A Natureza dos preventive damages
segunda-feira, 18 de abril de 2022
Atualizado às 07:56
1. Introdução
Desde há algum tempo que os estudiosos do direito civil questionam se nos confins da responsabilidade extracontratual há espaço para uma indenização apartada da função compensatória de danos, nas hipóteses em que não se manifesta um prejuízo propriamente dito, porém alguém realiza despesas com o objetivo de impedir que um dano alcance um interesse digno de tutela. Neste contexto, a doutrina necessita encontrar uma justificativa para a ampliação do conceito de dano ou, alternativamente, promover uma via metodologicamente sustentável, apta a fundamentar uma indenização que abarque gastos preventivos de danos consequentes à prática de um ato ilícito.
Em trabalho dedicado ao tema sob o viés da English Private Law, intitulado "Preventive damages" - indenização preventiva - Donal Nolan utiliza um exemplo para explorar o instigante assunto. O autor se socorre do caso do "incêndio na floresta de pinhos": B negligentemente permite que o fogo que se iniciou em sua propriedade, alastre-se e fuja ao controle, ameaçando alcançar a propriedade vizinha de A e destruir a sua valiosa floresta de pinhos. Alertado do perigo, A contrata uma esquadra especializada de bombeiros que enfrentam as chamas no limite das duas propriedades e, com êxito, impedem que o fogo entre em sua propriedade e cause prejuízos. Pelo fato de que o fogo jamais entrou na terra de A, B não cometeu um ilícito convencional - como o de negligence ou nuisance. Todavia, as despesas incorridas por A podem ser recuperadas em face de B?1 Ou melhor, uma regra que permite a recuperação de despesas preventivas pode ser conciliada com as regras gerais da responsabilidade civil? E caso as despesas preventivas possam ser recuperadas, isto se dará a que título?
Talvez, o caminho seja desviar o foco da compensação pelos prejuízos causados pelo demandado e mirarmos para o ilícito sofrido pelo demandante, vislumbrando uma ampliação dos espaços da responsabilidade extracontratual na qual a indenização não servirá primordialmente para conter danos, porém para prevenir comportamentos antijurídicos, remover lucros ilícitos ou restituir despesas decorrentes de um fato contrário ao direito.
2. Primeira opção: A função preventiva da responsabilidade civil
O exemplo do incêndio na floresta não se relaciona a uma omissão ilícita pura e simples, mas um ilícito comissivo por omissão. Vale dizer, a própria omissão provocou o processo causal e o proprietário do solo de onde o fogo se alastra se abstém de adotar medidas necessárias para que a sua atividade não cause danos contribuindo para a situação de perigo. Neste evento, a causa adequada do resultado é justamente a omissão em si. A omissão não é apenas uma concausa para os danos. Via de consequência, as despesas preventivas se voltam face àquele que se absteve de adotar precauções necessárias para que a sua atividade não causasse danos.
Há uma natural tendência de se justificar a indenização ao proprietário do terreno contíguo com base na função preventiva da responsabilidade civil. Este é o caminhado adotado pelas jurisdições da common law, onde ilícitos convencionais demandam dano para que se convertam em torts e permitam a atuação da função compensatória da responsabilidade civil. A recíproca é admissível: alguns ilícitos como trespass to land ou private nuisance - ambas interferências desproporcionais sobre a fruição da propriedade alheia - dispensam a constatação do dano, pois a violação a esfera do demandante acarreta o ilícito de per se. Ocorre que no exemplo da floresta de pinhos não houve o ilícito de violação da propriedade e as despesas que razoavelmente foram antecipadas para evitar a iminência da intromissão ao direito alheio correspondem a uma espécie de extensão de uma injunction.2
Não por outra razão, o §919 do Second Restatement of Torts do American Law Institute dispõe que: "ao determinar se as despesas incorridas para evitar danos foram razoáveis, há de se observar a gravidade do dano iminente, o grau de probabilidade que ocorra e a provável despesa assumida pela pessoa ameaçada são elementos que devem ser considerados".
