Trabalho e meio ambiente - Males da modernidade: Burnout, Boreout e Brownout*
segunda-feira, 17 de março de 2025
Atualizado às 14:57
A marcha dos insensatos
Estamos a bordo de um navío à deriva, sem destino, sem visibilidade, sem bússola, com mar tempestuoso e à beira do naufrágio. É difícil saborear os frutos da modernidade sabendo estar em risco o futuro de nossos filhos e netos.1
O meio ambiente saudável é direito de propriedade coletiva, integrando a terceira geração dos direitos fundamentais.
Pertence a todos e a cada individuo, assim como o direito à paz e ao desenvolvimento econômico e social.
Não se pense na proteção ambiental em exclusivo beneficio do ser humano. Todas as formas de vida animal, vegetal e mineral exigem relação ecologicamente equilibrada, com preservação dos rios, oceanos, mares e atmosfera.
Capital e trabalho parecem estar unidos - o que é historicamente raro - no objetivo de destruição da natureza.
Há uma ruptura com valores que pareciam plenamente assentados na trajetória dos direitos humanos da segunda metade do século XX.
A concentração sem precedentes da riqueza faz milionários da noite para o dia, bilionários e até trilionários, aumentando a influência do poder económico sobre o estado nacional e organismos internacionais.
Há um enfraquecimento das democracias liberais, inclusive porque a humanidade resolveu o problema da produção, mas não distribui com justiça a riqueza, gerando enorme desigualdade em todos os continentes.
O estado democrático é solapado ou mesmo destruído por regimes autoritários e líderes populistas, que se aproveitam das regras da democracia para corrompê-la com demagogia e fraudes eleitorais.
Outros se agarram ao poder pela força das armas, perseguindo opositores e aparelhando o Estado com seus cúmplices.
Nos Estados Unidos da América, Donald Trump é um extremista de direita que, no primeiro dia de mandato, se retirou do Acordo de Paris e está promovendo verdadeira devastação com a guerra comercial e o negacionismo climático.
Esse retrocesso cultural, ambiental, social e político é fomentado pela financeirização da economia, o uso criminoso das redes sociais, o desprezo pela ciência e os direitos humanos.
Tudo isso afeta a sociedade do trabalho numa conjuntura social em que os trabalhadores estão divididos, alienados e segmentados.
Dilema do Direito do Trabalho
O direito do trabalho, para ser funcional, racional e eficaz, atuando como instrumento de política social e econômica, deveria se voltar para a proteção de todos os que trabalham e não apenas dos empregados.
As circunstâncias históricas atuais são muito diferentes das vigentes na formação da sociedade industrial.
O trabalhador contemporâneo está distante do protótipo weberiano do século XX e se tornou uma realidade proteiforme. Vive imerso nas redes sociais, tomado por forte ímpeto individualista que inibe a ação coletiva.
O tradicional empregado se defronta com teletrabalhadores nacionais e internacionais, autônomos, microempresários, precários, informais e plataformizados.
São concorrentes no mercado de trabalho e na luta pela sobrevivência. Aliás, o regime de emprego não significa necessariamente melhor qualidade de vida.
A chamada Geração Z, com peculiar ética do trabalho, rejeita normas rígidas e busca mais liberdade e flexibilidade.
O quadro se agrava diante da multiplicação de pequenas e médias empresas de alta tecnologia, com regimes flexíveis, além da instabilidade trazida pelas constantes fusões, aquisições e arranjos corporativos.
É a modernidade líquida.
Mudanças nos processos produtivos, inovações tecnológicas e o teletrabalho descentralizam a força laboral, modificam o conceito de local e ambiente para alcançar outros espaços.
Rompem com as ideias de estabelecimento, hierarquia, organograma e subordinação. Subvertem a clássica posição hierárquica do trabalhador.
Os empregados são mais autônomos e os autônomos mais subordinados.
O paradoxo autônomo/subordinado e subordinado/autônomo cria figuras ambíguas: autônomo exclusivo, autônomo dependente, microempreendedor, teletrabalhador, trabalhador eventual, precário, temporário, intermitente etc.
Essa proliferação de trabalho atípico atende ao desejo de muitos e se tornou uma realidade irreversível.
Mas é claro que há aspectos sociologicamente negativos:
a) precarização dos vínculos jurídicos e econômicos;
b) isolamento social e profissional;
c) impulso individualista;
d) promiscuidade entre vida profissional e familiar;
e) jornadas exaustivas.
