O STF e o RE 1.010.606: Há, no ordenamento jurídico brasileiro, um "direito ao esquecimento"?
terça-feira, 2 de fevereiro de 2021
Atualizado às 07:48
"[...] nem todos os vestígios que deixei na minha vida devem me perseguir implacavelmente,
em cada momento da minha existência".
(Stefano Rodotà)
Desde há muito se cogita acerca da recepção ou não do assim chamado "direito ao esquecimento" no ordenamento jurídico brasileiro. Tribunais1 e juristas2 têm derramado rios de tinta sobre este controvertido tema, indo desde aqueles que o entendem como uma forma de censura3 até os que o veem como um novo direito da personalidade4. Finalmente, o plenário do STF, por ocasião do julgamento do RE 1.010.606, marcado para o dia 3 de fevereiro, terá a oportunidade de se manifestar a respeito da controvérsia e resolvê-la de uma vez por todas.
O recurso prestes a ser julgado pela Corte Suprema, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, diz respeito ao notório caso Aída Curi. Costuma-se dizer que o assassinato de Aída Curi, por força de suas circunstâncias horrendas, simboliza o fim da inocência do bairro de Copacabana. Acontece, porém, que o programa "Linha Direta Justiça", da Rede Globo, exibiu, anos após o ocorrido, uma versão dramatizada do crime - o que levou os familiares de Aída a ingressarem na Justiça atrás de indenização pela recordação destes fatos.
Contudo, o objetivo desta coluna é ir além dos pormenores do caso citado acima. Até mesmo porque, como bem se sabe, todo recurso extraordinário cuja repercussão geral foi reconhecida trata de questões que ultrapassam os interesses subjetivos das partes5 e dizem respeito à sociedade como um todo. Assim, faremos, nas linhas que se seguem, um breve recorte em torno do instituto do direito ao esquecimento e terminaremos por apontar aquela que reputamos como sua faceta mais legítima.
Etimologicamente, foram os franceses que, na segunda metade do século passado, cunharam a expressão direito ao esquecimento (droit a l'oubli)6. Todavia, veio do Tribunal Constitucional Alemão, pouco tempo depois, aquela que é considerada uma das decisões mais paradigmáticas na matéria: o caso Lebach7.
Na ocasião, o Tribunal germânico reconheceu que o sujeito condenado e preso pelo homicídio de vários soldados, cometidos durante um roubo de armas, tinha direito de obstar a veiculação de documentário que representaria o ocorrido, meses antes de sua soltura. Em linhas gerais, prestigiaram-se, na decisão, a ressocialização do prisioneiro e a ausência de interesse público na informação em questão, notadamente em virtude do longo período transcorrido desde a prática do crime8.
Mais recentemente, ainda no âmbito europeu, há que se destacar a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia no caso Google Spain v. Mario Costeja González. Na hipótese, um cidadão espanhol processou a big tech e pediu para que ela desindexasse de sua página resultados de buscas que fizessem menção a uma cobrança de dívida por ele sofrida no passado9. Não obstante as diversas críticas endereçadas à decisão da Corte, vale ressaltar, como aspecto positivo, que ela destaca um atributo central para a efetivação do direito ao esquecimento: a sua executoriedade no ciberespaço.
Em um primeiro plano, ninguém desconhece que, em uma sociedade digitalizada como a nossa, onde as pessoas passam cada vez mais tempo nas redes sociais gerando dados e informações a respeito de suas vidas, a tendência natural é a preservação da memória; lembrar virou a regra, e esquecer, por sua vez, a exceção10. Na feliz síntese de Simón Castellano, podemos afirmar que nossos dados são gravados na rede como se fossem uma tatuagem, que nos seguirá pela vida toda11.
Nesse cenário, em que pese a hodierna produção normativa que tem ocorrido na matéria de dados pessoais, não se tem ainda solução para o equacionamento de noções tão caras à proteção de dados como a autodeterminação informativa vis-à-vis do direito ao esquecimento. O GDPR, por exemplo, no âmbito do direito comunitário europeu, disciplina o tema sob o epíteto de "direito a ser esquecido"12, trazendo provisões no sentido do apagamento de dados a ser solicitado pelo seu respectivo titular.