O mérito deste raciocínio consiste em uma admissão da funcionalização da responsabilidade civil: de modelo exclusivamente direcionado à contenção de danos para um mecanismo de contenção de comportamentos antijurídicos, desestimulando o agente à prática de ilícitos e, simultaneamente, reconhecendo o mérito da conduta daquele que mitiga o próprio dano mediante a antecipação de despesas. A compensação não é o único objetivo da tort law, o que aconselha um dinâmico balanceamento entre aquela e a função de desestímulo, cada vez mais considerada em uma noção mais ampla do impacto instrumental da responsabilidade civil. Em acréscimo, o recurso ao preventive damages seria menos oneroso do que à preventive injunction, enquanto aquelas estão disponíveis antes do dano ocorrer e demandam certo comportamento, a indenização preventiva é apenas concedida quando o autor se engaja em uma conduta que causa danos e tal como as injunções são concebidas para evitar futuras incursões em direitos protegidos.3
Não teríamos dificuldade de lidar com esta ideia em uma acepção ampla da tutela preventiva, como um efeito colateral de qualquer indenização, haja vista que a ideia de desestimulo especial (ao autor do ilícito) e desestimulo geral (em face de potenciais agentes) perpassa qualquer condenação, mesmo aquelas puramente compensatórias, despidas de um acréscimo por punitive/exemplary damages.
Nada obstante, no sentido estrito da função preventiva, materializado pela tutela inibitória e de remoção do ilícito, a proteção se dirige, respectivamente, contra a probabilidade de ilícito e o ilícito praticado, pois a probabilidade de dano e o dano se encontram fora de seu nexo de imputação. O dano é requisito da tutela ressarcitória, seja na forma específica, seja pelo equivalente ao valor do dano.4 O desiderato de A no exemplo referido não foi o de impedir a prática ou a reiteração do ilícito de B, porém o de evitar o fato danoso temido, questão que não compõe o mérito de uma tutela genuinamente preventiva. Na realidade brasileira, enuncia o parágrafo único do art. 497 do CPC: "Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo". Se este é o mérito da tutela genuinamente preventiva, não há espaço para a discussão respeitante às despesas realizadas pelo demandante para evitar ou mitigar o dano temido.
Se a nossa opção consiste em recusar a natureza compensatória ou puramente inibitória do remédio da "indenização preventiva", urge identificar uma resposta alternativa. A nosso viso, o modelo jurídico dos "preventive damages" se amolda a uma espécie de remédio restitutório. Não se trata de uma pretensão voltada à compensação de um dano, porém de uma pretensão hábil a reintegrar o patrimônio do demandante ao estado pré-ilícito, em função de critérios objetivos que afiram a razoabilidade das despesas realizadas pela violação de um direito diante da probabilidade de um dano, independentemente de sua constatação. Assumimos aqui um conceito ampliado do princípio da reparação integral, que não se resume à transferência dos danos do patrimônio do ofensor ao do ofendido, mas sim o de reequilíbrio patrimonial entre as partes - em um âmbito de justiça corretiva - que também se dará pela via da restituição de ganhos obtidos pelo demandado com a prática do ilícito ou, ainda, com a restituição de despesas não por ele assumidas quando da intromissão em um direito alheio, incluindo-se aí os gastos que o demandante razoavelmente antecipou para evitar a referida intromissão.
A nosso viso a indenização das despesas preventivas pelo incêndio na floresta é uma condenação pecuniária que atua como tutela restitutória do ilícito. O modelo da common law dos preventive damages abrange um conjunto de casos em que o escopo do demandante é o de recuperar despesas por ele realizadas para evitar que um ilícito convencional seja praticado pelo demandado.
Caso B seja condenado a restituir as despesas enfrentadas pelo proprietário A, como podemos definir o fundamento da referida indenização? Não se trata de um dano no conceito estrito da função compensatória, haja vista que a propriedade de A não foi consumida pelo fogo, sequer parcialmente. Todavia, houve uma lesão a um interesse patrimonial merecedor de tutela do demandante que lhe defere uma pretensão em face de B. Consequentemente, cabe invocar um remédio que transcenda à epiderme do dano e possa ser aplicado nos limites da responsabilidade civil.
Ainda no que diz respeito às interferências no direito de propriedade, especificamente no capítulo do direito de vizinhança o CC/02, dispõe o art. 1283 que "As raízes e os ramos de árvore, que ultrapassarem a estrema do prédio, poderão ser cortados, até o plano vertical divisório, pelo proprietário do terreno invadido". Assim, se as raízes da árvore de um vizinho ameaçam causar dano estrutural ao prédio vizinho, há a previsão de autotutela, independentemente de prejuízo ou nocividade para o vizinho, autorizando-se o proprietário invadido a atuar fundado no princípio da liberdade.5 Contudo, nada menciona o dispositivo sobre uma eventual pretensão a ser exercitada judicialmente, na qual o vizinho afetado pela intromissão postulará a restituição pelas despesas preventivas.
