Responsabilidade civil empresarial por violações de direitos humanos nas cadeias globais de suprimentos
segunda-feira, 23 de agosto de 2021
Atualizado às 07:55
O capitalismo das cadeias de suprimento consiste em cadeias de commodities baseadas em subcontratação, terceirização e arranjos contratuais nos quais a autonomia das empresas componentes é legalmente estabelecida, mesmo quando as empresas são disciplinadas dentro da cadeia como um todo. Essas cadeias de suprimentos vinculam empreendedores aparentemente independentes, possibilitando que os processos de commodities se espalhem por todo o mundo. Trabalho, natureza e capital são mobilizados em nichos econômicos fragmentados, mas interligados; assim, o capitalismo da cadeia de suprimentos concentra nossa atenção nas questões de diversidade dentro das estruturas de poder.1
Pode-se argumentar que ainda não existe uma "lei da cadeia de abastecimento global". Enquanto isso, os conceitos jurídicos relativos à responsabilidade civil, deveres contratuais - tanto internamente quanto em relação a terceiros - bem como os graus de responsabilidade dos diretores da empresa devem ser atualizados neste contexto. Os limites entre uma demanda cuidadosamente elaborada em relação ao que uma empresa poderosa sabia ou poderia e deveria saber sobre o andamento das instalações de produção de suas subsidiárias ou fornecedores contratuais é o novo campo de batalha para a lei da cadeia de abastecimento global para a proteção dos direitos dos trabalhadores em um ambiente amplamente fragmentado e descentralizado de uma economia global.2
A Suprema Corte da Inglaterra inovou positivamente no campo das demandas de responsabilidade civil contra as "holdings" em relação às atividades de suas subsidiárias no exterior. A questão principal concerne sobre quando caberá uma lide diretamente contra a empresa controladora. No julgamento de 2019,3 resultante de reclamação apresentada por 1.826 aldeões zambianos contra a Vedanta resources Ltd - sediada no Reino Unido - e sua subsidiária KCM, discutiu-se sobre a poluição derivada de emissões tóxicas em uma mina de cobre da Zâmbia, de propriedade da empresa-filha.4 Os demandantes alegaram que os resíduos descartados da mina de cobre de Nchanga - pertencente e operada pela KCM - poluiu os cursos d'água locais, causando lesões aos residentes locais, bem como danos à propriedade e perda de renda.
O Juiz Briggs considerou que o envolvimento da Vedanta nas atividades da KCM, fizeram surgir um dever de cuidado perante todas as pessoas que foram afetadas por aquela atividade. A novidade está em que o "duty of care" surge de um suficiente nível de supervisão e controle das atividades realizadas na mina, com suficiente conhecimento da propensão destas atividades causarem escapamento de substâncias tóxicas nos cursos de água circundantes. De acordo com as Regras de Processo Civil do Reino Unido, se houvesse uma questão julgável, a Vedanta poderia ser tratada como um "réu âncora" e a KCM poderia ser incluída como uma parte necessária ou adequada.
Decisivo para "Lord Briggs" foi o fato de que havia materiais publicitários nos quais a Holding Vedanta afirmava assumir sua própria responsabilidade pela manutenção de padrões apropriados de controle ambiental sobre as atividades de suas subsidiárias e, em particular, as operações na mina, tendo implementado esses padrões por treinamento, monitoramento e execução. Isso demonstra um nível suficiente de intervenção da Empresa Vedanta na condução das operações. Em síntese, a supervisão de todas as subsidiárias da 'Vedanta' dependia da orientação da própria Holding. Aliás, mesmo que de fato não tenha a controladora realizado essas atividades fiscalizatórias, a sua própria omissão constitui uma abdicação da responsabilidade que publicamente havia assumido. Por conseguinte, não há limite para os modelos de gestão e controle que podem ser colocados em vigor dentro de um grupo multinacional de empresas. Assim, em um extremo, a controladora pode ser apenas um investidor passivo em negócios separados conduzidos por suas várias subsidiárias diretas e indiretas. Em outro extremo, a empresa-mãe pode proceder em termos de gestão como se o grupo fosse uma única empresa, sendo irrelevantes os limites da personalidade jurídica dentro do grupo.
