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Pejotização e reclamação constitucional: Colocando os pingos nos is

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Atualizado às 08:06

I. Introdução.

Os debates na sessão da 1ª turma do STF da última semana, no julgamento de uma reclamação constitucional (Rcl 67348), repercutiram neste Migalhas, na mídia, em redes sociais e grupos de advogados.

De um lado ressoou a ponderação do min. Flávio Dino quanto ao Brasil se tornar "uma nação de pejotizados" desprotegidos. De outro, a advertência do min. Alexandre de Moraes de que as ações trabalhistas e as decisões judiciais passam ao largo de uma exigência ética e jurídica decorrente do reconhecimento do vínculo de emprego na terceirização: O ressarcimento dos cofres públicos - por parte do reclamante - pelos tributos e contribuições que, em virtude do tratamento fiscal dado à pessoa jurídica por ele constituída, deixou de recolher.

Como se diz na França, on ne peut avoir le beurre et l'argent du beurre.

Muitos não aceitam que os precedentes do STF sobre terceirização (vg. ADPJ 324) possam viabilizar o manejo de reclamações constitucionais contra decisões das cortes trabalhistas que declaram nulos contratos entre pessoas jurídicas e, como consequência, reconhecem o contrato de emprego.

O objetivo da coluna de hoje é analisar os mecanismos e lançar luzes sobre o que está em jogo nesse crescente confronto entre decisões da Justiça do Trabalho e do STF.

II. Para além do emprego.

A linha divisória entre trabalho independente e subordinado é cada vez menos identificável por conta das práticas gerenciais e das novas tecnologias, que atenuam ou fazem desaparecer qualquer traço de submissão.

Quando se valoriza o acervo intelectual do trabalhador, ele passa a deter parcela decisiva dos meios de produção, comprometendo a visão dicotômica tradicional.

Acirra-se por isto a distinção entre subordinação técnica e jurídica. O acervo intelectual do trabalhador moderno não permite mais mensurar capacidade produtiva em horas de trabalho ou peças produzidas.

Quanto maior o nível de profissionalização e qualificação, mais larga a autonomia no trabalho, tornando muitas vezes obscura a diferença entre subordinado e independente.

O problema é reconhecido nos mais diversos modelos jurídicos, como revelou na década de 90 o relatório Boissonat1.

Com a rarefação ou desaparecimento da subordinação em várias tarefas, é natural e cada vez mais frequente a escolha de outros tipos contratuais.

Novas formas de prestação de serviços, muito vivas e pujantes no processo econômico, chocam-se com a proteção baseada na subordinação, que se lastreia em suposta homogeneidade da classe trabalhadora e na técnica coletivista.

O moderno conceito de proteção, que reconhece as diferenças e as várias formas de inserção no mercado de trabalho, repele teorias que estendem tratamento homogêneo aos trabalhadores.

O emprego não tem o mesmo protagonismo. Ampliaram-se as formas de trabalho, com a revalorização dos contratos civis e a retomada do diálogo entre o direito do trabalho e o direito civil.

Há várias décadas o notável professor Adrián Goldin2, ao cuidar do futuro do direito do trabalho, identificou um processo de deslaboralização dos prestadores de trabalho, especialmente na atividade intelectual.

O conhecido relatório da Comissão das Comunidades Europeias a respeito das transformações do direito do trabalho, coordenado por Alain Supiot, confirmou o desaparecimento ou no mínimo transformação da subordinação fordista3.

Reconhece a tendência à redução do campo de aplicação do direito do trabalho que, embora não se afaste totalmente do conceito estrito de subordinação jurídica, não pode ignorar a grande desenvoltura do trabalho autônomo ou independente. Textualmente , «cette tendance est le corollaire des politiques législatives et jurisprudencialles conduites pour ouvrir un espace plus large au travail indépendant »4.

O mesmo se vê no direito espanhol, conforme Antonio Baylos5.

Profissionais de extrema especialização e conhecimento não estão submetidos à homogeneidade da legislação trabalhista, como se empregados fossem, quando, no livre exercício da liberdade contratual, trabalham em regime de autonomia ou constituem empresas prestadoras de serviços.

Sua atividade normalmente não se desenvolve com subordinação; ao contrário, eles próprios determinam o conteúdo e as linhas centrais de suas tarefas.

Potencial ou efetivamente, aparecem também como empregadores ou tomadores de serviço, contratando e remunerando profissionais para a concretização de sua atividade empresarial.

