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Disgorgement: A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo de Donald Trump

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Atualizado às 08:30

Há cerca de 10 dias a procuradora-geral de NY Letititia James apresentou uma ação civil contra Donald Trump, a Trump organization e seus associados, em grande parte por disgorgement, por supostamente mentir "por bilhões". O processo lista sete causas de ação por fraude e conspiração. Embora a "New York's attorney general" solicite outros remédios, como ordens que impeçam os réus de administrar empresas públicas em Nova York, o principal remédio consiste na restituição de ganhos indevidos por irregularidades. O pedido é da ordem de US$ 250 milhões.1

Já tive a oportunidade de tratar dessa temática, não apenas em livro (Responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. 2. Ed. Juspodivm, 2021), como em artigos e também, por uma publicação nessa prestigiosa coluna semanal há exatos dois anos. 

Costumo frisar em meus escritos que nas jurisdições do common law os conceitos dos gain-based damages, disgorgement e restitutionary damages, são utilizados para justificar os flutuantes parâmetros objetivos das diversas respostas em que um benefício ilicitamente obtido pelo ofensor deverá ser transferido para o demandante em função da relação de causalidade entre a aferição antijurídica de um ganho e a inconsentida usurpação de um interesse juridicamente protegido. Nesse sentido, os remédios restitutórios servem ao mesmo propósito fundamental: evitar que alguém lucre com a prática de um ato ilícito, pela recaptura dos ganhos auferidos com o descumprimento de um dever legal ou violação de um direito alheio. A condenação não levará em conta a real existência de prejuízos por parte do demandante, ou, se esses existiram, ou mesmo se há proporcionalidade entre as perdas e os ganhos indevidos obtidos pelo demandado.

Por mais que o disgorgement seja um remédio continuamente aplicado na responsabilidade civil norte-americana, a pessoa comum não tem uma noção de seu conceito e repercussão, talvez pelo fato de que o apelo moral dos punitive damages sempre cativou a atenção do público, pois também estipulados por cidadãos americanos (os jurados), frequentemente em casos de grande repercussão, sem esquecermos do apelo hollywoodiano das vultosas condenações.

Porém agora estamos em um "turning point".  O resultado das  últimas eleições ainda insufla eleitores dos dois espectros partidários e, desde Nixon, Donald Trump é certamente a figura mais polêmica do cenário dos EUA.  Portanto, quando é ajuizado um processo, cujo objeto é a alegação que durante anos atos "persistentes" e "repetidos"' de fraude e ilegalidade contra o povo de Nova York se deram na realização dos vários negócios imobiliários de Trump, a curiosidade popular é fisgada e o debate público jurídico se mescla ao político. Em suma, o que se alega é que em um período de 10 anos, verificaram-se mais de 200 incidentes, desde falsificação de registros, fraude fiscal, fraude de seguros e conspiração criminosa.

Note-se que esta é uma ação civil separada das acusações criminais apresentadas contra a Trump Organization e seu ex-CFO, Allen Weisselberg. A queixa do AG alega que os réus cometeram vários crimes estaduais e federais de Nova York. Por se tratar de uma ação civil, o AG não terá que provar além de qualquer dúvida razoável (beyond a reasonable doubt) que qualquer um desses ilícitos ocorreu; as ações civis têm um padrão muito mais baixo de prova. Vale dizer, a legislação do estado de Nova York permite que seu procurador-geral ajuíze uma ação contra uma pessoa envolvida em "atos fraudulentos ou ilegais repetidos". Como este estatuto existe para proteger o povo de Nova York de práticas comerciais enganosas, ele não exige que o procurador-geral prove o tipo de elementos intencionais ou deliberados ou que indivíduos específicos foram prejudicados ou prejudicados pela fraude.

Por mais que os entusiastas de Trump desprezem o processo sob a conhecida tese das "fake news" e o próprio ex-presidente rotule a demanda  de "caça às bruxas", classificando a AG James - a primeira pessoa negra eleita como procuradora-geral de Nova York - como "racista", estamos diante de alegações detalhadas e factualmente específicas, Se, por um lado, as avaliações de imóveis da família Trump são notoriamente inconstantes, e por isso pode ser difícil provar que foram fraudulentas - em vez de apenas equivocadas ou inocentemente otimistas -, lado outro,  a queixa se concentra em falsidades objetivamente prováveis. Por exemplo, a AG afirma que Trump mentiu sobre o tamanho de sua cobertura na Trump Tower, triplicando a metragem quadrada da unidade de uma maneira que o levou a avaliar a propriedade em impressionantes US$ 327 milhões. Curioso, é que Trump se recusou a testemunhar em resposta a intimações do escritório do procurador-geral. Mas enquanto a Quinta Emenda impede que o silêncio de alguém seja usado contra si em um processo criminal, esse mesmo silêncio pode ser interpretado contra o demandado em um processo civil.

