A "corresponsabilidade" do credor no Direito Contratual - Parte I
segunda-feira, 17 de maio de 2021
Atualizado às 09:28
Introdução
Participei recentemente de um webinário sobre "a influência da culpa na quantificação de danos: aspectos contratuais". Por conta da minha pesquisa sobre o instituto da mitigação de danos, tema do meu doutoramento, tive de estudar a figura da corresponsabilidade do lesado ou da vítima - comumente chamada de "culpa concorrente da vítima", ou apenas "culpa concorrente" - no âmbito da responsabilidade civil extracontratual.
Abro um parêntese: a figura tradicionalmente chamada de "culpa concorrente" é melhor denominada de "corresponsabilidade" do lesado. A expressão "culpa concorrente" é descritiva do suporte fático. Ocorre que a essência do instituto reside em o dano ser imputável tanto ao lesante quanto ao lesado, ambos sendo por ele corresponsáveis. E isso pode ocorrer mesmo que o lesante não tenha agido com culpa, como no caso de ele responder, por exemplo, pelo risco da atividade (art. 927, parágrafo único, CC). Por outro lado, ambas as partes podem ter concorrido culposamente para o dano e o caso não ser de corresponsabilidade, mas sim de sua imputação exclusiva do dano ao lesado, como é o caso da mitigação de danos1.
Voltando: o evento do webinário fez-me refletir a respeito da aplicabilidade da figura no campo do direito contratual. Como sabido, a figura da corresponsabilidade do lesado é de aplicação incontroversa no campo da responsabilidade civil aquiliana, contando inclusive com dispositivo expresso no Código Civil (art. 945). Até onde pude verificar, a questão da sua aplicabilidade ao direito contratual não é abordada pela doutrina brasileira. Mas será que a doutrina omite-se por lapso, ou, na realidade, a suposta omissão corresponde ao fato de as questões subjacentes serem solucionadas de outra forma?
De todo o modo, por que abordar este tema em uma coluna que se dedica a análises comparativas dos sistemas jurídico de common law e brasileiro? Porque o "estado de coisas" sobre o tema nos EUA oferece um bom referencial para uma reflexão que se pretende exploratória. Nos EUA, o instituto da corresponsabilidade (comparative negligence) se popularizou no campo da responsabilidade civil extracontratual (tort law). No entanto, a mesma mudança tem demorado a ocorrer no direito contratual. Em interessante estudo, Ariel Porat apresenta e analisa as dificuldades e benefícios de reconhecimento da figura no direito contratual americano2.
Pela brevidade típica de um texto de coluna, a minha análise vai se dar em mais de uma parte. Na presente, introduzo resumidamente a discussão existente nos EUA. E, na próxima coluna, finalizarei a análise em âmbito americano e examinarei o tema à luz do direito contratual brasileiro.
Noção de corresponsabilidade no direito contratual
No direito dos contratos, segundo Ariel Porat, a corresponsabilidade (comparative negligence) deve ser aplicada aos casos em que, de um lado, há inexecução do contrato por parte do devedor e, de outro, o credor culposamente concorre para o seu próprio prejuízo. O credor deve ser considerado como tendo concorrido "culposamente" quando ele deixa de cumprir um ônus legal para reduzir suas perdas potenciais, por exemplo, cooperando com o devedor3.
Ariel Porat apresenta alguns grupos de casos de não cooperação do credor em que este deve ser tido como em culpa e a corresponsabilidade aplicada. Porat afirma que, nestes casos, a eficiência exige que o credor tome medidas para reduzir a probabilidade de violação do contrato pelo devedor, ou de outra forma reduzir suas perdas potenciais. Na sua visão, o direito contratual americano vigente, ao não reconhecer a corresponsabilidade, geralmente falha em fornecer ao credor os incentivos adequados para que coopere4.
Casos de não cooperação do credor
Nos casos que podem ser classificados como de não cooperação, o credor deixa de tomar medidas para prevenir ou reduzir a probabilidade de quebra do contrato durante a sua execução.
