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Guerra e contrato: implicações do conflito entre Rússia e Ucrânia para comerciantes

segunda-feira, 7 de março de 2022

Atualizado em 4 de março de 2022 16:17

Com a terrível guerra entre Rússia e Ucrânia, uma das questões que povoam a mente de especialistas em Direito privado são os efeitos deste conflito sobre os contratos.

Pouco antes do início da guerra, um grande escritório de advocacia inglês, o Stephenson Harwood, preparou relatório com interessante análise sobre possíveis efeitos da guerra entre Rússia e Ucrânia para comerciantes, sobretudo para aqueles sediados na região do Mar Negro ou para aqueles fazendo negócios com russos ou ucranianos1.

Esse conteúdo é de interesse geral, inclusive de juristas brasileiros, pois os efeitos da guerra são globais e, de uma forma ou de outra, impactarão também as relações comerciais no Brasil.

Sanções

Os EUA e a União Europeia têm anunciado sanções ao governo russo. Entre as medidas efetivas e potenciais estão sanções direcionadas a pessoas e instituições russas específicas, bloqueio de acesso do setor financeiro a sistemas de pagamentos internacionais, restrições em portos específicos e fechamento do espaço aéreo a aviões russos. Para atingir a indústria do gás da Rússia, podem ocorrer "proibições de exportação a curto prazo ou restrições a financiamento e a transferências de tecnologia para novos desenvolvimentos."

As sanções estão sendo impostas com pouco ou nenhum aviso prévio. As partes que agora negociam na região devem, portanto, avaliar a melhor forma de mitigar os riscos da contratação. De um modo geral, elas devem se questionar qual é a sua exposição, por exemplo, ao risco de vir a "não poderem mais negociar em dólares americanos, ou de os vendedores serem proibidos de exportar os bens que contrataram entregar."

Lugar de entrega

Compradores e vendedores de mercadorias também precisam avaliar a base sobre a qual eles negociam, incluindo as regras sobre lugar de entrega de mercadorias. Na modalidade FOB - free on board, por exemplo, as mercadorias são entregues no local designado para carregamento, como um porto, momento em que os riscos passam para o comprador. Por outro lado, na modalidade DAP - delivered at place, é o vendedor que assume a responsabilidade até a entrega da mercadoria no destino final. O combate da guerra e a interrupção do fluxo operacional daí resultante, portanto, "pressionará diferentes partes da cadeia de suprimentos, dependendo de seus acordos contratuais."

O local em que ocorrer uma tal disrupção afetará de maneira distinta o fluxo de diferentes mercadorias. Por exemplo, o porto de Yuzhny, localizado no Sudoeste da Ucrânia, é o principal porto de exportação geral do Mar Negro para commodities a granel. Ele "está longe das linhas de frente, mas está ao alcance da Crimeia, controlada pela Rússia." O porto de Mariupol é o principal porto do mar de Azov, "que recebe um quarto do total das exportações da Ucrânia em termos de valor na forma de ferro-gusa e aço". Este porto "seria afetado se embarcações fossem impedidas de transitar pelo estreito de Kerch, e também está a apenas 30 km da Rússia (a 10 km da região separatista de Donbas)."

Informações mais recentes indicam, todavia, que todos os portos da Ucrânia permanecerão fechados durante a invasão russa2.

Pagamento e financiamento

Em um contexto de guerra, os comerciantes devem pensar nos termos de pagamento. Se o contrato de compra e venda prevê o pagamento por meio de carta de crédito, por exemplo, uma interrupção no tráfego aéreo pode impedir os documentos necessários de chegarem ao banco do vendedor.

Bancos podem estar procurando antecipar o recebimento de empréstimos concedidos a empresas ucranianas ou proteger seus ativos baseados na Ucrânia por meio de execução de garantias, o que pode levar a um aumento nas falências das empresas devedoras. A escalada militar e a imposição retaliatória de sanções podem também desencadear eventos extintivos previstos em vários contratos de financiamento.

