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"Pepsi, cadê meu avião?" - A oferta ao público no sistema norte-americano

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Atualizado às 07:37

O comercial

A cena inicial é de uma bela casa ao fundo. É manhã e os pássaros cantam. Um jornaleiro passa de bicicleta em frente à casa e arremessa o jornal em direção à varanda de entrada da casa. Na base da tela, ao som de um tambor militar, surge a legenda "SEGUNDA-FEIRA 7h58".

Acordes emocionantes com um ar marcial marcam o surgimento de um adolescente bem penteado, vestido com uma camisa branca estampada com o logotipo da Pepsi: uma bola vermelha, branca e azul. O adolescente ajeita o cabelo de modo confiante e a bateria militar soa novamente, enquanto rola pela tela a legenda "CAMISETA - 75 PONTOS PEPSI".

O adolescente sai de seu quarto e caminha pelo corredor vestindo uma jaqueta de couro. A bateria soa novamente e aparece a legenda "JAQUETA DE COURO - 1450 PONTOS PEPSI". O adolescente abre a porta de casa e coloca óculos escuros para se proteger do brilho do sol matinal. A bateria então acompanha a legenda "ÓCULOS - 175 PONTOS PEPSI".

A voz de um narrador então entoa: "Apresentando o novo catálogo Produtos Pepsi". A câmera foca na capa de uma espécie de livro com o símbolo da Pepsi na capa escrito "Produtos Pepsi" (Pepsi Stuff).

A cena então muda para três meninos sentados em frente ao prédio de uma escola. O menino no meio está concentrado em seu Catálogo de Produtos Pepsi, enquanto os meninos de cada lado estão bebendo Pepsi. Os três garotos olham com admiração para um objeto que voa no alto, enquanto a marcha militar aumenta. O Caça Harrier ainda não está visível, mas o observador sente a presença de um avião poderoso quando os ventos extremos gerados por seu voo invadem uma sala de aula da escola e criam um turbilhão de papel. Estudantes e professor ficam atônitos, olhando pelas janelas para fora da sala.

Finalmente, o Caça Harrier aparece e começa a pousar ao lado do prédio da escola, próximo a um bicicletário. Alguns alunos correm para se proteger, e a velocidade do vento deixa um homem, provavelmente um infeliz membro do corpo docente, apenas de cueca. A narração anuncia: "Agora, quanto mais Pepsi você beber, mais coisas boas você vai ganhar".

O adolescente abre a cabine do caça e está, sem capacete, segurando uma Pepsi. Ele então exclama: "Com certeza é melhor que o ônibus", e dá risada. A bateria militar soa uma última vez, quando aparecem as seguintes palavras: "CAÇA HARRIER - 7.000.000 PONTOS PEPSI."

Alguns segundos depois, a seguinte mensagem aparece em uma fonte mais estilizada: "BEBA PEPSI - GANHE PRODUTOS". Com essa mensagem, a música e o comercial terminam com um floreio triunfante.

Essa propaganda foi ao ar nos EUA em 1996. Com ela, a Pepsico, Inc., produtora e distribuidora dos refrigerantes Pepsi e Diet Pepsi, incentivou os consumidores a coletarem "Pontos Pepsi" de embalagens especialmente marcadas de Pepsi ou Diet Pepsi e a trocar esses pontos por mercadorias com o logotipo da Pepsi. Essa propaganda está disponível no Youtube. 

A batalha pelo Caça Harrier

Leonard, um jovem americano de espírito aventureiro, assistiu ao comercial e a ideia de obter um Caça Harrier o atraiu enormemente. Ele consultou o catálogo com produtos Pepsi. O Catálogo apresentava jovens vestidos com roupas, ou desfrutando de acessórios, como óculos de sol, mas não havia qualquer menção ao Caça Harrier. Isso não o impediu de ir em busca do seu sonho.

As páginas desdobráveis traseiras do catálogo continham instruções para trocar pontos Pepsi por mercadorias. Essas instruções indicavam que a mercadoria podia ser encomendada apenas com o Formulário de Pedido original. O Catálogo explicava que, caso um consumidor não tivesse pontos Pepsi suficientes para obter o item desejado, pontos Pepsi adicionais podiam ser adquiridos por US$ 0,10 cada; no entanto, pelo menos 15 pontos Pepsi Points originais devem acompanhar cada pedido.

Embora Leonard inicialmente pretendesse coletar 7.000.000 pontos Pepsi consumindo produtos Pepsi, logo ficou claro que ele "não seria capaz de comprar (muito menos beber) Pepsi suficiente para coletar os pontos Pepsi necessários com rapidez suficiente". Reavaliando sua estratégia, ele percebeu que comprar pontos Pepsi Points seria uma opção mais promissora. Por meio de conhecidos, ele finalmente levantou cerca de US$ 700.000.