Entre nós, a LGPD, de forma confluente ao apresentado acima, trouxe em seu bojo, na figura de um direito reconhecido ao titular em face do controlador dos seus dados, o conceito de eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto na lei13. Sem embargo, nem a extensa vacatio legis pela qual o referido diploma normativo foi submetido fez com que ele entrasse em vigor com soluções definitivas para dilemas como este. A nosso ver, assim como na previsão do GDPR, a norma da LGPD não positiva o direito ao esquecimento, mas meramente regula o direito à exclusão de dados pessoais, em observância à autodeterminação informativa do seu titular.
Além desse, outro ponto problemático são as complicações provocadas por mecanismos como o VPN14, que permitem ao seu usuário navegar de forma anônima por conteúdos e serviços disponíveis apenas em outros países. Se o direito processual, por si só, já possui embaraços em aplicar suas disposições no exterior15 - o que se revela particularmente dramático em tema tão litigioso como o direito ao esquecimento -, a matéria ora tratada impõe outra dificuldade, de natureza técnica, e não jurídica, igualmente capaz de frustrar os interesses de quem vai a juízo buscando a remoção de conteúdos indesejados.
Posto isto, lançamos a seguinte proposição: existe alguma esfera para o direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro? A resposta, neste ponto, parece-nos afirmativa. Em verdade, até mesmo ferrenhos críticos ao instituto reconhecem, em seus próprios termos, algum campo de incidência para a referida categoria16.
Para nós, em consonância com o advogado pelo IBDCIVIL na condição de amicus curiae do caso a ser julgado pelo STF, o direito ao esquecimento subsiste enquanto resistência contra a recordação opressiva dos fatos, vale dizer, contra a recordação que se configura, a um só tempo, desatual e sensível, obstaculizando a plena realização da identidade da pessoa humana. Em última análise, partindo-se da ótica do direito civil-constitucional, o direito ao esquecimento, tomado nestes termos, configura corolário da própria noção de dignidade da pessoa humana, de resto uma das mais caras ao direito brasileiro17.
Fundamento da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana, consignado no art. 1°, inciso III, da Constituição Federal, desempenha, dentre outros, o importantíssimo papel de identificação de direitos fundamentais, de modo a suprir as lacunas e omissões normativas que impeçam a tutela integral da pessoa humana. Noutras palavras, a dignidade humana atua como "fonte de direitos fundamentais não enumerados"18 no catálogo constitucional.
O direito ao esquecimento, por seu turno, afigura-se como uma das expressões merecedoras de tutela da dignidade humana. Por essa razão, parece-nos correto afirmar sua natureza materialmente fundamental, ainda que ele não esteja expressamente previsto no texto da Constituição19. Sua fundamentalidade implicará, por conseguinte, na sua subordinação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, especialmente relevante na (comum) hipótese de colisão com outros direitos fundamentais20 (v.g, direito à informação e à liberdade de expressão).
Nestas situações, a solução adequada será a ponderação, in casu, a fim de garantir a compatibilização dos direitos em conflito, de forma a assegurar que sejam salvaguardados os instrumentos necessários para o livre desenvolvimento da pessoa humana. Para tanto, faz-se necessário apontar alguns parâmetros para balizar o trabalho do intérprete, quais sejam: (i) o interesse público na difusão da notícia; (ii) sua atualidade, pertinência e veracidade; (iii) a essencialidade do conteúdo para a transmissão da informação; (iv) o papel exercido pela pessoa retratada na vida pública21; dentre outros.
Além disso, é importante salientar que o direito ao esquecimento não se limita apenas à exclusão do conteúdo indesejado. Com efeito, caberá ao magistrado determinar a forma mais adequada para fazer cessar a violação do direito (v.g. correção da notícia, sua contextualização, ou, como ultima ratio, sua remoção).