Àqueles que dependem de financiamentos e que podem estar vulneráveis, sugere-se o "envolvimento ativo com os credores", a fim de entender o grau de flexibilidade destes e eventual propositura de renegociações. Por exemplo, as cláusulas MAC  - Material Adverse Change, que autorizam o credor a resolver o contrato e a exigir desde logo os valores devidos, "são muitas vezes subjetivas e prospectivas, permitindo que o credor declare um evento MAC quando, em sua opinião, a capacidade de pagamento do mutuário é afetada ou simplesmente pode ser afetada. Se possível, os mutuários devem buscar confirmação por escrito do credor de que as cláusulas afetadas não foram violadas" ou que renunciam a posições ativas decorrentes de violações.

Contrato de transporte marítimo

Os comerciantes que celebraram ou pretendem celebrar contrato para transporte marítimo de mercadorias para atender a seus contratos de compra venda podem querer revisitar ou revisar as cláusulas relativas a sanções, a risco de guerra e a segurança do porto.

As cláusulas de risco de guerra (war risk clauses) "estabelecem as circunstâncias em que os proprietários dos navios podem se recusar a navegar por áreas em 'guerra', bem como atribuir a responsabilidade por custos adicionais (por exemplo, prêmios de seguro de risco de guerra)".

As cláusulas de porto seguro (safe port clauses) "permitem que os proprietários dos navios se recusem a ir ao porto indicado pelos contratantes se for considerado 'inseguro'", circunstância que pode decorrer de agitação política e da eclosão de guerra. Na atualidade, em especial, os comerciantes devem verificar quais áreas de comércio são permitidas sob o contrato de transporte e/ou se portos específicos são mencionados.

Uma guerra gera restrições ao mercado de transporte marítimo, na medida em que os proprietários de navios retiram ou restringem embarcações de navegar, por exemplo, pela região do Mar Negro ou de transportar cargas específicas objeto de sanção. Isso quase certamente levará a um aumento nos custos de transporte, contribuindo para aumentos de preços das commodities e, como resultado, mais inadimplementos dos contratos de compra e venda e de transporte marítimo.

Force majeure

O contexto de guerra frequentemente leva os comerciantes a se questionarem se eles podem suspender, e em última análise, extinguir seus contratos com base na figura da force majeure. A resposta para essa questão quase nunca é simples e direta.

Em primeiro lugar, a resposta a esta questão depende da legislação aplicável. No direito inglês, por exemplo, não há propriamente uma teoria geral de force majeure. Além disso, como mencionei em coluna anterior (conferir aqui), ao longo da maior parte do século XX, a doctrine of frustration of contract passou por um estreitamento do seu escopo, sendo aplicada de maneiro muito restrita pelos tribunais ingleses.

Caso haja no contrato cláusula de force majeure, a sua redação precisará ser interpretada no contexto dos fatos concretos. A parte que invoca a cláusula terá de demonstrar a relação de causalidade entre o evento desencadeante (no caso, a guerra) e o impedimento ao cumprimento do contrato, o que, normalmente, envolve mostrar que outros métodos de adimplemento não são possíveis. Por exemplo, um vendedor que alega não poder transportar seu suprimento para o porto em que este deveria ser carregado em navios terá de demonstrar não só que foi física ou juridicamente impossível levar a mercadoria ao porto - devido, por exemplo, a interrupção da infraestrutura de transporte ou bloqueios decorrente da guerra -, mas também que não havia outras fontes de abastecimento - por exemplo, estoques portuários ou navios já carregados.

No direito brasileiro, diga-se de passagem, de acordo com o previsto no Código Civil, as adversidades decorrentes de um contexto de guerra teriam de passar pelo crivo da figura da impossibilidade superveniente (arts. 234 e 248, entre outros, do CC/02)3 ou da onerosidade excessiva (art. 478 ss. do CC/02).

Conclusão

Enfim, em face do atual contexto de guerra, àqueles com contratos em curso - ou que procuram fazer novos negócios - na região do Mar Negro e com contrapartes russas e/ou ucranianas, recomenda-se que realizem de imediato avaliações de risco, sobretudo para o caso de serem necessárias reações rápidas. A capacidade das partes de antecipação a problemas e de renegociação dos contratos são, em especial, relevantes no atual contexto.

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The edge of war: legal implications of the escalating Russia-Ukraine crisis for traders. Disponível aqui

2 Fonte: CNN Brasil. Disponível aqui. .

Sobre o tema da impossibilidade no direito brasileiro, ver: DE BIAZI, João Pedro. A impossibilidade superveniente da prestação não imputável ao devedor. 2021.