Até trabalhadores vulneráveis querem liberdade e autonomia, frequentemente na clandestinidade, à margem da lei e das estruturas normativas. Classificam-se como orgulhosos empreendedores e são assim tratados por plataformas e tomadores de serviço.
Seu exacerbado individualismo leva à indiferença ou mesmo aversão a sindicatos que, por vezes, usam-nos como barganha em negociações coletivas que só beneficiam o empregado tradicional.
Essa alienação coletiva desmobiliza a sociedade diante do extremismo e negacionismo, dificultando a evolução da agenda ambiental.
3 - A nova ordem pública ambiental
A Sociedade 4.0, a Gig Economy e a inteligência artificial exigem o alargamento conceitual do meio ambiente de trabalho virtual e físico.
As relações humanas são remotas mediante conexões de internet, nuvens e plataformas digitais, gerando um cenário de hiperconexão.2
O ambiente digital cria novas doenças e transtornos mentais, que já haviam se potencializado ao longo da pandemia de 2020.
A introdução das novas tecnologias, inclusive a inteligência artificial, exige acompanhamento, treinamento e formação profissional3, ou seja, tratamento amplo, expandido e multidisciplinar.
A proteção ambiental vai além dos agentes físicos, químicos ou biológicos, devendo incluir transtornos mentais como burnout, mobbing, harassment, bullying etc.
A telessubordinação e o controle abusivo da atividade laboral afetam todos os tipos de trabalhador.
O excesso de conectividade viola o direito básico aos descansos e à desconexão, prejudicando a vida familiar, social, cultural e até a participação política do cidadão.
Segundo Freitas e Boynard, "o burnout constitui uma resposta ao estresse laboral crônico, que se desenvolve como o estágio final de um processo de adaptação ou não entre as demandas do ambiente e os recursos do indivíduo, que apresenta uma série de atitudes negativas em relação ao seu ambiente de trabalho, à organização e às pessoas relacionadas".
Outra síndrome, a do boreout, é fruto da desconsideração ou desprezo pela capacidade técnica do trabalhador.
O brownout, "apagão" energético sem necessária relação com exigências profissionais, é a perda de motivação e de sentido no trabalho4.
Revisão da teoria do risco profissional
A moderna abordagem se afasta dos conceitos estreitos de insalubridade, periculosidade ou mesmo penosidade, alcançando dimensão axiológica mais ampla e densa: a saúde física e mental.
Tornou-se anacrônica a classificação prévia e abstrata dos fenômenos físicos, químicos ou ambientais danosos com base na teoria do risco profissional.
Sua tipificação à luz dos acidentes ou doenças do trabalho está superada, inclusive porque vinculada a padrões mecânicos e analógicos e, ademais, destinada basicamente aos clássicos empregado e empregador.
Os riscos ao trabalho humano na atualidade transcendem as ocupações tradicionais.
As distintas formas de adequação dos fatores produtivos, da organização do trabalho e das relações interpessoais repelem classificações prévias, inclusive porque afetam interesses difusos e coletivos.
Passa-se do risco profissional, com todas as suas limitações objetivas e subjetivas, para o risco labor-ambiental, alinhado com o equilíbrio do meio ambiente em todas as suas acepções.5
No Brasil, a segurança e medicina do trabalho se concentram no ambiente do empregador, conforme normas elaboradas pelo Ministério do Trabalho.
A Reforma Trabalhista de 2017, com sabedoria, exigiu o mesmo direito para empregados da empresa prestadora de serviços que atuam no estabelecimento do tomador (artigo 4º.C da lei 6019/74).
Por interpretação, é razoável aplicá-la a prestadores autônomos e eventuais.
A Declaração sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998 impõe obrigações a todos os Estados Partes, independentemente da ratificação das convenções da Organização Internacional do Trabalho.
Após 25 anos foi adicionado o quinto princípio, que se aplica a todos os trabalhadores, formais ou informais, tratando do ambiente de trabalho seguro e saudável.
Responsabilidade social corporativa
Essa realidade pede equilíbrio normativo entre "hard law", com regras de ordem pública indisponíveis, e "soft law", consistentes em negociação sindical e responsabilidade social corporativa.
A economia social de mercado contemporânea combina dois valores essenciais: saúde e meio ambiente.
A verdadeira riqueza das nações é medida pelo respeito à natureza, aos direitos humanos e à ética. Não podem ser legitimados lucros que resultam do sacrifício da saúde da força de trabalho.
A empresa moderna gera valor para investidores, trabalhadores, fornecedores, consumidores e comunidade. É o capitalismo de stakeholders, com valores sociais e políticos que vão além do mero interesse do investidor (acionista).
