COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Direito Privado no Common Law >
  4. Incumbência de se reabilitar profissionalmente: uma perspectiva de direito comparado

Incumbência de se reabilitar profissionalmente: uma perspectiva de direito comparado

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Atualizado às 08:55

Em caso de ofensa à saúde da qual resulte defeito que incapacite o ofendido para exercer o seu ofício ou profissão, mas ainda possa exercer outros ofícios ou profissões, incumbe a ele utilizar-se da sua força de trabalho remanescente sob pena de redução do valor da indenização?

A experiência estrangeira é rica. No direito inglês, o ofendido que não é capaz de retornar para o seu emprego anterior ao acidente, terá de tentar arranjar outro trabalho. Se ele se recusar, a sua indenização corresponderá à diferença entre o que ele é capaz de ganhar e o que ele ganharia senão fosse pelo acidente1.

De maneira análoga, no direito anglo-americano, em caso de dispensa ilícita (wrongful dismissal), o ex-empregado tem de adotar medidas razoáveis para encontrar outro trabalho, sob pena de o tribunal reduzir a sua indenização no valor do dano que ele poderia ter evitado sofrer, ou seja, no montante da remuneração que ele poderia ter obtido em outros empregos2.

Na Alemanha, em caso de ofensa à saúde que elimine ou reduza a capacidade de trabalho do ofendido, esse tem direito a indenização prestada por meio do pagamento de pensão (§ 843, BGB). O valor dessa pensão deve corresponder à perda ou diminuição de renda que o ofendido sofreu concretamente em decorrência da ofensa à sua saúde. Se o ofendido tiver uma redução na sua capacidade de trabalho constatada clinicamente, mas mesmo assim continuar apto a exercer sua antiga atividade remunerada, sem perda de rendimentos, então não haverá dano (material) a ser indenizado. Aplica-se o mesmo entendimento se o ofendido custeava até então o seu sustento a partir do seu patrimônio ou de outras fontes de renda e não exercia atividade remunerada, desde que esses rendimentos continuem disponíveis apesar do evento danoso. Se o ofendido perdeu apenas parcialmente a sua capacidade de trabalho, trata-se de saber em que medida ele ainda pode usar sua capacidade de trabalho restante. Se, como resultado da ofensa, ele mudar de profissão ou emprego, as remunerações obtidas devem ser deduzidas de sua pensão3.

Nesse cálculo, leva-se ainda em conta a incumbência do ofendido de mitigar o próprio dano, prevista no § 254, II, BGB. Com base nesse dispositivo, doutrina e jurisprudência alemãs reconhecem que o ofendido tem de empregar a sua capacidade de trabalho remanescente da melhor maneira possível para fins remuneratórios. Incumbe ao ofendido tentar achar um novo trabalho e aceitar mudanças em sua atividade profissional. E se for necessário mudar de profissão, cabe a ele participar do processo de reabilitação profissional4. Se o ofendido não se esforçar, dentro do razoável, para empregar a sua capacidade de trabalho remanescente, é deduzido da sua pensão o valor da remuneração que ele poderia ter obtido. Por outro lado, se o ofendido obtiver ganhos com um trabalho substitutivo que não lhe era exigível, por ser, por exemplo, excessivamente difícil e extenuante, esse valor não é deduzido do valor da indenização5.

Na França, a jurisprudência encorajava a reabilitação profissional, decidindo pela redução da indenização em casos em que o ofendido poderia ter, mediante esforço razoável, retornado ao mercado de trabalho. Em 1996, a segunda câmara cível da Corte de Cassação julgou caso que envolvia a interrupção forçada da carreira de um professor primário vítima de acidente. O autor alegava que estaria impossibilitado de retomar qualquer atividade profissional, independentemente da sua natureza. A Corte de Cassação entendeu, porém, que a vítima sofria de incapacidade parcial de apenas 10% e que estava em condições de retornar a uma profissão que não a de professor. A suposta impossibilidade seria, em realidade, apenas fruto de um estado psicológico no qual a própria vítima havia se colocado por vários anos. A sua inatividade, portanto, não seria consequência direta de seu acidente e a indenização deveria ser limitada à diferença entre a remuneração que ele teria continuado a receber caso não tivesse sofrido o acidente e aquela que teria recebido se tivesse procurado e encontrado um outro trabalho6.