Caso 1: falha em esclarecer mal-entendidos.
X é um subempreiteiro e Y é um empreiteiro. Eles celebram contrato para que X realize as obras e para que Y pague parcelas em diferentes fases da construção. Em determinado momento, X argumenta que atingiu uma dessas etapas de pagamento e, portanto, tem direito a uma parcela. Na verdade, X não tem este direito, uma vez que não cumpriu um requisito adicional estipulado no contrato. X não está ciente dessa exigência suplementar por causa de um descuido de sua parte. Y recusa-se a pagar, afirmando que, nos termos do contrato, não é obrigado a fazê-lo e não fornece qualquer outra explicação. X, então, interrompe a execução da obra, causando prejuízo a Y. Somente depois de um mês, durante o qual Y obstinadamente se recusou a se encontrar com X, Y explica a X por que ele não tinha direito ao pagamento5.
O direito contratual americano tradicional imporia responsabilidade exclusivamente a X, na medida em que foi ele quem interrompeu indevidamente a obra. Considera-se irrelevante o fato de que Y poderia facilmente ter esclarecido o mal-entendido e evitado a referida interrupção. Y não é, afinal de contas, consultor jurídico de X, e é deste a responsabilidade de cumprir suas obrigações nos termos do contrato6.
A jurisprudência, todavia, fornece apoio para uma outra abordagem: quando uma parte está ciente do desconhecimento da outra sobre seus direitos e deveres e pode facilmente esclarecê-la, aquela tem o dever de fazê-lo. Ela não pode omitir-se e assim tirar vantagem deliberada do descuido da outra parte7.
A corresponsabilidade é, enfim, uma terceira opção: tornaria, em tais casos, ambas as partes responsáveis pelas perdas8.
Caso 2: falha em avisar sobre um prejuízo de alto potencial
X compromete-se a transportar um eixo de manivela da fábrica de Y para reparo e trazê-lo de volta em uma semana. Em vez disso, X traz o eixo de volta após 2 semanas e isso resulta em graves prejuízos para Y, que não conseguiu encontrar um eixo substituto para suprir temporariamente a ausência do original. No momento da contratação, as partes estavam cientes de um pequeno risco de que um eixo substituto não estivesse disponível no mercado. Mas uma semana depois disso, ficou claro para Y, mas não para X, que esse risco havia se materializado. Se Y tivesse informado X a respeito no prazo para cumprimento, X teria tomado precauções dispendiosas para garantir que devolveria o eixo a tempo e teria evitado a quebra do contrato9.
De acordo com o precedente Hadley v. Baxendale, X seria responsável pelas perdas de Y, uma vez que a indisponibilidade de um eixo substituto era previsível no momento da contratação. No entanto, se Y tivesse informado a X de seus prejuízos potencialmente altos quando percebeu a efetiva indisponibilidade de um tal eixo substituto, a quebra ineficiente teria sido evitada. Uma maneira de fornecer incentivos aos credores para transmitir tais informações seria privar Y de seu direito a indenização. Uma outra opção menos extremada seria reconhecer a corresponsabilidade de ambas as partes10.
Caso 3: criando apreensões
X contrata Y para construção de um prédio. Em determinado momento, Y traz equipamentos pesados para o canteiro de obras e os coloca em um piso que havia sido concretado apenas alguns dias antes. A pedido de X, o equipamento é removido para evitar danos ao piso. Apesar disso, X suspeita que o piso já está danificado e exige sua substituição, mas Y recusa-se a fazê-lo. X proíbe, então, Y de continuar a construção e ambos sofrem prejuízos. Posteriormente, verifica-se que o piso de concreto não foi danificado e que a colocação do equipamento pesado sobre o piso foi apenas uma pequena violação contratual por parte de Y, que não justificou a suspensão da obra por parte de X. Por outro lado, verifica-se também que Y poderia ter garantido a X que o piso não estava danificado ou, alternativamente, que seria reparado se necessário. Se Y tivesse fornecido tais garantias, X não teria suspendido a obra11.