A título de conclusão, afirmamos que o Supremo possui em mãos uma oportunidade ímpar. Muitas das críticas endereçadas ao instituto do direito ao esquecimento têm como objeto o conteúdo e extensão que lhe são dados pelas decisões que o invocam, e não propriamente a noção de um direito ao esquecimento em abstrato.
O STF, além de decidir se os familiares de Aída fazem jus à indenização pleiteada, tem a chance de pronunciar-se a respeito do reconhecimento ou não do direito ao esquecimento, e, tão importante quanto, definir o seu exato contorno. Desta forma, fazendo uso da feliz expressão de Luís Roberto Barroso22, como na vida devemos ser janela, e não espelho, chegou a hora da jurisdição constitucional fazer o mesmo, reconhecendo, de uma vez por todas, essa importante faceta da proteção à pessoa humana.
__________
1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.334.097/RJ. Relator: Min. Luís Felipe Salomão. Julgamento: 28/05/2013. Órgão Julgador: 4° Turma.
2 SARLET, Ingo Wolfanf. Tema da moda, direito ao esquecimento é anterior à internet. Disponível aqui.
3 BINENBOJM, Gustavo. Liberdade Igual: o que é por que importa. Rio de Janeiro: História Real, 2020. pp. 31-33.
4 CORDEIRO, Carlos José; PAULA NETO, Joaquim José. A concretização de um novo direito da personalidade: o direito ao esquecimento. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 4, n. 2, 2015. Disponível em:
5 Art. 1035, §1º, do CPC.
6 "Foi naquele país que se cunhou a expressão "direito ao esquecimento" (droit a l'oubli), pelo Professor Gerard Lyon-Caen, em comentário a uma decisão judicial proferida em 1965, no affaire Landru, em que a ex-amante de um famoso serial killer pretendia obter reparação de danos pela exibição de um filme que retratava fatos do seu passado, que ela desejava que fossem esquecidos" (Sarmento, Daniel. Liberdades Comunicativas e "Direito ao Esquecimento" na Ordem Constitucional Brasileira. Parecer. p. 36).
7 35 BVerfGE 202 (1973).
8 Sarmento, Daniel. Liberdades Comunicativas e "Direito ao Esquecimento" na Ordem Constitucional Brasileira. Parecer. p. 35.
9 Lemos, Ronaldo. Esquecer o direito ao esquecimento. Disponível aqui.
10 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. New Jersey: Princeton, 2009. p. 106.
11 CASTELLANO, Simón. The Right to be Forgotten under European Law: Constitutional Debate. Lex Eletronica, vol. 16.1, Winter 2012, p.4.
12 Art. 19 do Regulamento (EU) 2016/679.
13 Art. 18, IV c/c art. 5º, XIV, ambos da LGPD.
14 A sigla anglófona, traduzida livremente para o português, seria algo como "Rede Virtual Privada".
15 DINAMARCO, Cândido. Instituições de Direito Processual Civil, vol. I. São Paulo: Malheiros, 2017, pp. 120-122.
16 Sarmento, Daniel. Liberdades Comunicativas e "Direito ao Esquecimento" na Ordem Constitucional Brasileira. Parecer. pp. 43-47.
17 Moraes, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
18 Sarmento, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2° edição. Belo Horizonte: Fórum, 2016. pp. 85 e 326.
19 No mesmo sentido: Schreiber, Anderson. Direito ao Esquecimento e Proteção de Dados Pessoais na lei 13.709/2018: distinções e potenciais convergências. In: Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no direito brasileiro, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, 1° ed., p. 381.; e, SARLET, Ingo Wolfgang; FERREIRA NETO, Arthur M. O direito ao "Esquecimento" na Sociedade da Informação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 49.
20 SARLET, Ingo Wolfgang. Vale a pena relembrar o que estamos fazendo com o direito ao esquecimento. Disponível aqui.
21 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; BARLETTA, Fabiana Rodrigues. O direito ao esquecimento: uma expressão possível do direito à privacidade. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coords.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 270.
22 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2019. 8º edição. p. 22.