A partir de 2003, porém, a segunda câmara cível da Corte de Cassação passou a proferir decisões em que rejeita a obrigação da vítima de lesão corporal de minimizar seu dano. Com base no art. 1382 do Código Civil francês, tem afirmado que "o autor de um acidente tem de reparar todas consequências indenizáveis; que a vítima não tem de limitar seu prejuízo no interesse do responsável". Essas decisões têm sido criticadas, entre outras razões, por violarem o limite da "consequência imediata e direta" presente no art. 1231-4 do Código Civil francês (correspondente, à época, ao art. 1.151)7.

Por fim, na Itália, o art. 1226 do Código Civil autoriza a avaliação equitativa do dano nos casos em que ele não pode ser provado no seu preciso montante. Com base nesse dispositivo, entende-se que "o juiz pode levar em conta a possibilidade de uma reeducação profissional, com particular atenção às atitudes, competência e vocação já experimentadas pela vítima." Segundo Pietro Rescigno, "o juiz poderá levar isso em conta, porque a sua avaliação do dano - tratando-se de dano à pessoa, que pode ser removido ou reduzido pela intervenção reparadora - será uma avaliação necessariamente equitativa". No caso de ofendido com redução da capacidade de trabalho, "a existência e a medida atual do dano são certas; a probabilidade, que torna incerta a quantidade do dano ao fim da liquidação, diz respeito à persistência do dano, remetido como é, essa persistência, à vontade e à liberdade da vítima"8.

__________

1 Markesinis et. al., Compensation for personal injury, p. 124-125.

2 Sobre esse tema, ver: Daniel Dias. O "princípio" da mitigação e o direito do trabalho: análise da (restrita) aplicabilidade da regra da irreparabilidade do dano evitável ao direito do trabalho brasileiro. In: Rodolfo Pamplona Filho; José Augusto Rodrigues Pinto (Coord.). Principiologia: estudos em homenagem ao centenário de Luiz de Pinho Pedreira da Silva. São Paulo: LTr, 2016, p. 69-86

3 Gerhard Wagner. §§ 839a-853. In: Franz Jürgen Säcker; Roland Rixecker; Hartmut Oetker (Ed.). Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, Bd. 5: Schuldrecht, Besonderer Teil III: §§ 705-853. 6 Aufl. München: Beck, 2013, p. 2719.

4 Wagner, Münchener Kommentar, p. 2724; Looschelders, Die Mitverantwortlichkeit, p. 476-477; Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, Bd. 1, p. 543-545

5 Wagner, Münchener Kommentar, p. 2725; Basil Markesinis; Michael Coester; Guido Alpa; ULLSTEIN, Augustus. Compensation for personal injury in English, German and Italian Law: A comparative outline. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 144.

6 Reifegerste, Pour une obligation, p. 181-182.

7 Para exposição e análise dessas decisões, ver acima tópico 6.3.

8 Rescigno, Libertà del "trattamento" sanitario, p. 1659-1660. Segundo Pietro Rescigno, o segundo parágrafo do art. 1227 do CC italiano não é aplicável a esse grupo de casos. Esse artigo, intitulado concurso do fato culposo do credor, prevê no segundo parágrafo que "o ressarcimento não é devido pelos danos que o credor teria podido evitar usando a diligência ordinária". Rescigno explica que esse dispositivo é aplicável aos casos em que a lesão física do ofendido é agravada por conta da sua conduta culposa, como no exemplo típico em que o ofendido não trata uma ferida aberta. Por outro lado, o dispositivo não se aplica aos casos em que a lesão física está consolidada, mas o ofendido omite uma atividade específica que poderia diminuir ou remover essa lesão ou dano. Nessa linha, o dispositivo não seria aplicável aos casos em que tentativas de reeducação ou reabilitação ao trabalho poderiam evitar a perda de remuneração do ofendido. Além disso, segundo Rescigno, a medida de irreparabilidade do dano assim evitável conflitaria com o princípio da livre escolha do trabalho (art. 4, 2º parágrafo, Constituição italiana). (Rescigno, Libertà del "trattamento" sanitario, p. 1651-1653).