A Suprema Corte da Inglaterra entendeu que caberia aos demandantes optar por processar ambas as empresas na Zâmbia, ou então, a Vedanta na Inglaterra e a KCM na Zâmbia. Tal conclusão, teve como suporte o artigo 8º do Regulamento Reformulado de Bruxelas, que dá aos requerentes em litígios intra-UE a escolha (mas não a obrigação) de consolidar os processos a fim de evitar o risco de decisões inconciliáveis/contraditórias, concluindo-se que o mesmo princípio deve ser aplicado quando os requerentes estão domiciliados fora da UE (como neste caso).5 Outrossim, tendo em vista o princípio do acesso à justiça - substantial justice - os requerentes viviam na pobreza e não podiam obter assistência jurídica, sendo proibidos de celebrar acordos de honorários condicionais ao abrigo da lei zambiana, bem como seriam incapazes de obter os serviços de uma equipe jurídica na Zâmbia com experiência suficiente para gerenciar com eficácia litígios dessa escala e complexidade.
É notável o quão próximo deste julgamento é o caso "Chandler v Cape plc [2012] EWCA Civ 525". Em Chandler prevaleceu o seguinte raciocínio: uma empresa-mãe que controla uma subsidiária pode ser responsável por seus ilícitos. Haveria uma "conexão de responsabilidade" (mais do que uma suposição) por lei se a controladora interfere nos assuntos de uma subsidiária. Isso parece muito com a ideia de ser um "fiduciário de filho". Se a empresa mãe interfere nos assuntos de uma subsidiária em uma questão (por exemplo, nas finanças), mas algo acontece de errado em outro lugar (por exemplo, no setor de segurança), ainda subsiste essa conexão de responsabilidade. Em resumo, a controladora assume a administração, na sequência emite conselhos sobre como lidar com os riscos e cria políticas de todo o grupo para supervisionar subsidiárias (v.g. sobre segurança ou danos ambientais), todavia omite o cumprimento das referidas instruções. O que se pode esperar desse comportamento contraditório?
Penso que o surpreendente do caso "Chandler" é o de que a Corte Suprema da Inglaterra considera que a própria "Holding" cometeu um ilícito, assumindo a responsabilidade em aspectos relevantes em relação aos funcionários da subsidiária, violando o seu próprio dever por não agir com cuidado em relação a eles. Ou seja, não se trata mais de perfurar o véu corporativo pela desconsideração da personalidade jurídica da sociedade afilhada. Isso doravante é despiciendo, na medida em que a empresa materna possui um dever de cuidado perante os funcionários da subsidiária e será responsabilizada por seu próprio comportamento antijurídico, não pelo ato ilícito da subsidiária. O caso "Vedanta" de 2019 é absolutamente consistente com esse "leading case".
Em livro escrito em coautoria com Fabrício de Souza Oliveira,6 mencionamos que na contemporaneidade do "direito de danos", marcado pela externalização dos riscos das "sociedades" agrupadas para a sociedade em geral, "O credor involuntário trava o primeiro contato com o causador do ilícito ao momento em que sofre o dano patrimonial ou à sua integridade psicofísica, individual ou metaindividual, de origem ambiental, consumerista ou outra ofensa a bens coletivos. O credor "vítima" litigará contra uma subsidiária sem ter tido a aptidão de previamente estimar a sua capacidade financeira ou saber que ela recorreu à responsabilidade limitada para exteriorizar prejuízos por danos, sendo apenas uma entre várias pequenas sociedades que escudam a inexpugnável holding, para tanto dotada de capitalização mínima e estrutura financeira abertamente escolhida para minimizar responsabilidade. Por isso, ao invés do recurso à responsabilidade societária que rege as relações entre as sociedades e seus credores contratuais, é legítimo que credores involuntários possam se valer da responsabilidade extracontratual, para que de forma direta e ilimitada façam valer as suas pretensões reparatórias".
