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Loja nos EUA não aceita pagamento em dinheiro vivo. Isso é admissível no Brasil?

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Atualizado às 07:56

Meu cunhado é fã de Steve Jobs. Quando confrontado com um problema no trabalho, ele sempre se pergunta: "Como Steve Jobs resolveria isso? O que faria?". Por isso, em viagem de família aos EUA, visitamos o QG da Apple em Cupertino, na Califórnia. A sede é um enorme prédio oval que fica no centro de uma área gigantesca coberta por vegetação, de modo a protegê-lo da curiosidade alheia, especialmente de turistas enxeridos como nós.

Pela dificuldade de um acesso ao próprio prédio sede, tivemos de nos contentar com uma simples visita à loja da Apple. Depois de zanzar pelas mesas de madeira com produtos expostos, fui à cafeteria e pedi um café. Como bom brasileiro querendo fugir do IOF, não queria pagar com cartão de crédito e saquei da carteira meus dólares adquiridos às vésperas da viagem. A atendente viu aquilo e disse: "Sorry, we don't take cash here. Would you like to pay with credit card?"

Fiquei surpreso, mas achei que seria fútil tentar argumentar e, algo contrariado, paguei com cartão de crédito. Mas o evento me deixou intrigado e pensando se aquilo seria possível no Brasil.

Na compra do café, a minha obrigação era pecuniária, ou "dívida em dinheiro", segundo a expressão legal do Código Civil brasileiro. De acordo com o art. 315 CC, "as dívidas em dinheiro deverão ser pagas [...] em moeda corrente [...]." A questão, portanto, refere-se ao conteúdo de "moeda corrente".

Segundo a doutrina, "moeda corrente" constitui moeda que tem curso legal1 ou, de maneira mais restritiva, que tem curso forçado2. Curso legal tem a moeda que "pode circular em determinado território, com poder, atribuído legalmente, de liberar o devedor"3. Curso forçado tem aquela moeda que o credor não pode recusar, devendo ser por ele obrigatoriamente aceita para o pagamento de obrigações pecuniárias4.

Os civilistas concordam que, no Brasil, atualmente apenas o real tem curso legal e forçado. Isso com base na Lei 9.069 que, desde 1994, estabelece o Real como a unidade do Sistema Monetário Nacional, que tem "curso legal em todo território nacional." (art. 1.º). "Moeda corrente" é a moeda que tem curso legal ou forçado e, no Brasil, essa moeda é o Real.

Mas, para a nossa dúvida, interessa ir além e saber o alcance prático disso. É questionável, em especial, se "moeda corrente" abrange apenas papel-moeda ou também outras formas de pagamento, como a transferência bancária. O pagamento por meio de transferência bancária corresponde a pagamento em moeda escritural, bancária ou contábil. Trata-se, na realidade, de transferência de créditos contra bancos - os chamados saldos em conta -, que não estão incorporados em um título de papel5.

Parte da doutrina defende que "moeda corrente" corresponde apenas a papel-moeda. Segundo Giovanni Ettore Nanni, "o dinheiro é o instrumento de pagamento sancionado pelo Estado, que o reconhece como coisa portadora de unidades de valor. É expresso em cédula ou papel-moeda, tendo curso forçado em determinado território em razão de lei. No Brasil a moeda corrente é o real, consoante estatuído pela lei 9.069/1995."6

Por essa posição, o conteúdo das obrigações pecuniárias corresponderia à entrega de papel-moeda. O pagamento mediante transferência bancária, que corresponde a entrega de moeda escritural e não de papel-moeda, representaria dação em pagamento, para a qual o credor precisaria consentir (art. 356 CC).

Uma segunda posição doutrinária defende a ampliação da noção de "moeda corrente" para abarcar outros "meios de pagamento". Segundo Jorge Cesa Ferreira da Silva, "ao lado das moedas, se posicionam também os demais meios de pagamento que, em certo sentido, devem ser entendidos como moeda. Esses meios possuem não só a sua condição liberatória reconhecida pelo tráfico jurídico, como também são economicamente mensurados para fins de análise da quantidade de meio circulante. É o caso do cheque, das moedas de plástico (cartões de débito e crédito), da moeda escritural, pagamento eletrônico, que, na prática, são muito mais utilizadas do que o dinheiro"7.

Seguindo essa concepção ampliada, as obrigações pecuniárias poderiam sempre ser adimplidas ou pela entrega de "dinheiro vivo" (papel moeda), pela transferência bancária (moeda escritural), pelas referidas moedas de plásticos, entre outras formas. Pela ampliação do conceito legal de moeda corrente, as obrigações pecuniárias seriam obrigações alternativas, que são aquelas que têm por objeto duas ou mais prestações distintas, ficando o devedor desobrigado caso realize qualquer uma das prestações8.