Na discussão sobre as despesas preventivas, para além das referências às opções adotadas pelas jurisdições da common law, cabe acrescentar o ingrediente brasileiro da excepcional "autotutela das obrigações de fazer". De acordo com o art. 249 do CC/02 de 2002: "Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível. Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido". Em princípio, vislumbra-se imediata incidência do dispositivo na tutela preventiva do inadimplemento de obrigações com fonte contratual. Ilustramos a sua incidência, com a hipótese da contratação de uma firma para demolição de prédio em risco iminente de desabamento, que se abstém injustificadamente do cumprimento da obrigação de fazer. Poderá o próprio credor (proprietário do prédio) determinar que outra empresa pratique a conduta omitida, sem que, para tanto, seja necessária a obtenção da autorização judicial, como originariamente exigir-se-ia nessas hipóteses. Apenas a posteriori o credor demandará o ressarcimento pelos danos decorrentes do descumprimento e dos valores pagos para a execução do fato, convertendo-se a originária obrigação de fazer em obrigação de restituir o valor correspondente.
Para além do termo "credor" a hermenêutica do parágrafo único admite extensão ao campo do ilícito extracontratual, repercutindo nas situações de provável risco de dano para terceiros. Prosseguindo no mesmo exemplo, o vizinho ao prédio que ameaça cair também ostenta legitimidade para efetuar despesas preventivas diante da inação do proprietário vizinho em espontaneamente realizar as obras de contenção estruturais. O CC/02 presume a premência da realização de despesas preventivas perante a inação daquele sobre o qual deveriam recair tais gastos. Bem explica Paulo Lôbo que o devedor poderá provar em juízo que não houve a urgência e, portanto, descabe a obrigação de reembolsar as despesas preventivas.6 De qualquer forma o equívoco da redação consiste no uso da palavra "ressarcido" ao invés de "restituído", pois não se trata de tutela contra o dano, mas de indenização restitutória de despesas.
3. Nosso posicionamento: A indenização preventiva como remédio restitutório na responsabilidade civil
A nossa posição quanto às despesas preventivas assumidas pelo demandante tem como premissa a noção de que a justiça corretiva transcende a tarefa de compensar danos, exigindo por vezes um trabalho mais amplo, consistente na reintegração do patrimônio da vítima ao estado pré-ilícito. Isto ocorre quando danos não são identificados, mas o comportamento antijurídico acarreta lucros indevidos ao infrator, ou ele se beneficia de uma economia de despesas, ou mesmo, a necessidade de se repelir um dano iminente impõe a realização de despesas preventivas por parte daquele exposto a uma lesão econômica e/ou a sua integridade psicofísica.
O importante é que exista um critério objetivo que afirme a razoabilidade das despesas realizadas, solução esta alcançada pelo Código Civil da Eslováquia no § 419: "Qualquer pessoa que tenha custeado o dano iminente terá direito ao reembolso dos custos incorridos razoavelmente e a os danos que tenha sofrido, inclusive contra a pessoa em cujo interesse tenha atuado, em particular e na medida em que se evitou o dano". O dispositivo corretamente aparta a função restitutória da responsabilidade civil (reembolso dos custos) da cumulação com a compensação dos eventuais danos sofridos, deixando claro que a restituição independe do sucesso das medidas profiláticas.
É certo que não podemos generalizar, a ponto de afirmar que todo o custo de prevenir interferências danosas em face da pessoa ou propriedade do demandante se conecta a um remédio restitutório. Excluímos, prima facie, aqueles casos em que as despesas enfrentadas pelo demandante concernem à mitigação de danos posteriores à ocorrência do fato lesivo, a fim de evitar que as lesões iniciais se agravem (v.g. gastos com procedimento cirúrgico para atenuar as consequências de uma agressão física). Aquilo que se nomeia como mitigation damages7não nos interessa, haja vista que opera em um contexto posterior à violação de um interesse patrimonial ou existencial do demandado no qual o ofensor terá que arcar não apenas com as perdas, mas também com os custos de mitigação.