O meu ponto de vista, provavelmente compartilhado por uma maioria de estudiosos de direitos humanos e societário, é que esse é um dos casos mais importantes da história moderna, a saber, se as multinacionais podem ser responsabilizadas por seus próprios ilícitos, sobremaneira pelo impacto do novo raciocínio jurídico sobre tribunais por todo o mundo. O recado é claro: o binômio conhecimento/influência acarreta responsabilidade perante vítimas de comportamentos de "holdings" em matéria de direitos fundamentais. Em "Vedanta", a Suprema Corte sugere que a jurisprudência anterior se esqueceu de aplicar as regras ordinárias de responsabilidade civil aos problemas de direitos humanos das corporações multinacionais. Por essa nova e correta interpretação, não prosperariam vários casos em que uma controladora em Londres não fosse responsabilizada por ferimentos causados por amianto de um funcionário de uma subsidiária insolvente, pelo fato de os magistrados não entenderem que a controladora estivesse "presente" no local do ilícito por meio de suas subsidiárias.
Com efeito, não se trata de uma espécie de responsabilidade indireta ("vicarious liability"). É mais do que isso. Uma sistemática violação por parte das controladoras de deveres de monitoramento do comportamento das subsidiárias, bem como de oferecer segurança e informação é algo diverso. Se a empresa-mãe obtém os benefícios das atividades de suas subsidiárias, por que elas não devem suportar os encargos? Se as empresas controladoras criam o risco de uma empresa, por que elas não deveriam ser responsáveis por tudo no escopo dos riscos que elas criam?
A decisão do UKSC Vedanta é a primeira decisão unânime de um tribunal superior da Commonwealth a considerar diretamente a possibilidade de responsabilidade direta da empresa-mãe perante terceiros afetados pelas atividades de uma subsidiária operacional estrangeira. Aliás, esta é uma oportunidade para enfatizar a função regulatória e educacional das empresas transnacionais, reafirmando o "enforcement", simplificando a lei e impedindo que ditas empresas externalizem os custos sociais, enquanto internalizam os ganhos. Foco nas pessoas e não no "board" da controladora, trata-se de um enorme passo à frente!
Embora a decisão da Vedanta não seja vinculativa em outras jurisdições do common law, os precedentes da Suprema Corte do Reino Unido continuam a ser bem recebidos e respeitados. Neste diapasão, em 2020 a Suprema Corte do Canadá, no caso Nevsun Resources Ltd. v. Araya,7 decidiu que uma mineradora canadense que é proprietária majoritária de uma mina na Eritreia pode ser processada por abusos ocorridos naquele país por violações do direito internacional, e que a state doctrine - que impede os tribunais nacionais de avaliar os atos soberanos de um governo estrangeiro - não é obstáculo à demanda. Ou seja, o precedente canadense demonstra que o direito internacional do common law - customary international law ou jus cogens - atraí para o cenário doméstico graves violações cometidas por atores não-estatais em outros países. Daí que poder haver uma private cause of action em face de uma empresa que viola direitos humanos. Na linguagem brasileira, uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais aplicada em ilícitos transnacionais, viabilizando uma obrigação de indenizar às vítimas injustamente tratadas por corporações.
Em fevereiro de 2021, em Okpabi and others v Royal Dutch Shell Plc and Shell Petroleum Development Company of Nigeria Ltd a SCUK reafirmou a sua decisão no leading case Vedanta, confirmando que uma empresa-mãe no Reino Unido tem o dever direto de cuidar de terceiros afetados pelas operações de uma subsidiária no exterior. Todavia, a Suprema corte se recusa a estabelecer uma lista exaustiva de fatores e circunstâncias em que possa surgir o dever de cuidado, enfatizando se tratar de uma questão de fato, sindicável em cada caso específico. A recente decisão da Okpabi mantém a pressão sobre as multinacionais para gerenciar os riscos de forma eficaz em seus grupos corporativos e cadeias de suprimentos.8
Uma "grande lição" das recentes decisões do Canadá e Reino Unido é que as Supremas Cortes demonstram uma real disposição de levar a sério os direitos humanos. Recente legislação vem a reboque.9 Embora isso seja novo para a interface do direito societário e da responsabilidade civil, em verdade é o que já aconteceu no direito da concorrência e direito tributário: todos dependem crucialmente do reconhecimento da responsabilidade do grupo corporativo. No mesmo sentido, a legislação trabalhista em muitos países (por exemplo, garantindo que os trabalhadores tenham o direito de votar para o conselho de administração da empresa-mãe ou que possibilitem ajuizamento de demandas em solidariedade).