Uma questão prática que emerge dessa posição é a de determinar qual das prestações deveriam ser cumpridas pelo devedor. A escolha caberia em primeiro lugar às partes. Não havendo estipulação, a escolha então caberia ao devedor (art. 252 CC).

Essa posição, no entanto, está aberta a críticas. O que ocorreria caso não houvesse estipulação das partes e o devedor optasse por pagamento via moeda escritural e o credor não tivesse conta bancária? Ou então, se o devedor optasse por pagar via moeda de plástico e o credor não aceitasse receber cartões de crédito ou débito? Esses seriam casos de mora do credor, pois a não realização da prestação devida pelo devedor decorreria de fato imputável ao credor. Em linguagem legal, o credor não estaria querendo receber a prestação devida (art. 394 CC).

Essa é uma conclusão absurda em muitos contextos, sobretudo em contratações fora dos centros urbanos ou envolvendo classes menos favorecidas sem acesso a serviços bancários. Por isso, não é possível adotar dessa forma a posição de ampliação do conceito de moeda corrente. Apesar do inegável crescimento e diversificação das formas de pagamento de obrigações pecuniárias que não a entrega de dinheiro vivo, a melhor saída ainda é partir da regra geral como sendo pagamento em papel moeda e deixar que as próprias partes acordem o pagamento por outras vias, como moeda escritural ou moeda plástica.

Essa conclusão leva a uma outra questão: seria possível as partes afastarem esse regramento, pactuando ab initio que o preço será pago mediante transferência bancária ou cartão de crédito etc.? Nas relações civis e comerciais certamente que sim.

Mas e nas relações de consumo? Os fornecedores poderiam estabelecer que não receberiam papel moeda como pagamento?

O CDC prevê o seguinte: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: [...] II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes; [...] IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais".

Uma questão que precisa ser levada em consideração é o ambiente. No digital, por exemplo, a questão praticamente não se põe: um consumidor que esteja adquirindo produto ou serviço pela internet não vai ter a opção de pagar com dinheiro vivo e ninguém reclama disso. O próprio ambiente digital já exerce um filtro dentre os consumidores, no sentido que quem está adquirindo produtos no âmbito digital presumivelmente não vai demandar realizar pagamento em papel-moeda. Aqui podemos referir os "usos e costumes" presentes no art. 39 II CDC.

Por outro lado, em se tratando de lojas físicas, é possível o fornecedor não aceitar papel-moeda? Ao não aceitar papel-moeda, o fornecedor estaria excluindo todos os consumidores que não tivessem conta bancária e/ou cartão de crédito. Partindo da premissa de que a população mais pobre é a que se utiliza mais de papel-moeda, a medida de recusa de papel-moeda poderia servir como uma forma de prática discriminatória inclusive. São questões a considerar.

Contudo, no âmbito dos centros urbanos, a prática parece estar se consolidando. Há poucos dias, fui ao McDonald's em São Paulo. Lá chegando, não havia mais seres humanos para receber o pedido e o pagamento, mas apenas telões em que o consumidor escolhe o pedido e paga por ele por meio de cartões de crédito ou débito. Não cheguei a questionar, mas acho pouco provável que houvesse saída para o consumidor que quisesse pagar em papel-moeda.

__________

1 Judith Martins-Costa. Comentários ao Novo Código Civil, vol. V, t. I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 247; Bruno Miragem. Direito das obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 191; Jorge Cesa Ferreira da Silva. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: RT, 2007, p. 146; Giovanni Ettore Nanni. Comentário ao art. 315. In: Giovanni Ettore Nanni (coord.). Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 308.

2 Cristiano Chaves de Farias; Nelson Rosenvald. Curso de direito civil: obrigações. 15 ed. Salvador: Jus Podivm, 2021, p. 489; José Fernando Simão. Comentário ao art. 315. In: SCHREIBER, Anderson et. al. Código Civil comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 231; José Roberto Castro Neves. Direito das obrigações. 6. ed. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2016, p. 189.

3 Ferreira da Silva, Adimplemento e extinção das obrigações, cit., p. 146.

4 Ibid., p. 146.

5 Karl Larenz. Lehrbuch des Schuldrechts, vol. 1: Allgemeiner Teil. 14. Aufl. München: Beck, 1987, p. 167.

6 Nanni, Comentário ao art. 315, cit., p. 308

7 Ferreira da Silva, Adimplemento e extinção das obrigações, cit., p. 146.

8 Hamid Charaf Bdine Jr.. Comentário ao art. 252. In: Cezar Peluso. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 16. ed. Barueri: Manole, 2022, p. 181.