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Martin Luther King, liberdade de expressão e de imprensa: O ônus da prova na responsabilidade civil por difamação de agentes públicos

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Atualizado às 08:19

Introdução

O presente artigo apresenta ao público da nossa coluna Direito Privado na Common Law uma contribuição da Suprema Corte dos Estados Unidos para o tema da responsabilidade civil por difamação de agentes públicos. Trata-se do julgamento do caso New York Times v. Sullivan, que se tornou um marco para a jurisprudência constitucional estadunidense quanto ao alcance da proteção à liberdade de expressão e de imprensa assegurada pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.1 O caso é relevante para a proteção jurídica do direito à crítica da autoridade pública e preservação de um espaço protegido de debate político-democrático que assegure a pluralidade de opiniões e de pontos de vista. Logo, não se trata somente de um tema de responsabilidade civil, mas também de proteção de direitos fundamentais e preservação da democracia, que enquadraria New York Times v Sullivan na classificação doutrinária brasileira como um caso de direito civil constitucional.

O Movimento de direitos civis e a crítica ao comissário de polícia

O ponto de partida para o caso foi um anúncio de uma página inteira no jornal The New York Times, de 29 de março de 1960, assinado por quatro integrantes do movimento dos direitos civis que se intitulavam como sendo o 'Comitê para a Defesa de Martin Luther King e sua Luta pela Liberdade no Sul'. O texto descrevia o engajamento de milhares de estudantes negros em protestos pacíficos e a resposta violenta conduzida como uma onda de terror para impedir que eles tivessem seus direitos e sua dignidade humana protegidos. Dois parágrafos do texto continham imprecisões fáticas na descrição de que policiais armados teriam invadido o campus da Universidade do Estado de Alabama e que policiais já tinham prendido Martin Luther King sete vezes, quando na verdade teria sido quatro o número de prisões.

Apesar de não ter sido identificado nominalmente no texto do artigo, o Comissário de Polícia de Montgomery, Sr. Sullivan, alegou que, por ser o responsável pela supervisão de toda a atuação policial, estava sendo injustamente acusado de ter determinado a invasão do campus universitário, uma suposta perseguição policial ao líder do Movimento de Direitos Civis e de ter sido responsável pelo ataque à bomba na residência de Martin Luther King. Assim é que ele ajuizou uma ação de responsabilidade civil e de indenização pelos danos à sua honra e à sua reputação em face dos quatro signatários do anúncio e do jornal The New York Times.

No curso do processo judicial, o Comissário de Polícia demonstrou que jamais houve a referida invasão ao campus, que somente ocorreu uma única prisão de Martin Luther King durante o seu período a frente do Comissariado de Polícia e que não havia nenhuma prova de envolvimento da polícia nos atentados à bomba, que teriam sido investigados com enorme esforço. O gerente de publicidade do jornal foi ouvido como testemunha e afirmou que não havia qualquer razão para duvidar do conteúdo do anúncio, que tinha sido apresentado por pessoas idôneas e que não foi feita uma checagem da veracidade dos fatos.

 Posteriormente, contudo, a pedido do Governador do Alabama, John Patterson, o New York Times publicou uma retratação do anúncio, esclarecendo que tinha aprendido mais sobre os fatos e que não queria responsabilizar a autoridade máxima do Estado de Alabama naqueles termos. Por outro lado, o Comissário de Polícia também solicitou que fosse publicada uma retratação em seu nome, mas o jornal somente enviou uma correspondência, explicando que não entendia os motivos pelos quais o Sr. Sullivan se considerava difamado pelo anúncio que sequer mencionava seu nome.

 No julgamento pelo júri, o juiz de instrução alertou que o conteúdo do texto possuía caráter difamatório por si só e que caberia ao júri deliberar se aquelas declarações foram feitas e diziam respeito ao autor da ação. Além disso, o direito não exigiria demonstração de malícia ou da falsidade, nem dos danos que seriam presumidos. O júri também estava autorizado a aplicar danos punitivos e, ao final, a condenação foi feita para o pagamento de uma indenização de quinhentos mil dólares.

 A Suprema Corte do Estado de Alabama manteve a condenação, salientando que a difamação seria presumida a partir do conteúdo do texto e que a malícia poderia ser inferida a partir da irresponsabilidade do New York Times em publicar um anúncio cujo conteúdo poderia ser desmentido pela mera leitura de artigos previamente publicados pelo próprio jornal. Além disso, o jornal tinha publicado uma retratação em favor do Governador, mas não do Comissário de Polícia, que era a autoridade responsável pelo comando e supervisão das forças policiais. Finalmente, para o Tribunal Estadual não havia dúvidas de que críticas para a atuação da polícia implicavam em difamação da autoridade responsável por liderar aquele órgão.

A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em New York Times v. Sullivan

No julgamento pela Suprema Corte dos Estados Unidos, Justice Brennan, o relator do caso, colocou a questão sob julgamento nos seguintes termos: se a regra de responsabilidade, tal como aplicada em uma ação ajuizada por um agente público contra críticos de sua conduta oficial, viola a liberdade de expressão e de imprensa assegurada pelas emendas à Constituição dos Estados Unidos. De início, é rechaçada a tese adotada pelas cortes do Alabama de que a Constituição não protegeria a expressão difamatória, com o alerta de que o ponto de partida para o julgamento é o compromisso nacional profundo com o princípio de que debates públicos devem ser desinibidos, robustos e abertos, podendo incluir ataques veementes, cáusticos e desagradáveis ao governo e aos agentes públicos.