Trata-se de fenômeno mundial e, em diversos países, a solução encontrada está na redistribuição da proteção legal com a regulamentação de novos tipos contratuais (parassubordinado, autônomo economicamente independente, microempresário, por projeto etc).

Lamentavelmente, em nosso país, fortes correntes de pensamento se recusam a enxergar a conveniência e oportunidade da proteção fora dos lindes do emprego. Exemplo recente é a dificuldade de avanço de importante projeto de lei para regulamentação dos aplicativos de transporte de passageiros. Apesar de originado em consensos e concessões de representantes dos trabalhadores e setores envolvidos, permanece travado no Congresso Nacional.

Essa inércia do legislador faz com que, na prática, havendo conflito sobre a qualificação jurídica da relação de trabalho, seja o juiz constrangido a escolher entre a proteção total (inclusão na CLT) ou a desproteção (exclusão da CLT).

Definitivamente, a realidade não é dicotômica como a apresentada pelo min. Flávio Dino: proteção ou desproteção.

Temos que nos empenhar em implantar uma verdadeira redistribuição dessas normas tutelares abundantes para os empregados e escassas para outros vulneráveis no mercado de trabalho, inclusive como forma de reduzir os níveis absurdos de informalidade.

 III. Reclamação constitucional. Tese e ratio decidendi.

O STF, em reclamações constitucionais, cassa decisões da Justiça do Trabalho que proclamam a ilegalidade de outros tipos contratuais e só admitem a relação empregado-empregador.

A reclamação constitucional, como se sabe, visa assegurar a autoridade das decisões do STF em face de qualquer sentença e de qualquer grau de jurisdição.

Nas hipóteses de afronta a entendimento do STF consagrado em ADI, ADC (art. 102 da CF), ADPF (art. 102 da CF e lei 9882/99) ou súmula Vinculante (art. 103-A da CF), independentemente dos recursos cabíveis no caso concreto, pode-se desde logo apresentar reclamação constitucional.

A medida também cabe quando há desrespeito a tese fixada em tema de repercussão geral (art. 987 do CPC), mas nesse caso é preciso aguardar o esgotamento dos recursos cabíveis nas instâncias ordinárias (art. 988, § 5º, II, do CPC).

A lógica é preservar a segurança jurídica e enraizar a cultura de precedentes, embora seja inegável a resistência de parte da magistratura trabalhista. Bom exemplo está em três sucessivas reclamações constitucionais que ajuizamos em face de sentenças de um mesmo juiz que se recusava a acatar a decisão vinculante do STF acerca dos critérios de atualização dos créditos trabalhistas. Ora, a independência do magistrado tem limites. O desafio à autoridade do STF configura indisciplina judiciária que compromete a estabilidade e credibilidade do ordenamento.  

A reclamação constitucional tem como pressuposto a estrita aderência, ou seja, diante de premissa idêntica, a decisão reclamada contrariou o STF.

Com amparo nos precedentes acerca da licitude da terceirização em atividade-fim e em outros acerca da liberdade contratual6, muitas decisões de Varas, Tribunais Regionais ou do TST têm sido diretamente desconstituídas pelo STF.

O seguinte aresto - caso em que atuamos e noticiado neste Migalhas (Rcl 57.255)7 - trata da hipótese clássica ao cassar reconhecimento de vínculo de emprego na terceirização de atividade-fim:

"(...) Percebe-se, portanto, que o Tribunal reclamado, ao condenar a empresa reclamante (....) a abster-se de contratar mão de obra por meio de empresa interposta para realização de serviços relacionados a suas atividades, intenta, por via transversa, descumprir orientação desta Corte.

Acrescento que não se desconhece a existência de jurisprudência do STF que afirma não se aplicar o teor do julgamento da ADPF 324 e do tema 725 da repercussão geral nos casos de contratação fraudulenta.

Ocorre que, no caso em análise, há uma distinção fundamental com tais precedentes, qual seja, de que a fraude indicada não remonta a um subterfúgio para a contratação em violação à lei, mas à interpretação conferida pelo Tribunal reclamado de que a contratação de serviço cuja atividade se confunda com a atividade-fim da empresa é, em si, irregular.

Nesse ponto, há patente a ofensa aos precedentes desta Corte."

Há muitos exemplos proclamando a legalidade da contratação por intermédio de pessoas jurídicas, rejeitando a presunção de existência de liame empregatício.

