A figura do Special Master na Class Action dos Estados Unidos: Um administrador judicial para a responsabilização coletiva e espécie de síndico da massa devida
segunda-feira, 26 de abril de 2021
Atualizado às 08:22
Introdução
Ao longo das últimas colunas, discutimos os modelos de tutelas coletivas de direitos e o caso Dieselgate nos Estados Unidos, União Europeia e no Brasil, merecendo reflexão específica na coluna de hoje o tema da atuação do special master na class action dos Estados Unidos. Explica-se: conforme a regra 53 das Federal Rules of Civil Procedure, as cortes podem nomear um mestre especial para a performance de deveres consentidos pelas partes e para a condução de procedimentos e conhecimento de fatos nas hipóteses de condições excepcionais, necessidade de atuação contábil ou de solucionar uma computação difícil de danos de enfrentar questões pré-processuais ou pós-processuais que não podem ser realizadas efetivamente e tempestivamente pelo magistrado em atuação na comarca.1 O objetivo do presente artigo é apresentar o special master na class action dos Estados Unidos como uma figura análoga ao administrador judicial, refletindo sobre a importância do seu papel e como poderia servir de inspiração para ampliar a efetividade da execução coletiva no Brasil com a nomeação de uma espécie de síndico da massa devida.
A necessidade de administração judicial para a efetiva responsabilização coletiva
Uma característica marcante da Class Action é seu efeito prático imediato de satisfação da pretensão indenizatória pela determinação de envio de um cheque pelo correio como compensação ou do depósito de um crédito diretamente em sua conta corrente.2 Na experiência da tutela coletiva brasileira, por outro lado, após período inicial de maior impacto regulatório - de definição das regras do jogo - do que ressarcitório, tem sido obtidos resultados mais concretos de responsabilização em massa por uma transgressão coletiva (a chamada 'mass torts litigation').3
O mecanismo de compensação coletiva da massa de consumidores pode ser estruturado como instrumento autoexecutável de pagamento da indenização. Exemplo pródigo foi a assinatura recente de Termo de Ajustamento de Conduta entre Ministério Público, Defensoria e a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE), com compromisso de desconto de 25% na conta de água de centenas de milhares de consumidores como compensação por prejuízos decorrentes da falta de abastecimento de água.4
Contudo, não raro, o Poder Judiciário brasileiro insiste na exigência de que cada consumidor lesado contrate um advogado para representá-lo em juízo e se apresente formalmente através de um pedido de habilitação de crédito. Em um caso concreto, o Ministério Público pediu que a 7ª Vara Empresarial obrigasse uma universidade privada a efetuar o pagamento de crédito de cerca de mil reais para cada um de seus 20.000 estudantes decorrentes de uma cobrança abusiva e demonstrasse documentalmente o cumprimento da execução coletiva. Apesar de a Universidade já ter sido condenada em definitivo, o Magistrado considerou em 2010, ainda antes da vigência do Código Fux (CPC/2015), que seria inadmissível "uma execução forçada a favor de quem sequer se habilitou como parte".5
Tal insistência na habilitação formal dos lesados na ação coletiva cria obstáculos para a efetiva proteção de direitos e o regular exercício da prestação jurisdicional. Nesse caso, após o indeferimento judicial da execução coletiva, o Ministério Público comunicou o Grêmio Estudantil sobre a necessidade de que cada consumidor se habilitasse individualmente para receber o crédito a que teria direito da Universidade. Ao longo dos anos seguintes, cerca de 200 habilitações formais foram apresentadas em juízo, dando origem a aproximadamente dez mil atos processuais e mil atos judiciais, que poderiam ser evitados caso tivesse sido realizada a execução coletiva.
Por outro lado, essa movimentação intensa da máquina judicial somente atendeu a cerca de 1% do universo dos lesados, formado predominantemente pelos ex-estudantes de direito que, formados como advogados, não precisaram contratar um profissional para se habilitar no processo coletivo. Os custos de transação - contratação de advogado, pagamento de honorários e custas processuais e desvio produtivo de tempo para fins de habilitação - explicam a apatia racional de 99% dos consumidores lesados que não se habilitaram na ação coletiva.6 Em síntese, a efetiva responsabilização coletiva exige do Poder Judiciário a capacidade administrativa de viabilizar o pagamento do crédito devido à massa de lesados, o que pode ser facilitado com a presença de um profissional especializado.