A ação civil tem como pretensão que o tribunal imponha penalidades dramáticas, incluindo a devolução de cerca de US$ 250 milhões em lucros e rendimentos passados (disgorgement) a dissolução e liquidação dos negócios de Trump em Nova York e uma proibição de cinco anos a Trump e membros da família servirem em cargos executivos ou postos em outras empresas. Esses são remédios draconianos, e a disposição de um tribunal em impô-los vai determinar o quão convincente o caso do procurador-geral se mostrará em julgamento. Por exemplo, os tribunais são historicamente relutantes em dissolver à força uma corporação existente, mesmo que tenham o poder legal para fazê-lo. Espere que um tribunal insista em fortes evidências de danos contínuos e futuros ao público antes de considerar essa possibilidade.

Duas questões particularmente me chamam a atenção.

Em janeiro de 2021, o Congresso anulou um veto legislativo do então presidente Donald Trump,  com isso aprovando a Lei de Autorização de Defesa Nacional ("NDAA"). A partir de então, a seção 6501 da NDAA altera o Securities Exchange Act de 1934 ("Exchange Act") para expandir a capacidade da SEC de buscar disgorgement e outras medidas equitativas para violações do leis federais de valores mobiliários. A NDAA autoriza expressamente a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA ("SEC") a buscar o disgorgement em qualquer ação ou processo instaurado pela Comissão sob qualquer disposição das leis de valores mobiliários, onde qualquer pessoa tenha auferido enriquecimento injustificado como um resultado do ilícito.

Ademais, a concessão estatutária de autoridade da Seção 6501 à SEC para buscar o disgorgement, isenta a SEC das restrições ao remédio imposto pela decisão da Suprema Corte dos EUA no julgamento do caso Liu v. SEC, de 2020.2 Naquela oportunidade, a SCOTUS havia confirmado a capacidade da SEC de obter disgorgement como remédio equitativo, porém limitado ao montante que não excedesse o lucro líquido do infrator após dedução das despesas comerciais legítimas e que a quantia restituída fosse destinada às vítimas". Por um ângulo a Suprema Corte ratificou a possibilidade de uso do disgorgement pela SEC, todavia mitigando drasticamente a eficácia do remédio. No caso em apreciação, os tribunais inferiores decidiram que a SEC poderia obter a devolução substancial de todos os fundos que os investidores haviam contribuído, sem dedução, nem mesmo para despesas legítimas de operação do empreendimento.

Nada obstante, em sua opinion, a juíza Sonia Sotomayor escreveu para uma bancada quase unânime ( 8 X 1), que o disgorgement é um remédio de equidade, cujo objetivo é o de  privar o malfeitor de seus lucros líquidos em atividades ilegais, garantindo que ele "não seja punido" ao ponto de pagar mais do que uma compensação justa à pessoa prejudicada. Reconheceu se tratar de "princípio fundamental" estabelecido em uma opinião da Suprema Corte do século XIX: "[I]t would be inequitable that [a wrongdoer] should make a profit out of his own wrong." Sotomayor volta-se para uma discussão sobre quais limites ao disgorgement são apropriados. Ela identifica três limites específicos para o remédio equitativo tradicional. Primeiro, o efeito do "profits remedy" como os nomeia, é o  de impor uma confiança através da restituição de ganhos indevidos para vítimas injustiçadas. O remédio fazia sentido apenas como uma forma de devolver os ganhos ilícitos do réu àqueles prejudicados pela má conduta do réu. Em segundo lugar, porque o remédio se limitava aos lucros do réu, não justificando o remédio em face de vários infratores sob uma teoria de responsabilidade solidária. Terceiro, o remédio foi limitado aos lucros "líquidos" ou "ganhos obtidos em qualquer negócio ou investimento, quando tanto as receitas quanto as [despesas] são levadas em conta.