O padrão ESG (environment, social and governance ) vem sendo adotado como critério de investimento no mercado de capitais.
O padrão ESG aumenta o nível de socialização da empresa para atender aos diversos interesses nela concentrados, inclusive dos consumidores.
Propõe uma postura cívica que afeta a concepção jurídica da empresa.
Segundo consultorias internacionais, até 2025 cerca de 60% dos fundos de investimento deveriam observar critérios ESG, ou seja, quase 9 bilhões de dólares americanos envolvendo 80% dos investidores institucionais em suas operações.
É certo que esse ritmo pode ser menor, a depender das políticas do governo Trump no campo da ecologia.
O certo é que empresas que desrespeitam direitos humanos e atacam a natureza tendem a ser rejeitadas pelos investidores.
A ONU, por exemplo, exige que instituições financeiras e de seguros cumpram o padrão ESG em análises de risco, crédito e investimento.6
Em 2006 a OIT publicou a "Declaração sobre Justiça Social para uma Globalização Justa", que avalia as vantagens comparativas entre os países em termos de níveis de proteção laboral.
O Banco Central do Brasil desde 2014 emite resoluções para controlar os riscos climáticos na atividade empresarial7.
A certificação ISO 26000, criada em 2010, mede a responsabilidade social corporativa, inclusive com base nas convenções da OIT.
Os próprios consumidores exigem produtos social e ambientalmente sustentáveis.8
Portanto, não basta que a empresa cumpra as leis. Ela deve se limitar por meio de códigos internos que são um compromisso suplementar ao imposto na lei estatal.
É inegável sua eficácia em questões como agressão ao meio ambiente, constrangimento, violência, assédio sexual, assédio moral e outros.
Eliminação de agentes nocivos
Em 2022 a Organização Internacional do Trabalho acrescentou o ambiente de trabalho seguro e saudável à Declaração sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, aplicando-se a todos os trabalhadores.
Esse histórico documento obriga a todos os Estados-membros da OIT, independentemente de ratificação das Convenções específicas.
A Convenção 148 aborda os riscos ocupacionais decorrentes da poluição, ruídos e vibrações, e propõe eliminar os danos à saúde e não apenas neutralizá-los.
A Convenção 190, de 2019, trata da saúde física e mental e tem pouco mais de 20 ratificações.
Aplica-se a todos os trabalhadores públicos e privados, independentemente de sua situação contratual, bem como a estagiários, voluntários e até mesmo a quem procura emprego. Não foi ainda ratificada pelo Brasil.
É necessária a revisão dos conceitos legais para eliminação ou pelo menos neutralização dos danos físicos e mentais eis que, segundo estudos, os Equipamentos de Proteção Individual são insuficientes para afastar muitos agentes nocivos.
A mudança climática está provocando ondas de calor jamais vistas, exigindo novos critérios de proteção da saúde.
Espera-se que a tecnologia elimine ou atenue eficazmente os males do trabalho para a saúde e a natureza.
É necessário caminhar para a noção de "habitat" laboral, onde o meio-ambiente seja fator de qualidade de vida e harmonia com os ecossistemas.
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*Colaborou na pesquisa a mestranda da FADUSP Gabriella Francynni Rodrigues da Silva.
1 Maalouf, Amin, Le déreglement du monde, Éditions Grasset & Fasquelle, Paris, 2009, p. 12)
2 Carloto, Selma. Bannak, Daniela Haline. Análise jurídica do meio ambiente laboral no contexto da sociedade 4.0: direitos fundamentais e responsabilidades empresariais. Revista LTr. N. 87-12. 2023. p. 1497-1506).
3 Gauriau, Rosane. Riscos profissionais, tecnologias "inteligentes", saúde, segurança e meio ambiente do trabalho. Revista LTr. N. 87-09. 2023. p. 1078-1088.
4 Freitas, Cláudio. Boynard, Carolina. A saúde mental no trabalho, a cultura do assédio e a síndrome de burnout, boreout e brownout. Revista LTr. N. 87-08. 2023. p. 946-955.
5 Ebert, Paulo Roberto Lemgruber. O meio ambiente do trabalho equilibrado e a conformação do direito fundamental ao trabalho digno, in Delgado, Gabriela Neves. Direito fundamental do trabalho digno no século XXI. São Paulo, LTr, Vol. I., 2020. p. 263-273).
6 Disponível aqui.
7 Fundação Getúlio Vargas, disponível aqui.
8 Revista Veja.