A figura do Special Master na Class Action dos Estados Unidos
No caso do Poder Judiciário dos Estados Unidos, o papel do Special Master consiste justamente em proporcionar gerenciamento eficiente aos tribunais e partes em um processo.7 Apesar de não terem sua atuação limitada aos processos coletivos, o próprio site da Academia dos Mestres Nomeados pelos Tribunais salienta que eles desempenham múltiplos papéis nos processos coletivos, como monitores, mediadores, facilitadores e árbitros de questões complexas no âmbito das class actions.8
Nos Estados Unidos, esses profissionais têm sido extremamente úteis no acompanhamento da instrução probatória, na negociação de acordos coletivos e na definição de uma estratégia para gerenciamento e solução de múltiplos conflitos de interesse repetitivos, tal como, por exemplo, verificado no julgamento de 9.000 processos de vítimas do amianto em um período de dois anos a partir do trabalho de apoio dado por dois special masters para o Poder Judiciário.9
O mais proeminente dos mestres especiais é o ex-Promotor de Justiça e advogado, Kenneth Feinberg, que atuou pioneiramente no acompanhamento de ações de indenização das vítimas do amianto e nos processos de responsabilidade decorrente de contaminação pelos efeitos tóxicos do produto agente laranja.10 Logo após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, o Congresso dos Estados Unidos estabeleceu um fundo de compensação para as vítimas e Kenneth Feinberg foi nomeado pelo então Procurador-Geral da República, John Ashcroft, o encarregado de promoção do plano para a resolução de um caso de responsabilização coletiva de lesados em caráter extrajudicial.11
Nessa função, ao longo de três anos, ele estabeleceu parâmetros para a compensação de cada categoria de vítimas do ato terrorista com base no valor proporcional das perdas, inclusive da estimativa de futuros rendimentos a serem recebidos.12 Também estabeleceu uma fórmula de compensação para evitar que a maior parte dos recursos do fundo fosse concentrada no pagamento de indenização para um percentual mínimo das vítimas mais ricas, reduzindo as disparidades entre os montantes mais altos e mais baixos de indenizações pagas para as vítimas.13
Além desses casos, ele atuou profissionalmente no episódio do vazamento de óleo no Golfe do México decorrente da explosão da plataforma de exploração de petróleo Deepwater Horizon de responsabilidade da empresa British Petroleum.14 Finalmente, no caso do Dieselgate nos Estados Unidos, a empresa Volkswagen também contratou Kenneth Feinberg para administrar o programa de compensação para os consumidores lesados pela compra dos veículos a diesel equipados com o artifício fraudulento.15
A figura do Mestre Especial como espécie de síndico da massa devida
A experiência dos Estados Unidos inspira a reflexão sobre a figura do mestre especial ou um administrador judicial como uma espécie de síndico da massa devida nos processos coletivos brasileiros. Tradicionalmente, os juízes das Varas Empresariais nomeiam profissionais para administração judicial de créditos falimentares a serem pagos por empresas em situação de falência ou recuperação judicial. Contudo, tradicionalmente não é nomeado um profissional para identificação da massa de créditos devidos em decorrência de uma transgressão coletiva típica de uma responsabilização em massa (mass torts litigation), que poderia adotar uma postura proativa para assegurar a efetividade da execução coletiva e do ressarcimento de todos os indivíduos lesados.
