Notas sobre o princípio da accountability
segunda-feira, 24 de outubro de 2022
Atualizado às 08:31
"Conversa sobre accountability é onipresente no direito e política contemporâneos." Apesar disso, "o conceito não faz parte do seleto grupo de ideais políticos de primeira ordem", como "democracia, direitos humanos, constitucionalismo e Estado de Direito". Danielle Rached explica que a accountability permaneceu, em vez disso, na "porta dos fundos de nosso vocabulário jurídico ou político e opera em uma faixa de frequência mais baixa."1
Rached segue explicando que, "em vez de irradiar uma visão jurídica ou política abrangente, a accountability fornece uma caixa de ferramentas de constrição de poder que permite uma variedade de permutações. Cada permutação vai depender do papel, lugar e peso da entidade ou ator a ser responsabilizado."2
Um campo jurídico no qual a accountability tem ganhado especial atenção é o da proteção de dados. Nelson Rosenvald afirma que accountability "amplia o espectro da responsabilidade civil, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil com uma regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post."3
Bruno Bioni publicou recentemente profundo estudo sobre o princípio da accountability no contexto da regulação e proteção de dados pessoais. Segundo ele, nesse campo, "accountability é um termo historicamente e intimamente ligado [...] à filosofia regulatória estadunidense [...] de reenquadramento de qual deve ser a intervenção estatal"4.
Em sua obra, Bioni analisa a "anatomia da relação (jurídica) e do objeto e objetivos regulatórios das normas de proteção dados". Segundo ele, essa visão permitiu concluir que os agentes de tratamentos de dados "também são titulares de direito": "se observarem os deveres que lhes são impostos para um uso responsável dos dados, nascerá para eles a prerrogativa de tratá-los até mesmo sem que haja autorização do cidadão (e.g., legítimo interesse)." E foi "a partir dessa dualidade de direitos-deveres" que Bioni extraiu "o diagnóstico de que a obrigação de prestação de contas é direcionada a quem detém o poder de destravar o fluxo de dados."5
Em seguida, o autor tenta precisar os sujeitos dessa relação. Em relação ao sujeito passivo "dessa obrigação de prestação de contas", afirma Bioni que "não são apenas os controladores, mas também todos aqueles que detêm e exercem algum tipo de competência decisória informacional." Assim, "das autoridades de proteção de dados até associações de classes e entidades certificadoras que negociam instrumentos contratuais para, por exemplo, desafogar a transferência internacional de dados"6.
Em seguida, apresenta os sujeitos ativos, os credores: "também há uma multiplicidade de sujeitos ativos em potencial, de modo que o fórum público que julgará as contas prestadas vai muito além da tríade histórica tradicional do campo da proteção de dados formada pelo titular, autoridades de proteção de dados e agentes de tratamentos de dados." Segundo Bruno Bioni, "entidades representativas dos titulares, outros órgãos reguladores, que não apenas de proteção de dados, e quem é competidor - o próprio mercado - podem igualmente levantar a sua voz."7
Bioni transpõe a ideia de obrigação como processo - já tradicional no Brasil, tendo sido aqui inicialmente difundida por Clovis do Couto e Silva -, para o objeto de sua pesquisa e conclui que "accountability é necessariamente um processo colaborativo, dialógico entre as partes que detêm direitos e deveres concorrentes e sinérgicos entre si, para que dele sobrevenha uma codeliberação."8
Em seguida, Bioni trabalha a associação da boa-fé com a accountability, presentes no art. 6.º caput e inc. X da LGDP, respectivamente:
Isso significa hermeneuticamente que o direito-dever de prestação e julgamento de contas é maximizado por toda a carga axiológica da boa-fé. Trata-se de uma equação normativa principiológica que potencializa ao máximo o dever de cooperação e, em última análise, o imaginário obrigacional de colaboração.
A esse respeito, capítulo 5 ilustrou como se forja essa troca. É necessário haver um fórum público no qual haja a junção de diversos atores, titulares de posições jurídicas (antagônicas) e com competências das mais diversas, que prestam contas entre si de forma cruzada. [...]
Nesse sentido, accountability é muito mais do que dar transparência. É uma concatenação de atos (processo) em que se interligam as partes que serão afetadas pela decisão a ser tomada. Conectando com o objeto desta pesquisa, trata-se de arquitetar um circuito decisório justo sobre o fluxo informacional. Essa deve ser a essência do princípio da accountability no campo da proteção de dados e o que a literatura tem denominado como devido processo informacional.9
Apesar de ser um dos campos mais férteis, o campo da proteção de dados não é o único no qual princípio da accountability se faz aplicável. Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Nelson Rosenvald defendem a aplicação da accountability como forma de solucionar a questão da razoável durabilidade do produto no direito do consumidor.