O seguinte acórdão - outro caso em que atuamos - é bastante recente:

"Nesse contexto, notam-se, a partir da leitura dos autos, irresignações da reclamante relativas à decisão que reconheceu o vínculo empregatício entre o agente autônomo de investimentos, ora beneficiário, e a empresa reclamante, por entender ilícita a terceirização na forma de "pejotização", conforme se observa do seguinte excerto do acórdão regional: (doc. 347, p. 16-22):

(...)

Nesse cenário, o cotejo analítico entre a decisão reclamada e o paradigma invocado revela ter havido a inobservância da autoridade da decisão deste STF, uma vez que o juízo reclamado declarou a existência de vínculo empregatício entre a empresa reclamante e ora beneficiária, desconsiderando entendimento fixado pela Corte que contempla, a partir dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, a constitucionalidade de diversos modelos de prestação de serviço no mercado de trabalho. contempla, a partir dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, a constitucionalidade de diversos modelos de prestação de serviço no mercado de trabalho.

Com efeito, o Plenário do STF já decidiu em inúmeros precedentes o reconhecimento de modalidades de relação de trabalho diversas das relações de emprego dispostas na CLT. Neste sentido, por exemplo, se deu o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 48, rel. min. Roberto Barroso, DJe de 19/05/20. Na ocasião, o Plenário desta Corte, ao julgar procedente o pedido formulado na ação, reconheceu a constitucionalidade da lei 11.442/07, que dispõe sobre o transporte rodoviário autônomo de cargas, assentando ser legítima a terceirização desse tipo de atividade pelas empresas transportadoras, não se configurando vínculo de emprego entre as partes nessa hipótese." (AG.REG. NA RECLAMAÇÃO 68.308 SÃO PAULO, rel. min. Luiz Fux. DJ 30.08.2024).

Os precedentes tratam da distinção entre atividade-fim e meio, o que os conecta diretamente ao debate sobre vínculo de emprego.

Muitos perguntam: o que tem a ver terceirização de atividade-fim com licitude de contratos celebrados entre PJs?

A pergunta está equivocada. O confronto não é necessariamente entre a tese vinculante e a decisão reclamada porque pode também envolver a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir do precedente.

Veja-se este voto do min. Gilmar Mendes:

"Sobre o tema, cumpre registrar que, por ocasião do julgamento da ADPF 324, apontei que o órgão máximo da justiça especializada (TST) tem colocado sérios entraves a opções políticas chanceladas pelo Executivo e pelo Legislativo.

Ao fim e ao cabo, a engenharia social que a Justiça do Trabalho tem pretendido realizar não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção, os quais têm sido acompanhados por evoluções legislativas nessa matéria.

Dessa forma, os únicos produtos da aplicação da então questionada súmula 331/TST, no contexto da distinção entre atividade-meio e atividade-fim, mostrou-se ser a insegurança jurídica e o embate institucional entre um tribunal superior e o poder político, ambos resultados que não contribuem em nada para os avanços econômicos e sociais de que temos precisado.

Registrei, ainda, que o que se observa no contexto global é uma ênfase na flexibilização das normas trabalhistas. Com efeito, se a Constituição Federal não impõe um modelo específico de produção, não faz qualquer sentido manter as amarras de um modelo verticalizado, fordista, na contramão de um movimento global de descentralização.

Não foi outro o entendimento assentado no voto condutor do tema 725, rel. min. Luiz Fux, segundo o qual os valores constitucionais do trabalho e da livre iniciativa são intrinsecamente conectados, em uma relação dialógica que impede seja rotulada determinada providência como maximizadora de apenas um desses princípios, porquanto é essencial para o progresso dos trabalhadores brasileiros a liberdade de organização produtiva dos cidadãos, entendida essa como balizamento do poder regulatório para evitar intervenções na dinâmica da economia incompatíveis com os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade.

No mesmo sentido, cito o julgamento da ADI 5.625, no qual esta Suprema Corte, por maioria, julgou improcedente o pedido, reconhecendo a validade dos contratos de parceria formalizados entre trabalhador do ramo de beleza (profissional-parceiro) e o estabelecimento (salão-parceiro). Confira-se a ementa do julgado: No mesmo sentido, cito o julgamento da ADI 5.625, no qual esta Suprema Corte, por maioria, julgou improcedente o pedido, reconhecendo a validade dos contratos de parceria formalizados entre trabalhador do ramo de beleza (profissional-parceiro) e o estabelecimento (salão-parceiro). Confira-se a ementa do julgado:

(...)