Por exemplo, no processo brasileiro do dieselgate, após a sentença condenatória proferida pelo Juízo da 1ª Vara Empresarial da Capital, em 2018, o Magistrado concedeu efeito suspensivo ao recurso de apelação devido às dificuldades causadas pelo processamento de dezenas de habilitações de consumidores de todo o país: "Apesar de não ser a praxe deste juízo a concessão de tal benefício, o fato é que a mera notícia da sentença condenatória está causando um tumulto processual sem precedentes, uma vez que consumidores das mais diversas partes do País estão ingressando nos autos pretendendo receber suas indenizações."16
A condenação foi mantida pelo TJRJ e, apesar do caso estar pendente de recursos junto ao STJ e ao STF, a tendência deve ser a manutenção da condenação diante da comprovada fraude global. Contudo, a dificuldade com a habilitação de somente algumas dezenas de beneficiários da sentença evidencia a necessidade de reestruturar a execução coletiva no Brasil. Nesse contexto, a atuação de um colaborador do juízo, custeado pela empresa-ré, poderia ser especialmente positiva, já que serão dezenas de milhares de proprietários de veículos e o valor dos danos materiais deverá ser fixado caso a caso e não mais pelo valor médio pré-fixado pela sentença de primeiro grau. A nomeação de administrador judicial para realizar o papel de síndico da massa devida, a exemplo da figura do special master nas Class Actions estadunidenses, poderia ser uma solução não somente para o processo brasileiro do dieselgate, mas também para ampliar a efetividade da execução coletiva em geral.
Considerações finais
O direito brasileiro tradicionalmente trabalha com a figura de um administrador judicial (ou um síndico) nos casos de recuperação judicial e de falência, mas não como um colaborador do Poder Judiciário para facilitar a execução coletiva e a responsabilização em massa (mass torts litigations). A experiência do special master nas class actions dos Estados Unidos poderia servir de inspiração para a nomeação de administradores judiciais (ou síndicos da massa devida) no Brasil. Tal prática poderia servir de alternativa ao modelo atual em que juízes esperam a habilitação individual da massa de consumidores, que acaba limitada a uma pequena fração do universo de lesados com grande ineficiência tanto para os lesados quanto para o Poder Judiciário. O Poder Judiciário poderia se valer de um colaborador profissional para viabilizar o pagamento de indenizações a grande número de consumidores lesados e ampliar a proteção dos direitos coletivos.
Pedro Fortes é Professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.
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1 Disponível aqui.
2 CALABRESI, Guido; SCHWARTZ, Kevin S. The costs of class actions: allocation and collective redress in the US experience. European journal of law and economics, v. 32, n. 2, p. 169-183, 2011.
3 FORTES, Pedro Rubim Borges. O Fenômeno da Ilicitude Lucrativa. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, p. 104-132, 2019.
4 Processo n. 0076803-21.2020.8.19.0001
5 Processo n. 0047319-20.2004.8.19.0001
6 VAN DEN BERGH, Roger; VISSCHER, Louis. The Preventive Function of Collective Actions for Damages in Consumer Law. Erasmus L. Rev., v. 1, p. 5, 2007.
7 BRAZIL, Wayne D. Special masters in complex cases: Extending the judiciary or reshaping adjudication. U. Chi. L. Rev., v. 53, p. 394, 1986; SCHEINDLIN, Shira. We Need Help: The Increasing Use of Special Masters in Federal Court. DePaul L. Rev., v. 58, p. 479, 2008.
8 Disponível aqui.
9 In re Ohio Asbestos Litig. 83-03 (N. D. Ohio, July 14, 1983).
10 FEINBERG, Kenneth R. Response to Deborah Hensler, A Glass Half Full, a Glass Half Empty: The Use of Alternative Dispute Resolution in Mass Personal Injury Litigation. Tex. L. Rev., v. 73, p. 1647, 1994; FEINBERG, Kenneth R. The Toxic Tort Litigation Crisis: Conceptual Problems and Proposed Solutions. Hous. L. Rev., v. 24, p. 155, 1987.
11 FEINBERG, Kenneth R. Speech: Negotiating the September 11 Victim Compensation Fund of 2001: Mass Tort Resolution Without Litigation. Wash. UJL & Pol'y, v. 19, p. 21, 2005.
12 FEINBERG, Kenneth R. What Is Life Worth?: The unprecedented effort to compensate the victims of 9/11. New York: Public Affairs, 2005;
13 Idem.
14 FEINBERG, Kenneth R. Unconventional Responses to Unique Catastrophies. Akron L. Rev., v. 45, p. 575, 2011; PARTLETT, David F.; WEAVER, Russell L. BP oil spill: Compensation, agency costs, and restitution. Wash. & Lee L. Rev., v. 68, p. 1341, 2011.
15 Disponível aqui.
16 Processo n. 0412318-20.2015.8.19.0001.