Segundo o direito contratual tradicional, X deve ser responsabilizado por quebra de contrato, na medida em que suas suspeitas de danos são "problema dele" e não afetam os direitos e deveres de Y nos termos do contrato. Por outro lado, a abordagem moderna, conforme refletida no Restatement Second of Contracts12, "permite que uma parte, que tem motivos razoáveis para suspeitar que a outra parte não cumprirá suas obrigações contratuais, exija a garantia adequada do devido cumprimento". E se a parte deixar de fornecer garantias, a parte solicitante pode tratar o contrato como tendo sido objeto de quebra antecipada (repudiated). O referido Restatement não discute explicitamente os casos em que a parte apreensiva responde violando o contrato, como no exemplo proposto. "No entanto, existe uma suposição implícita de que essa parte seria considerada em quebra contratual e responsável pelas consequências daí resultantes". Porém, uma solução melhor para este caso seria a repartição dos danos à luz da corresponsabilidade13.
Argumentos contrários
Argumentos têm sido levantados contra o reconhecimento da corresponsabilidade como um instituto geral no direito contratual. O mais significativo é o de que a corresponsabilidade prejudicaria a confiança do credor e suas "habilidades de planejamento". Argumenta-se neste sentido que, se a corresponsabilidade fosse aplicável, o credor não poderia mais ter certeza de uma indenização integral por uma obrigação contratual inadimplida. Ele não poderia mais "sentar e esperar" até que o devedor cumprisse sua parte da avença, mas teria que "ajudar, supervisionar e tomar medidas de precaução com relação à prestação da outra parte ou às suas próprias perdas potenciais".14
Conclusão da primeira parte
Apesar dos argumentos contrários, Ariel Porat propõe que, quando a cooperação é de baixo custo, a cooperação deve ser a regra. Assim sendo, a maioria das partes contratuais se beneficiaria ex ante da disponibilidade de uma corresponsabilidade, tornando-o uma regra padrão eficiente para o direito contratual15.
Na coluna que vem, vou aprofundar essa argumentação de Ariel Porat e enfrentar a questão de se a figura da corresponsabilidade é ou não aplicável ao direito contratual brasileiro.
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1 Para mais detalhes, ver: DIAS, Daniel. Mitigação de danos na responsabilidade civil. São Paulo: RT, 2020, p. 212.
2 PORAT, Ariel. A comparative fault defense in contract law. Michigan Law Review, vol. 107, p. 1397-1412, 2009. Disponível aqui.
3 PORAT, op. cit., p. 1397. Porat trabalha também situações que chama de overreliance. Pela exiguidade do espaço, restringiremos nossa análise ao campo da cooperação pelo credor.
4 PORAT, op. cit., p. 1399.
5 PORAT, op. cit., p. 1399.
6 PORAT, op. cit., p. 1399.
7 PORAT, op. cit., p. 1399.
8 PORAT, op. cit., p. 1399.
9 PORAT, op. cit., p. 1400.
10 PORAT, op. cit., p. 1400-1401.
11 PORAT, op. cit., p. 1401.
12 "Restatement Second of Contracts § 251. When a Failure to Give Assurance May Be Treated as a Repudiation. Where reasonable grounds arise to believe that the obligor will commit a breach by non-performance that would of itself give the obligee a claim for damages for total breach under [R2C § 243], the obligee may demand adequate assurance of due performance and may, if reasonable, suspend any performance for which he has not already received the agreed exchange until he receives such assurance.The obligee may treat as a repudiation the obligor's failure to provide within a reasonable time such assurance of due performance as is adequate in the circumstances of the particular case."
13 PORAT, op. cit., p. 1401.
14 PORAT, op. cit., p. 1403.
15 PORAT, op. cit., p. 1403.