Para se entender essa solução proposta, tem-se de entender primeiro a questão por eles enfrentada. A premissa é a de que comercialização de produto durável que acabe tendo vida útil inferior àquela que dele se poderia legitimamente esperar corresponde a vício do produto, mais especificamente a vício de inadequação do produto, previsto no art. 18 do CDC:
a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um vício de inadequação (artigo 18 do CDC), evidencia a frustração do fim do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo, expectativa violada com o perecimento ou a danificação de bem durável, de forma prematura, causada por vício de fabricação.10
Partindo dessa premissa, os autores apresentam os problemas ligados à "razoável durabilidade do bem", que são o da indeterminação desse tempo e da insegurança que isso causa:
A normativa da responsabilidade civil tem como destinatário um magistrado, capaz de pacificar um conflito e através do princípio da reparação integral restaurar as partes, na medida do possível, ao estágio pré-dano. Em uma demanda versando sobre vícios construtivos surgem diversos cenários ressarcitórios. Entretanto, como se interpretará em cada litígio o critério da "razoável durabilidade do bem"? Deixaremos a cada magistrado e a cada perito judicial a tarefa de determinar a medida da responsabilidade de construtores e incorporadores nos mais variados contextos? A discricionariedade das decisões enseja desequilíbrio no mercado da construção, seja por abusos por parte de consumidores no exercício de suas faculdades, como pela reação natural de fornecedores através do encarecimento de preços e adição de entraves contratuais, contribuindo para um quadro de insegurança jurídica.11
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Nelson Rosenvald defendem que a solução para isso poderia advir da accountability, seja em seu caráter ex ante ou ex post:
Talvez o caminho seja avançar para a accountability, a fim de ampliar o espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor com uma regulamentação voltada à governança, seja em caráter ex ante ou ex post.12
Em relação ao plano ex ante, "a accountability é compreendida como um guia para construtores e incorporadores, protagonistas da atividade, mediante a inserção de regras de boas práticas que estabeleçam procedimentos, normas de segurança e padrões técnicos capazes de planificar e mitigar riscos e solidificar uma cultura de gestão corporativa." Como exemplo disso, Monteiro Filho e Rosenvald citam a NBR 15.575 da ABNT-2013:
Nesse ponto se insere a NBR 15.575 da ABNT-2013, como uma normalização técnica, norma de desempenho capaz de atribuir critérios mínimos de mensuração de habitabilidade do imóvel, seja quanto à segurança, conforto e resistência de materiais para fins de determinação de vida útil. A norma técnica acrescenta parâmetros objetivos de accountability, proporcionando uma função preventiva à responsabilidade civil. A referida NBR não é prescritiva, mas pavimenta procedimentos e indica resultados na medida em que uma construção documentada pelas melhores práticas atua como padronização que impede interferências sobre a vida útil do projeto. O atendimento às normas técnicas é um dever do profissional de investimento em standards de integridade, constante do Código de Ética, e o seu cumprimento gera uma presunção de conformidade.13
Adicionalmente, "na vertente ex post, a accountability atua como um guia para o magistrado, tanto para identificar e quantificar responsabilidades, como para estabelecer os remédios mais adequados." Como exemplo, os autores citam mais uma vez a NBR 15.575: "Se o caso concreto evidencia uma omissão às recomendações da NBR 15.575, pode-se alcançar uma presunção da configuração do vício construtivo. O investimento em compliance à regulação por parte do fornecedor, com efetividade, poderá mesmo servir como fator de redução da indenização, espécie de sanção premial, a teor do parágrafo único do artigo 944 do Código Civil."14
Em conclusão, o percurso desse breve texto acaba por ilustrar a fala de Danielle Rached acerca da accountability, como uma "caixa de ferramentas de constrição de poder que permite uma variedade de permutações." Com forte expressão no campo da proteção de dados, como obrigação de prestação de contas, o referido princípio já tem a sua aplicação sugerida para solucionar problemas relativos a vícios construtivos e relações de consumo.
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1 RACHED, Danielle Hanna. The Concept(s) of Accountability: Form in Search of Substance. Leiden Journal of International Law, 29, 2016, p. 318.
2 RACHED, cit., p. 318.
3 ROSENVALD, Nelson. Conceitos de responsabilidade civil para 4ª revolução industrial e o capitalismo de vigilância. In: EHRHARDT JUNIOR, Marcos (coord.). Direito civil: futuros possíveis. Forum, 2021.
4 BIONI, Bruno Ricardo. Regulação e proteção de dados pessoais: o princípio da accountability. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 2.
5 BIONI, op. cit., p. 217-218.
6 BIONI, op. cit., p. 218.
7 BIONI, op. cit., p. 218.
8 BIONI, op. cit., p. 218-219, grifo no original.
9 BIONI, op. cit., p. 220.
10 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022.
11 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022.
12 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022.
13 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022.
14 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022.