A magistrada ainda assevera que a busca da SEC por disgorgement viola cada um desses três limites. Vale dizer, a SEC nem sempre devolve a totalidade dos recursos de disgorgement aos investidores, em vez disso, deposita uma parte em um fundo no Tesouro. A referida prática não se concilia com a visão do tribunal de que a natureza equitativa do disgorgement exige que a SEC restitua os ganhos a investidores para o seu próprio benefício.  Da mesma forma, a opinion critica a imposição comum da SEC de "responsabilidade solidária" em casos de disgorgement, que Sotomayor considera em desacordo com a regra do direito comum que exige responsabilidade individual por lucros ilícitos porque poderia transformar qualquer remédio focado em lucros em uma punição. Contudo, a opinion permite que o tribunal de primeira instância possa decidir que a responsabilidade solidária é apropriada em certos contextos, ilustrativamente em questões familiares onde  as finanças dos dois demandados (marido e mulher) esteja tão misturada, que ambos os cônjuges se beneficiaram dos frutos do esquema". Finalmente, Sotomayor rejeita categoricamente a prática de ordenar a devolução de todas as receitas, explicando que os tribunais devem deduzir as despesas legítimas antes de ordenar a devolução. Se, por um lado, reconhece a possibilidade de que as despesas de serviços pessoais sejam anuladas como injustas em um caso em que os réus operaram um "esquema totalmente fraudulento", por outro, frisa que não é o que ordinariamente sucede em uma variedade de despesas ordinárias, inclusive para itens como aluguéis e equipamentos para tratamento de câncer que ostentam valor independente de alimentar um esquema fraudulento.

Contudo, a partir do cancelamento do veto presidencial pelo congresso, deu-se ampliação estatutária de autoridade da Seção 6501 à SEC para não apenas perseguir o disgorgement, como liberar a SEC das restrições ao remédio impostas pela  SCOTUS. Ou seja, pela via legislativa restou contornado o óbice judicial.

Tendo em conta que esta reviravolta se deu nos últimos 3 anos, será que o veto de Donald Trump já tinha em mente uma possível blindagem patrimonial familiar?

O segundo aspecto peculiar na demanda cível é o de que um dos demandados é o "Donald J Trump Revocable Trust", descrito como o "proprietário das entidades que constituem a "Trump Organization". Em princípio, para um civilista (como eu) soa incomum a ideia de um trust como titular de direitos. Como um trust pode ser processado? Ou isso é algum tipo de corporate trust? Enfim, se o trust não é uma entidade legal, não seria melhor que o Procurador-Geral tivesse processado os trustees (ou seja, Donald Trump Jr. e Allen Weisselberg)?

Ocorre que nos EUA, há grande imprecisão sobre a noção de personalidade jurídica aplicada a trusts. Não é incomum que fundos de todos os tipos tenham contas financeiras tituladas em seus nomes e sejam tratados como titulares de propriedade. Como um comentário ao Restatement (Third) of Trusts (2003) coloca: Cada vez mais, conceitos e terminologia estatutários e de direito consuetudinário modernos reconhecem tacitamente o trust como uma "entidade" legal, consistindo no patrimônio fiduciário e a relação fiduciária associada entre o fiduciário e os beneficiários. Isso se reflete cada vez mais e de forma adequada tanto na linguagem (referindo-se, por exemplo, aos deveres ou responsabilidade de um trustee para "o trust") quanto na doutrina, especialmente na distinção entre o trustee pessoalmente - como indivíduo -  e o trustee na posição de fiduciário, com capacidade representativa. Em geral, os estatutos modernos dos EUA relativos a organizações empresariais tendem a tornar o assunto explícito, enquanto que com os trusts tendem a não o fazer. Independente disto, é usual por parte de um trust pessoal a abertura de uma conta de valores mobiliários ou titularizar propriedade em seu nome (para o trust apresentar uma declaração de imposto federal ou estadual).

Aliás, no tocante a características incomuns da personalidade jurídica dos EUA (principalmente focada na limited liability company (LLC) e sua capacidade de operar sem membros, sujeita apenas a um instrumento legal ou outro acordo), recomendo a leitura da recente obra  Autonomous Organizations (Cambridge, 2021), de autoria de Shawn Bayern. 

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1 A peça pode ser encontrada na íntegra aqui.

2 Disponível aqui.