Reconhecemos a importância de regras redigidas de forma a apartar os remédios restitutório e compensatório no setor da responsabilidade civil. Nada obstante, cremos que a melhor alternativa é sistêmica. Com efeito, para instalarmos a indenização preventiva como remédio autônomo na responsabilidade civil não basta apartamos esse modelo jurídico das alternativas das respostas compensatória (pelo recurso ao dano abstrato) ou preventiva (como uma variação da tutela inibitória). É necessário encontrar um apoio legislativo e isto somente será possível mediante uma ressignificação do princípio da reparação integral. Requer-se uma funcionalização do conceito de indenização, no sentido de que possa atender da melhor forma a dimensão relacional que inspira o princípio da reparação integral. O objetivo de "reconstituição" hipotética das partes ao estado anterior ao ilícito demanda uma análise bilateral, que, para além do ofensor, compreenda a posição do agente.8 Na medida em que o ofensor obteve um lucro ilícito, economizou despesas com a violação de uma certa posição jurídica, ou então o demandante incorreu em despesas que não assumiria se não houvesse o ilícito, naturalmente a "melhor indenização" terá que incluir dentre os seus critérios alternativos a restituição de gastos ou o resgate de benefícios econômicos, sob pena de violentarmos a justiça corretiva que anima a restitutio in integro. Seja o foco nas perdas como nas despesas preventivas, a restauração da situação existente encontra acolhimento na dimensão relacional da obrigação de indenizar, restrita à bilateralidade das razões correlatas às partes.
A essência da filosofia Aristotélica se traduz na necessidade de restauração do equilíbrio em uma relação comprometida uma ação injusta. As duas partes, em suas perdas e ganhos são conectadas pelo conceito de synallagma, e ofensor e ofendido formam uma relação jurídica decorrente do ilícito, da qual todos os demais membros da sociedade estão excluídos, pois em razão de uma injustiça, apenas o ofendido tem um vínculo com os lucros do infrator. Todavia, até os tempos atuais mantemos uma perspectiva unilateral do problema, pois a justiça corretiva foi examinada por uma perspectiva Tomística, centrada na neutralização de perdas em detrimento da abordagem Aristotélica.
A vertente instrumentalista da responsabilidade civil se enriquece se virarmos o foco do dano para o ilícito e o associarmos aos remédios. Os remédios da responsabilidade civil são o resultado de um balanceamento de interesses em ambos os lados e não apenas uma resposta reflexa a um negativo rumo dos acontecimentos. Destarte, ampliando a acepção das ações indenizatórias, agora como condenações pecuniárias a obrigações extracontratuais que perfaçam a finalidade de recomposição do sinalagma entre demandante e demandado, poderemos enfrentar o fenômeno da ilicitude por três vias: a) restituição do demandante a situação anterior ao dano injusto pelo remédio compensatório; b) restituição de ambas as partes à situação anterior ao ilícito por meio do remédio da fixação de um preço razoável ou pela restituição das despesas assumidos pelo demandante diante da intervenção inconsentida em sua esfera patrimonial ou existencial; c) restituição do demandado à situação anterior ao ganho ilícito por meio da remoção dos lucros decorrentes da violação de interesses protegidos do demandante.
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1 NOLAN, Donal. Preventive damages, p. 132. Law Quarterly Review 68-95. Exemplo extraído do caso New Zealand Forest Products v O'Sullivan, [1974] 2 N.Z.L.R. 80.
2 OLIPHANT, Ken. Basic questions of tort law from the perspective of England and the commonwealth, in KOZIOL, Helmut (ed), basic questions of tort law, p. 373.
3 GREEN, Michael; CARDI, W. Jonathan. Basic questions of tort law from the perspective of USA, in KOZIOL, Helmut (ed), basic questions of tort law, p. 448.
4 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado, p. 504. São Paulo, 2017, Revista dos Tribunais.
5 GOMES, Orlando. Direitos reais, 20 ed, p. 213. São Paulo, Editora Saraiva, 2018.
6 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações, Saraiva, São Paulo, p. 117.
7 Tort damages. Louis Visscher, Rotterdam Institute of Law and Economics (RILE) Working Paper Series No. 2008/02, p. 18.
8 Neste sentido, o art. 562 do Código Civil de Portugal: "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação".