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A origem do conceito de interseccionalidade no pensamento jurídico crítico estadunidense

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Atualizado às 08:55

Introdução: A Gênese do Conceito de Interseccionalidade no Direito Estadunidense

Nossa coluna sobre o Direito Privado na Common Law tem colaborado com discussões sobre a origem de certos conceitos que têm influenciado os debates sobre o fenômeno jurídico no Brasil. É importante compreender o cenário da origem de determinados institutos e o contexto histórico em que foram formados, reconhecidos e aplicados originalmente. Ideias não surgem em um vácuo social, mas emergem no contexto de trajetória de disputas, conflitos e buscas por emancipação e reconhecimento. Nesse sentido é que o pensamento jurídico crítico se desenvolveu como parte de um processo de análise do discurso liberal típico do direito tradicional como sendo insuficiente para desconstruir assimetrias de poder, reproduções das hierarquias sociais e práticas institucionais injustas. Noutra coluna anterior intitulada 'O Vestido Sexy e a Análise do Poder no Direito: alguns temas do Critical Legal Studies', foram apresentados ao leitor alguns temas do pensamento jurídico crítico, notadamente relativos à política de identidade do grupo, uma defesa cultural pluralista da ação afirmativa e a análise do poder no direito a partir do ensaio sobre o vestido sexy, o abuso sexual e a erotização da dominação.1 A presente coluna revisita o tema do Critical Legal Studies a partir do documentário recém lançado da Professora Jeannie Suk Gersen, apresentando a formação do conceito de interseccionalidade como parte do debate promovido pelo pensamento jurídico crítico estadunidense.

Revisitando o Pensamento Jurídico Crítico: O Documentário 'The Crits'

Recentemente, a Professora Jeannie Suk Gersen da Harvard Law School lançou seu documentário de 25 minutos sobre o Pensamento Jurídico Crítico Estadunidense intitulado 'The Crits'.2 Uma especialista em direito de família e na área de direito e arte, ela teve como seus professores na própria Harvard Law School no início do século XXI alguns dos expoentes do chamado Critical Legal Studies (CLS), como Duncan Kennedy e Janet Halley. Porém, já tinha sido proclamada a morte daquele movimento, inclusive duramente criticado pelo ex-Presidente Ronald Reagan em 1988, quando se referiu ao CLS como um 'monstro de radicalismo pré-histórico'. Por outro lado, a Professora considera a influência do pensamento jurídico crítico sobre a legitimidade do direito como atual e pervasiva, tendo a crítica radical de esquerda contra o legalismo liberal se tornado parte do discurso acadêmico.

Importante, o pensamento jurídico crítico teve desdobramentos setoriais, que deram origem ao pensamento jurídico crítico feminista - conhecido como 'Critical Feminist Theory' ou 'Fem Crit' - e ao pensamento jurídico crítico racial - conhecido como 'Critical Race Theory' ou 'Race Crit' - que também estão representados no documentário. O ponto de partida do documentário é uma série de entrevistas com expoentes do movimento, tal como Mark Tushnet, Peter Gabel, Richard Parker, Robert Gordon, David Trubek e o próprio Duncan Kennedy. Além de uma apresentação geral sobre as fundações sociais e políticas do movimento a partir da contestação ao racismo, ao patriarcalismo, ao capitalismo e ao colonialismo, o documentário relembra o primeiro encontro dos Crits em Madison em 1977, liderado por Richard Abel, Tom Heller, Morton Horowitz, Duncan Kennedy, Stewart Macaulay, Rand Rosenblatt e Mark Tushnet, tendo como secretário do Comitê Executivo o brasileiro Roberto Mangabeira Unger.3

David Trubek considera que o primeiro encontro já estabeleceu uma distinção com os membros do movimento 'Law and Society', que estariam mais integrados nas metodologias empíricas de pesquisa sociojurídica e não estariam abertos ao radicalismo da agenda dos pensadores 'Crits', o que os levaria a se desligar desse grupo.4 Apesar de terem também uma agenda progressiva e com ênfase na transformação social, a agenda de pesquisa do movimento 'Law and Society' estaria mais inserida na sociologia do direito e na história do direito, ao invés da investigação sobre os temas da teoria do conflito a partir de uma perspectiva moderna-pós moderna.5 Quanto à organização do movimento, Duncan Kennedy se recorda da dificuldade relativa à reprodução das hierarquias no âmbito da educação jurídica estadunidense e de como isso era sempre problematizado pelos participantes do próprio grupo, o que fica evidenciado pela fala dos demais entrevistados para o documentário.6

Os líderes do movimento eram bastante performáticos, atuando de modo bastante contestador contra o sistema político-jurídico então vigente. Em seu depoimento, David Trubek sumariza os quatro principais pontos teóricos dos autores críticos como sendo a Ilegitimidade das hierarquias, indeterminação das doutrinas jurídicas, a orientação do direito em certas direções com efeitos redistributivos e a política do cotidiano em contraste com a 'grande política'. Duncan Kennedy afirma que tinha consciência do impacto agressivo de suas ideias e que esperava o contra-ataque do sistema. Não somente houve uma forte reação da mídia, mas a direção das faculdades de direito passou a rejeitar o recrutamento de acadêmicos ligados ao movimento dos Crits, tal como, por exemplo, ocorreu com Claire Dalton na Harvard Law School.

Uma das pioneiras do 'Fem Crit', Claire Dalton, descreveu a importância do movimento de reconhecimento de direitos das mulheres para o desenvolvimento do feminismo jurídico crítico feminista. Além disso, esclareceu que foi montado um grupo de leituras feministas para discutir a ampla dominação patriarcal sobre a sociedade e sobre o direito de uma maneira geral. Para ela, tanto o movimento 'Fem Crit' e o 'Critical Race Theory' surgiram como desdobramentos do movimento em geral.

Dentre os acadêmicos entrevistados, merece destaque a Professora Kimberle Crenshaw, que lembra da importância de ter sido aluna de Duncan Kennedy no curso sobre responsabilidade civil e do espaço privilegiado para discussão aberta de temas relevantes nos eventos do pensamento jurídico crítico. Em uma conferência, por exemplo, convidada a promover uma discussão crítica a partir da perspectiva do gênero e da raça, Kimberle Crenshaw propôs que a reflexão de todos os presentes fosse pautada por apenas uma questão-problema: qual era a brancura do movimento Critical Legal Studies que afastava as pessoas de cor? Noutras palavras, ela criticava o próprio movimento como sendo pautado justamente pela perspectiva mainstream que pretendia desconstruir. O resultado foi explosivo, mesmo em um ambiente progressivo e crítico na academia estadunidense.

O Conceito da Interseccionalidade: As Interseções da Discriminação

Exatamente nesse contexto da necessidade de incorporar os temas raciais e feministas é que Kimberle Crenshaw escreveu e publicou seus artigos seminais sobre interseccionalidade. No texto intitulado 'Desmarginalizando a Intersecção da raça e sexo: Uma Crítica Feminista Negra da Doutrina Antidiscriminatória, Teoria Feminista e Política Antirracista'.7 O ponto de partida é a questão da discriminação no mercado de trabalho das mulheres negras, a partir do julgamento de casos como DeGraffenreid v. General Motors,8 em que as autoras alegaram que a empresa não tinha contratado mulheres negras até 1964 e durante a recessão na década de 1970 todas as mulheres negras foram demitidas. A corte consolidou o caso como sendo somente de discriminação racial, se recusando a combinar dois fatores de discriminação porque isso iria abrir uma caixa de pandora e contrariar a doutrina estabelecida de direito anti-discriminação. A alegação de que a combinação de raça e gênero seria necessária para o reconhecimento da discriminação - já que a empresa contratava tanto homens negros, quanto mulheres brancas - não foi devidamente considerada pelo Poder Judiciário.

No texto intitulado 'Mapeando as Margens: Interseccionalidade, Política de Identidade e Violência contra Mulheres de Cor'.9 O artigo inicia com a afirmação de que um dos problemas da política da identidade consiste no fato de que ignora diferenças intragrupais, de modo que o artigo busca localizar as dimensões de raça e de gênero na violência contra mulheres de cor.10 Conforme afirma a autora, o discurso feminista e antiracista tinha falhado em identificar dimensões interseccionais, como no caso das mulheres de cor.11 Nesse artigo, o objetivo era evidenciar como as experiências de mulheres de cor tendem a não ser devidamente representadas pelo discurso tradicional dos movimentos feministas e antiracistas, em que o foco costuma ser em violência contra mulheres brancas e contra homens negros.12 No campo, a Professora realizou pesquisa empírica em abrigos para mulheres em Los Angeles com casos de mulheres negras e de mulheres asiáticas, discutindo interseccionalidade estrutural, política e representacional.

A conclusão é de que o construcionismo vulgar distorce as possibilidades para uma política identitária pela confusão de duas manifestações de poder separadas, mas relacionadas entre si. Interseccionalidade proporciona uma base para reconceitualizar raça como uma coalizão entre homens e mulheres de cor. Reconhecer que a política de identidade ocorre no local da intersecção entre as categorias parece mais promissor do que desafiar a possibilidade de existência de categorias. O primeiro artigo foi citado mais de 21.000 vezes e o segundo artigo recebeu mais de 26.000 citações. Além disso, tais trabalhos foram o pontapé inicial para uma ampla produção acadêmica sobre a interseccionalidade. Por exemplo, recentemente foi publicado no Brasil o livro Interseccionalidade, de Patricia Hill-Collins e Sirma Bridge, que discorre sobre o assunto com profundidade, tratando de inúmeras fontes de discriminação - raça, classe, gênero, sexualidade, idade, capacidade e etnia - com a abordagem de temas complexos como os direitos humanos, neoliberalismo, imigração, protestos sociais e mídias digitais, dentre outros.13

Considerações Finais: Poder, Resistência e Transformação

No documentário de Jeannie Suk Gersen, Kimberle Crenshaw se refere ao papel da Teoria Crítica de Raça como a perspectiva de observação do papel que o direito consistentemente e dinamicamente produz o que se considera como sendo 'raça', especialmente como raça recebe seu significado na sociedade e como se torna associada com quem mora onde, quem faz qual tipo de trabalho, quem é admitido na Universidade ou quem tem maior probabilidade de ser encarcerado. Nesse sentido, o direito contribui de modo decisivo em como a raça é vivida na sociedade. O conceito de interseccionalidade tem sido essencial para a discussão contemporânea sobre o racismo e o feminismo também no Brasil através da série Feminismos Plurais, especialmente do livro intitulado justamente Interseccionalidade.14 Trata-se de um conceito sobre o domínio causado pelo poder relacional em situação de conflito, da necessidade de resistência das minorias vulneráveis com duplo fator de discriminação e da possibilidade de transformação diante da consciência da injustiça sofrida nas interseções da discriminação social.

O ponto de partida foi justamente a precarização profissional e a discriminação no local de trabalho de mulheres de cor. Não por acaso, a autora do documentário, a Professora Jeannie Suk Gersen, é uma mulher de origem asiática. Já a Professora Kimberle Crenshaw é uma mulher negra. Ainda assim, nos Estados Unidos, mulheres de cor são sub-representadas na academia e o Professor Derrick Bell abandonou sua cátedra na Harvard Law School em protesto pela falta de professoras negras. No Brasil, também deveríamos superar o sério problema de sub-representação de minorias no corpo docente das Faculdades de Direito. O debate sobre interseccionalidade serve justamente para aumentar nossa consciência sobre a discriminação e nossa capacidade de poder de resistência para promover transformação.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Apesar de não aparecer no documentário, Roberto Mangabeira Unger foi um expoente do movimento e elaborou um artigo seminal com a síntese das suas principais ideias. Confira-se: UNGER, Roberto Mangabeira. The critical legal studies movement. Harvard law review, p. 561-675, 1983.

4 Sobre o movimento Law and Society, confira-se: FRIEDMAN, Lawrence M. The law and society movement. Stanford Law Review, p. 763-780, 1986.

5 Veja, por exemplo, a contribuição de um dos expoentes do movimento Law and Society: FORTES, Pedro. O Expositor da Cultura Jurídica e da História do Direito: Pioneirismo e Impacto de Lawrence Friedman. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, v. 11, n. 1, p. 24-40, 2019.

6 O Professor Duncan Kennedy lançaria um artigo clássico sobre esse tema. Confira: KENNEDY, Duncan. Legal education and the reproduction of hierarchy. Journal of Legal Education, v. 32, n. 4, p. 591-615, 1982.

7 CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the intersection of race and sex: A black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. u. Chi. Legal f., p. 139, 1989.

8 413 F Supp 142 (E D Mo 1976).

9 CRENSHAW, Kimberle. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stan. L. Rev., v. 43, p. 1241, 1990.

10 Idem, 1242.

11 Idem, 1242-1243.

12 Idem, 1243-1244.

13 COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Boitempo Editorial, 2021.

14 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.