Por volta de 27 de março de 1996, Leonard enviou um formulário de pedido com 15 Pepsi Points originais e um cheque de US$ 700.008,50. Por volta de 7 de maio do mesmo ano, a empresa rejeitou o formulário do autor e devolveu o cheque, explicando que:

"O item que você solicitou não faz parte da coleção Produtos Pepsi. Não está incluído no catálogo ou no formulário de pedido, e apenas mercadorias do catálogo podem ser resgatadas neste programa.

O Caça Harrier no comercial da Pepsi é fantasioso e é simplesmente incluído para criar um anúncio bem-humorado e divertido. Pedimos desculpas por qualquer mal-entendido ou confusão que você possa ter experimentado e anexamos alguns cupons de produtos gratuitos para seu uso."

O advogado de Leonard respondeu por volta de uma semana depois:

"Sua carta de 7 de maio de 1996 é totalmente inaceitável. Analisamos a fita de vídeo do comercial da Pepsi Stuff... e ele claramente oferece o novo Caça Harrier por 7.000.000 Pontos Pepsi. Nosso cliente seguiu suas regras explicitamente....

Esta é uma exigência formal de que você honre seu compromisso e tome providências imediatas para transferir o novo Caça Harrier para nosso cliente. Se não recebermos as instruções de transferência dentro de dez (10) dias úteis a partir da data desta carta, você não nos deixará escolha a não ser entrar com uma ação judicial contra a Pepsi...."

Com a persistência de ambas as partes nessas posições originais, o caso foi parar no judiciário, com Leonard alegando quebra de contrato.

O julgamento

A juíza Kimba Wood julgou improcedentes os pedidos de Leonard. Entre outros, os fundamentos apresentados foram:

  • o anúncio do jato não configurava oferta nos termos do Restatement (Second) of Contracts;
  • nenhuma pessoa razoável poderia acreditar que a empresa ré pretendia seriamente vender um jato no valor de aproximadamente US$ 37,4 milhões por US$ 700.000, ou seja, o comercial nessa parte era mero exagero (puffery);
  • o valor do alegado contrato fazia com que ele se enquadrasse nas disposições da Lei das Fraudes, mas não foi cumprido o requisito legal dessa lei de acordo escrito entre as partes, pelo que não foi celebrado contrato.

A juíza chegou à conclusão de que o comercial foi "evidentemente feito em tom de brincadeira" e que "a ideia de viajar para a escola em um Caça Harrier é uma fantasia adolescente exagerada". Ao justificar essa sua conclusão, ela fez várias observações sobre a natureza e o conteúdo do comercial:

  • "o jovem inexperiente apresentado no comercial é um piloto altamente improvável, alguém em quem mal se pode confiar as chaves do carro de seus pais, muito menos o premiado avião do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos";
  • "o comentário do adolescente de que pilotar um Caça Harrier para a escola 'certamente é melhor do que o ônibus' evidencia uma atitude improvável e despreocupada em relação à relativa dificuldade e perigo de pilotar um avião de combate em uma área residencial"; e
  • "nenhuma escola forneceria espaço de pouso para o caça a jato de um aluno ou toleraria a interrupção que o uso do jato causaria."

Enfim, a juíza também afirmou que: "À luz da função bem documentada do Caça Harrier em atacar e destruir alvos de superfície e aéreos, reconhecimento armado e interdição aérea e guerra antiaérea ofensiva e defensiva, a descrição de tal jato como uma maneira de chegar à escola pela manhã claramente não é séria, mesmo que, como afirma o autor, o caça possa ser adquirido 'de uma forma que elimine [seu] potencial para uso militar'."

O autor recorreu da decisão, mas o Tribunal de Apelações dos Estados Unidos do Segundo Circuito emitiu apenas uma breve opinião concluindo: "Reiteramos substancialmente as razões declaradas na sentença da juíza Wood."

Conclusão

Este caso é o Leonard v. Pepsico, Inc., 88 F. Supp. 2d 116, (S.D.N.Y. 1999), aff'd 210 F.3d 88 (2d Cir. 2000), mais conhecido como o Caso dos Pontos Pepsi (Pepsi Points case).

Esse caso é hoje em dia amplamente debatido nas universidades americanas quando se estuda o tema da formação contratual, mais especificamente oferta e aceitação. Esse caso virou inclusive um interessante documentário na Netflix sob o título "Pepsi, cadê meu avião?". Vale muito a pena assistir!

Essa é uma primeira de uma pequena série de colunas sobre oferta ao público nos sistemas do common law e do civil law. Na próxima coluna, vamos analisar a oferta ao público no sistema jurídico alemão.