Pois bem. No caso dos autos, a autoridade reclamada, por sua vez, descaracterizando a relação contratual autônoma, reconheceu vínculo de emprego entre as partes, não obstante a avença firmada entre elas."

A ratio decidendi dos precedentes usualmente invocados valoriza outras formas de inserção do trabalho e de autonomia da vontade das partes, como explica Diego Petacci8:

"À primeira vista, o uso de precedentes díspares pelos ministros para analisar temas que tratam da configuração da relação de emprego pode parecer um equívoco, quase uma katchanga jurídica, mas um olhar mais atento deixa clara a intenção do STF em suas mais recentes decisões: destacar a prevalência do acordo de vontades, o animus contrahendi.

Na medida em que outras modalidades de trabalho, que não observem os parâmetros da CLT, seriam válidas, conforme trecho já destacado da decisão do ministro Barroso, não seria cabível cogitar uma fraude sem a presença de um elemento inequívoco de simulação (CC, art. 167), atrelado a um claro vício na manifestação de vontade (erro, dolo ou coação - CC, art. 171, II)."

Por tudo isso, o número de reclamações constitucionais em matéria trabalhista cresceu exponencialmente, como revela estudo da Fundação Getúlio Vargas9.

São tantas que as entidades de classe e associações de magistrados trabalhistas criticam abertamente a postura do STF.

IV. À guisa de conclusão.

O problema está nos extremos praticados dos dois lados e não no adequado uso das reclamações.

De um lado, é esperada a tradicional resistência conservadora de parte da magistratura trabalhista, diminuída e cerceada em sua competência constitucional.

De outro, cabe reconhecer que certas decisões do STF ampliam excessivamente o conceito de estrita aderência à tese e a ratio decidendi, desprezando por vezes fraudes comprovadas envolvendo trabalhadores hipossuficientes reconhecidas pela Justiça do Trabalho.  

A mitigação desses extremos contribuiria para maior equilíbrio e coerência nos julgamentos a fim de que, escoimados excessos voluntaristas, seja respeitada a autonomia da vontade em determinadas atividades e classes de trabalhador, muitos hipersuficientes.

Posturas judiciais preconceituosas e antiempresariais entram em choque com novas e modernas formas de inserção no mercado de trabalho.

Só se deve reprimir fraudes que mascaram abertamente a relação do emprego, sem preconceitos ou presunções, protegendo especialmente o trabalhador vulnerável e com clara fragilidade contratual.

Para isto nem sempre se mostra suficiente o critério da subordinação jurídica como alicerce da tutela. Na verdade, o conceito de subordinação jurídica está em crise existencial em face do novo mundo da tecnologia e do trabalho virtual.

A subordinação estrutural, por sua vez, é ainda mais inadequada e difusa e, ademais, incompatível com a terceirização lícita proclamada pelo STF.

Por fim, cabe registrar a necessidade de atualização da legislação pelo Congresso Nacional, com regulamentação de outros tipos contratuais au delà de l'emploi, o que pode reduzir a atual insegurança jurídica e conflito dentre tribunais superiores.

________

1 BOISSONAT, Jean. 2015 - Horizontes do Trabalho e do Emprego. São Paulo: LTr, 1998. p. 76.

2 GOLDIN, Adrián. Ensayos sobre el futuro del Derecho del Trabajo. Buenos Aires: Zavalía, 1997. p. 76-77.

3 SUPIOT, Alain. Au-delà de l'emploi. Paris: Flammarion, 1999. p. 36-37.

4 SUPIOT, A. op. cit., p. 41.

5 BAYLOS, Antonio. Derecho del trabajo: modelo para armar. Madrid: Trotta, 1991. p. 70.

6 Vg. ADPF 324, da ADC 48, das ADI 5.835 e do RE 958.252 (tema 725 RG) e RE 688.223 (tema 590).

7 Disponível aqui.

8STF e a prevalência do animus contrahendi nas relações de trabalho

9 Pasqualeto, Olívia de Quintana Figueiredo; Barbosa, Ana Laura Pereira; Fiorotto, Laura Arruda. Terceirização e pejotização no STF: análise das reclamações constitucionais. Disponível aqui.