da autonomia do Bacen será melhor para o Brasil. Defendo, apenas, que a decisão sobre essa autonomia não parte da Constituição. Ela não fixou uma engenharia constitucional única. A constituição tem fins administrativos, mas não intui organização administrativa.
Se uma nova estruturação do Bacen acarretar em prejuízos para os povos, eles e elas irão às ruas buscar uma nova engenharia administrativo-constitucional. Pode ser que decidam pressionar o próprio Bacen, que com o povo terá que lidar.
Repito que me parece dificílimo intuir se determinados aspectos da política econômica seria melhor gerida pela Administração Indireta ou pelo Presidente da República. Não acredito que essa discussão seja meramente ideológica, porque um Presidente do Bacen pode ser alçado ao cargo em um governo popular e lá ficar por mais tempo, impedindo mudanças reacionárias de um futuro governo populista e autoritário. É uma questão de engenharia mesmo.
Não há inconstitucionalidade material, mas sim pragmatismo e experimentalismo constitucional.
OBS: Este parecer foi originalmente apresentado à Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros - IAB.