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A Moralidade do Direito: 60 anos de uma obra clássica do direito estadunidense

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Atualizado às 07:59

Introdução

Todo estudante de direito brasileiro já ouviu falar de O Caso dos Exploradores de Cavernas,1 uma interessantíssima obra fictícia de introdução ao estudo do direito que, não raro, é recomendada aos alunos do primeiro ano do curso de graduação direito. Aliás, eu mesmo tomei conhecimento desse pequeno livro justamente ao ingressar no curso de direito na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ em 1994, quando tivemos que ler e trabalhar os temas relativos ao processo decisório do julgamento do caso de homicídio praticado por quatro dos espeleólogos que se encontraram soterrados no interior de uma caverna e, enquanto aguardavam pelo resgate, sortearam um dentre eles para que fosse morto e servisse de alimento para os demais, impedindo a morte de todos os demais por inanição.

Esse texto foi publicado originalmente como um artigo na Harvard Law Review e seu autor foi o Professor Lon Fuller, um renomado professor de teoria do direito da Harvard Law School.2 A Faculdade de Direito de Harvard tinha sido a responsável pelo desenvolvimento de uma perspectiva científica e dogmática do direito positivo nos Estados Unidos, a partir da pedagogia do estudo de caso (ou case method), implantada por Christoph Columbus Langdell em 1870 e que se tornado o paradigma dominante de ensino jurídico na academia estadunidense a partir do início do século XX.3

Ao apresentar os dilemas dos exploradores de cavernas com formato de um caso enfrentado de modos diferentes por vários magistrados a partir de perspectivas diversas, Lon Fuller adotava o formato do paradigma dominante para apresentar uma crítica interna de sua premissa, problematizando o caráter dogmático-científico e a ideia de que existiria uma única solução correta para cada controvérsia jurídica e que essa solução seria baseada no direito positivo. Até recentemente, o leitor brasileiro não tinha acesso à obra principal de Lon Fuller, somente publicada no Brasil no ano passado.4 A presente coluna apresenta de modo sucinto os pontos principais de The Morality of Law, uma obra clássica do direito estadunidense que está completando 60 anos em 2023.

A Moralidade do Direito

O Caso dos Exploradores de Caverna não raro é discutido sem que se discuta também a posição específica do seu autor sobre o direito, como um crítico do positivismo jurídico. A leitura atenta de sua obra magna, The Morality of Law, evidencia que Lon Fuller propõe uma releitura contemporânea do direito natural, defendendo uma interpretação que fortalece a moralidade interna do direito.

O ponto de partida é a distinção entre as duas moralidades do direito, a partir da obra de filosofia moral de Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais.5 Por um lado, existe uma moralidade do dever, cujo papel consiste em preservar a convivência social, assim como as regras de gramática preservam a linguagem como instrumento de comunicação social. Por outro lado, existe uma moralidade da aspiração, cujos princípios são mais vagos, ambíguos e indeterminados e nos apresentam uma ideia da perfeição que deveríamos obter, ao invés de nos dar direções precisas e infalíveis para obtê-la.6

Lon Fuller problematiza a ideia de que julgamentos morais devem ser baseados em alguma concepção de perfeição, inclusive alertando que o comando "não matará" não implica em nenhuma imagem de uma vida perfeita, mas somente em uma verdade prosaica que nenhuma moralidade será viável se as pessoas se matarem. Assim como na linguística, ninguém pretende saber como é uma linguagem perfeita, mas apenas pretende enfrentar as imperfeições no uso da língua, nossos julgamentos sobre o que é moralmente imperfeito e indesejável não precisam ser percebidos como sendo utópicos.7

Após explorar os paralelos entre as duas moralidades e duas concepções de economia - a economia de troca com a moralidade do dever e a economia de utilidade marginal com a moralidade da aspiração - Lon Fuller nos conta a fábula do monarca Rex, um rei que queria reformar seu direito, mas o resultado é um fiasco completo.8 Nesse contexto, aliás, Lon Fuller apresentou uma lista com oito fatores para as falhas do monarca Rex, que se tornaram referência para o debate sobre a moralidade interna do direito.

Os Oito Fatores Para a Falha do Direito

 Lon Fuller apresenta os oito fatores para a falha do direito, que é um repertório importante para nossa reflexão:

(1)    A falha em estabelecer regras, de modo que qualquer questão deveria ser decida de modo ad hoc;

(2)    A falha em tornar públicas, ou ao menos tornar disponível para a parte afetada, as regras que são esperadas para ser observadas;

(3)    O abuso de legislação retroativa, que não apenas não pode guiar ações, mas também afeta a integridade das regras em perspectiva, na medida que elas são colocadas em risco de mudança retrospectiva;

(4)    A falha de manter as regras compreensíveis;

(5)    A promulgação de regras contraditórias;

(6)    A promulgação de regras que requerem conduta além dos poderes da parte afetada;

(7)    A introdução de mudanças tão frequentes nas regras que os sujeitos não podem orientar suas ações por eles;

(8)    A falha de manter a coerência entre as regras como anunciadas e sua real aplicação.9

Lon Fuller considera que essas falhas não significam que estaríamos diante de um sistema ruim de direito, mas que sequer poderíamos chamar esse fenômeno de direito.10 Para Lon Fuller, um conjunto de regras jurídicas precisaria passar por esse teste de moralidade interna para ser considerado como direito.11 Baseado nos ensinamentos do sociólogo alemão Georg Simmel, Lon Fuller defende a necessidade de uma reciprocidade entre o governo e o cidadão com respeito à observância das regras, afirmando que se esse laço de reciprocidade for rompido pelo governo, não sobraria nada para justificar o dever do cidadão de observar as regras.12 O exemplo concreto apresentado por Lon Fuller é a Alemanha nazista, em que o cidadão sob o governo de Adolph Hitler não poderia ser obrigado a obedecer as ordens e nem tinha qualquer obrigação de fidelidade com as leis.13 Não por acaso, o título desse capítulo do livro é 'a moralidade que torna o direito possível'. Para Lon Fuller, se não for moralmente adequado, não é direito.

Considerações Finais

Mais conhecido do público brasileiro pelo Caso dos Exploradores de Cavernas, Lon Fuller escreveu uma obra clássica de teoria do direito que merece ser lida e estudada: A Moralidade do Direito. Sua defesa original da moralidade interna do direito torna o Professor da Faculdade de Direito de Harvard um crítico da escola positivista e identificado com a escola jusnaturalista.

__________

1 FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Leud, 2008.

2 FULLER, Lon L. The case of the speluncean explorers. Harv. L. Rev., v. 62, p. 616, 1948.

3 MERTZ, Elizabeth. Teaching lawyers the language of law: Legal and anthropological translations. J. marshall l. rev., v. 34, p. 91, 2000.

4 FULLER, Lon L. A moralidade do Direito. Editora Contracorrente, 2022.

5 SMITH, Adam. The theory of moral sentiments. Penguin, 2010.

6 FULLER, Lon Luvois. The morality of law. Yale University Press, 1964, 5-9.

7 Idem, p. 10-11.

8 Idem, p. 33-38.

9 Idem, p. 38-41.

10 Idem. 39.

11 Idem.

12 Idem, 39-40.

13 Idem, 40-41.