Enfim, como já percebem os shareholders e stakeholders, agir diligentemente já não mais se trata de uma questão de altruísmo por parte das "holdings", porém de sobrevivência em mercados cujos consumidores não mais estão dispostos a apostar em empresas não comprometidas com interesses transindividuais e onde a credibilidade deixa de ser apenas parte do patrimônio imaterial de uma corporação, tornando-se a sua própria "ratio essendi". Uma das melhores soluções para evitar a responsabilidade da holding é garantir que os riscos sejam efetivamente mitigados por meio de devidas diligências e mecanismos de reclamação no nível da empresa-mãe. A falha em mitigar esses riscos pode criar responsabilidade para as empresas controladoras multinacionais, resultar em litígios e causar danos significativos à reputação e à marca de todo o grupo corporativo. Isso é de particular importância, no atual cenário em que as políticas e padrões ESG são definidos, implementados e administrados de cima para baixo em todo o grupo.
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1 Anna Tsing, Supply Chains and the Human Condition, 21:2 Rethinking Marxism: A Journal of Economics, Culture & Society 148-176 (2009), 148-9.
2 Benedikt Reinke & Peer C. Zumbansen Transnational Liability Regimes in Contract, Tort and Corporate Law: Comparative Observations on 'Global Supply Chain Liability', King's College London Dickson Poon School of Law Legal Studies Research Paper Series: Paper No. 2019-18.
4 A participação da Nchanga é mantida por meio da subsidiária operacional da Vedanta, Konkola Copper Mines plc ("KCM"). A KCM não é uma subsidiária 100% da Vedanta. O governo da Zâmbia tem uma participação minoritária significativa nele. Não obstante, a Vedanta publicou documentos afirmando efetivamente que o controle final da Vedanta sobre a KCM era completo.
5 REGULAMENTO (UE) N. 1215/2012 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 12 de dezembro de 2012 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Artigo 8º "Uma pessoa com domicilio no território de um Estado-Membro pode também ser demandada: 1) Se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio de qualquer um deles, desde que os pedidos estejam ligados entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente".
6 Nelson Rosenvald e Fabrício de Souza Oliveira, "O ilícito na Governança dos Grupos de Sociedades". Salvador, Juspodivm, 2019, p. 175.
7 Nevsun Resources Ltd. v. Araya, Supreme Court Judgments, 2020-02-28, 2020 SCC 5, Case number 37919. Três refugiados eritreus moveram uma ação contra a Nevsun Resources Ltd., uma empresa de capital aberto da Colúmbia Britânica. Eles alegaram que, por meio de uma cadeia de subsidiárias, a Nevsun entrou em um empreendimento comercial com a Eritreia para o desenvolvimento de uma mina de ouro, cobre e zinco, e que foram recrutados para trabalhar na mina no âmbito do Programa de Serviço Nacional da Eritreia. Os trabalhadores alegam que foram obrigados a trabalhar na mina de Bisha, na qual a Nevsun tem participação majoritária, 12 horas por dia, seis dias por semana, em temperaturas próximas a 50 graus Celsius e sem cobertura. Eles buscaram indenização de Nevsun por trabalho forçado, escravidão, tratamento cruel, desumano ou degradante e crimes contra a humanidade.
9 A Califórnia, Reino Unido, Austrália e países europeus como França, Holanda e Noruega já aprovaram legislações específicas exigindo que as empresas confirmem que não encontraram trabalho forçado, trabalho infantil ou tráfico de pessoas em suas cadeias globais de fornecimento.