Com base na própria jurisprudência constitucional, Brennan afirma que jamais foi exigido um teste de demonstração da verdade da expressão como um pressuposto para a expressão do indivíduo e que afirmações errôneas são inevitáveis no debate livre e devem ser protegidas pela cláusula da liberdade de expressão como espécie de espaço para a respiração necessário para a sua sobrevivência. Particularmente no caso de magistrados, os precedentes judiciais demonstram que a preocupação com a dignidade e a reputação do Poder Judiciário não justifica uma punição por crítica ao juiz e à sua decisão, mesmo se a manifestação contém uma 'meia-verdade' ou desinformação.

Em termos do impacto da responsabilização civil, Brennan afirma que o medo causado pelo efeito do pagamento de uma indenização vultosa pode ter um efeito muito maior do que o receio de ser processado criminalmente, o que causaria uma grande inibição ao discurso causado pelas preocupações impostas naqueles que dão voz à crítica pública em uma atmosfera em que a liberdade de expressão não sobreviveria. Neste contexto, é essencial proteção para os argumentos errôneos feitos com honestidade. A conclusão é de que a Constituição proíbe um agente público de buscar a reparação de uma indenização por uma falsidade difamatória atribuída à sua conduta oficial a não ser que ele prove que a declaração foi feita com uma 'malícia real', isto é, conhecimento de que era falsa ou imprudente desconsideração sobre se era ou não falsa a manifestação. A conclusão da Suprema Corte foi de que a Constituição limita o poder do Estado de conceder indenizações aos agentes públicos por difamação relativa à crítica à sua conduta oficial, sendo exigido o ônus da prova de uma malícia real para uma condenação.

Além de estabelecer uma tese genérica a ser aplicada para casos futuros, a Suprema Corte também decidiu que naquele caso concreto não havia qualquer prova de malícia real que justificasse um novo julgamento, já que a prova colhida nos depoimentos dos funcionários do jornal demonstraram sua boa-fé, a credibilidade de quem os contratou para o anúncio por doações em benefício de Martin Luther King e sua iniciativa em publicar uma retratação a pedido do Governador do Alabama tão logo souberam da descrição errônea dos fatos naquele anúncio. Brennan alertou para a existência de uma alquimia jurídica que transmuta um ataque impessoal ao governo e suas operações em uma difamação ao agente público responsável, que penalizaria uma crítica feita de boa-fé. O julgamento foi unânime.

Uma reflexão necessária para a experiência brasileira

O precedente New York Times v. Sullivan não se tornou muito influente em outras jurisdições, não sendo acolhido como um paradigma em países como o Canadá e a Austrália, por exemplo, em que alguns julgados consideram que existe proteção demais para a liberdade de expressão nos Estados Unidos e que a reputação do agente público fica desprotegida.2 Por outro lado, na própria academia estadunidense, existem críticos que consideram que a Suprema Corte deveria ter ido além e simplesmente proibido que agentes públicos processassem seus críticos por difamação em qualquer circunstância, de modo a permitir a plena liberdade de expressão.3 A decisão da Suprema Corte traz uma reflexão necessária para a experiência brasileira, eis que devemos considerar o desenho institucional atual do regime de liberdade de expressão e avaliar se está equilibrado ou se provoca um 'efeito congelante' ('chilling effect') nas críticas às autoridades públicas e aos agentes públicos. Tal debate é necessário para a democracia brasileira e o ponto de partida pode ser o julgamento de New York Times v. Sullivan e as críticas de que a decisão foi desequilibrada ou insuficiente.

Considerações finais

No âmbito da responsabilidade civil brasileira, a expressão "você sabe com quem você está falando?" poderia muito bem ser substituída pela expressão "você sabe quem você está criticando?". Não raro, uma crítica é recebida com a resposta de que o autor da crítica será processado por difamação e será obrigado a se defender nos nossos Tribunais. O objetivo do presente artigo é provocar a nossa reflexão sobre se as autoridades públicas não deveriam ter uma maior capacidade de receber e de absorver a crítica, aproveitando a manifestação da expressão como um feedback para a própria aprendizagem institucional de seu órgão, ao invés de transformar a expressão em uma difamação e pela alquimia jurídica dar início a uma ação de indenização por danos morais a sua reputação. Também deveríamos refletir sobre o papel do Poder Judiciário no julgamento dessas ações. Trata-se, portanto, de um convite à reflexão sobre a responsabilidade civil por difamação de agentes públicos e a necessidade de proteção jurídica à liberdade de expressão e de imprensa na democracia brasileira.

*Pedro Fortes é professor visitante no programa de pós-graduação em Direito da UFRJ, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e promotor de Justiça no MP/RJ. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

__________

1 New York Times Co v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964).

2 TUSHNET, Mark. New York Times v. Sullivan around the world. Ala. L. Rev., v. 66, p. 337, 2014.

3 EPSTEIN, Richard A. Was New York Times v. Sullivan Wrong. U. CHI. l. rev., v. 53, p. 782, 1986.