Nominal Damages: indenização sem dano por violação de direitos fundamentais
segunda-feira, 5 de abril de 2021
Atualizado às 08:01
Ao tratamos de responsabilidade civil no common law temos que desafiar convicções arraigadas no civil law. O termo alemão "schadensersatzrecht" (Lei da compensação) facilita a compreensão. A responsabilidade civil que herdamos no Brasil somente se aplica aos fatos jurídicos danosos que resultam em indenização de natureza compensatória (art. 944, CC). Já na "law of torts", as indenizações são dos mais variados tipos, nem sempre direcionadas à compensação de danos. A responsabilidade civil de berço inglês é flexível, compreendendo uma gama heterogênea de condenações pecuniárias que se presta a outras finalidades, tais como os punitive damages, restitutionary damages e, para aquilo que nos interessa neste texto, a categoria dos nominal damages.
Recentíssima decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Uzuegbunam v. Preczewski (19-968, Mar 8, 2021), trouxe à tona a funcionalidade contemporânea dos nominal damages na experiência das jurisdições do common law.
O caso é particularmente interessante: O Sr. Uzuegbunam (eu também não consigo pronunciar!) é um cristão evangélico que estudava em uma escola pública do Estado da Geórgia - Georgia Gwinnett College - e desejava conversar sobre a sua fé com outros alunos. Contudo, toda vez que tentava falar publicamente sobre religião, era impedido pelos funcionários da faculdade. Conforme a "policy" da instituição de ensino, conversar com outras pessoas sobre a fé evangélica poderia incitar o "hate speech". Assim, permitiu-se ao Sr. Uzuegbunam que apenas exercesse seu direito comunicativo em uma "zona de liberdade de expressão", disponibilizada por cerca de 10% do tempo semanal de aulas, em uma zona restrita a um pátio e uma calçada (0,0015% do campus). Os alunos interessados no debate deveriam se inscrever para obter uma autorização com pelo menos 4 dias úteis de antecedência, fornecendo cópias de todos os materiais que pretendiam distribuir. Os funcionários do campus tinham discricionariedade para conceder ou negar a licença.
O Sr. Uzuegbunam processou a faculdade por nominal damages e requereu uma tutela inibitória contra a aplicação das regras que restringiam a sua livre expressão. Ele não alegou qualquer dano de natureza patrimonial ou moral. No momento em que a "injunction" chegou a Suprema Corte, objetivando abolir as restrições como violação do direito da Primeira Emenda ao livre exercício do credo, o demandado simplesmente abandonou sua política, adotando regras bem menos restritivas. Assim, quando o Sr. Uzuegbunam se formou, a Georgia College alegou que não havia base legal para um remédio indenizatório, já que o autor não era mais afetado por qualquer restrição. Contudo, o então ex-aluno insistiu em um pedido de indenização por nominal damages, com base na violação anterior de seus direitos.
Por um placar de 8 x 1, a SCOTUS decidiu que mesmo que a violação não mais estivesse em curso, houve uma lesão a direitos fundamentais do demandante, condenando a instituição de ensino pelo montante de US$ 1,00 por nominal damages. O acórdão do julgamento explora precedentes do mundo do common law (particularmente Ashby v. White, 2 Raym. Ld. 938 K. B. 1703),1 demonstrando que este remédio objetiva indenizar uma violação constitucional e que o demandante poderá sempre postular uma indenização mesmo que "não tenha perdido sequer um penny em razão da violação". Em síntese, ao colocar a sua política de lado, a faculdade objetivou neutralizar o litígio, para novamente ativá-la no momento em que o caso fosse encerrado. Com o esvaziamento da tutela inibitória pelo abandono da "policy" e a ausência de danos, o autor seria despojado de qualquer remédio. Assim, para o demandante a pretensão de nominal damages é uma forma possível de manter o caso vivo.2
Basicamente o que seriam nominal damages? Trata-se de um remédio específico do common law que assegura ao litigante a resolução judicial de uma reclamação sobre a violação de um direito, mesmo em circunstâncias em que o autor sequer buscou, ou não foi capaz de estabelecer qualquer pretensão compensatória por danos. A sentença indenizatória reconhece a invasão de um direito em circunstâncias em que o autor não conseguiu provar os danos ou simplesmente optou por renunciar a eles. Sendo a demanda acolhida, a decisão é vinculativa (stare decisis) e possui efeito preclusivo, obrigando-se o réu ainda a pagar as custas do litígio. Por sua ênfase em garantir a reivindicação de um direito sem conteúdo econômico imediato, pode-se encontrar similitudes entre nominal damages e a ação declaratória. Contudo, a sentença declaratória (assim como a tutela inibitória) é solução prospectiva para certificar e modelar uma futura relação entre as partes, enquanto a indenização nominal é retroativa, vindicando um ilícito passado.
Não há razão para questionar a confiança nos nominal damages como veículo para a reivindicação de direitos constitucionais. A sua origem remonta ao século XIV e o legado do common law inglês rapidamente deixou a sua marca na prática jurídica do início da república americana. A Suprema Corte antebellum (denominação dos primeiros 100 anos da SCOTUS), viabilizou nominal damages, incluindo reivindicações para impor responsabilidade a funcionários do governo federal. Com o surgimento de litígios de responsabilidade civil constitucional no século XX, o Tribunal confirmou nominal damages nos casos em que a vítima demonstra uma violação aos seus direitos, mas não pode ou não quer estabelecer danos consequentes.
Vale dizer, nominal damages consiste em opção atraente para os demandantes que desejam obter um teste judicial para as suas demandas. Ao declarar expressamente na inicial que não pretendem compensatory damages ou punitive damages - limitando-se apenas à indenização nominal, sem valor real para efeito de comércio, os demandantes renunciam ao aspecto econômico da responsabilidade civil e focam na questão constitucional. Atualmente, não mais se questiona o poder das cortes federais norte-americanas de declarar os direitos constitucionais das partes em um determinado litígio.
O aspecto do "teste judicial" é determinante na ponderação de bens no caso concreto e no refinamento constitucional. Em termos de restrição ao livre discurso, o governo tem um fardo muito pesado nos EUA. Há o ônus de comprovar que as restrições são projetadas para promover um "interesse governamental convincente" e que os meios adotados são "estritamente adaptados" para atingir esse interesse. Ao contrário de outros países do common law, restringir a expressão nos Estados Unidos é algo muito custoso. Impedir alguém de "causar ofensa" ou prevenir "discurso de ódio" (seja lá o que isso signifique) simplesmente não são razões suficientes para o governo limitar os direitos da Primeira Emenda. Evidentemente, na medida em que o exercício de nossos direitos é restringido pelo direito alheio, não há direito de decapitar outra pessoa com base no fato de que isso seria um exercício livre de sua religião. Contudo, em diferentes momentos a jurisprudência dos Estados Unidos modelou os limites ao livre exercício de posições jurídicas. Particularmente em Uzuegbunam, as regras extremamente restritivas da instituição de ensino sobre quando uma religião poderia ser debatida com outras pessoas extrapolaram os limites toleráveis. Foi negado ao demandante o direito de falar educadamente com outras pessoas sobre a sua religião, uma violação de um direito constitucional de que gozava. Assim, como já não havia margem para uma medida liminar, uma ordem de indenização nominal se fez apropriada para uma privação passada de um direito, não obstante a ausência de outras formas de reparação.
Ao sugerir que uma ação de responsabilidade civil constitucional pode prosseguir apenas como uma ação por uma indenização simbólica, contemplamos uma decisão inicial do autor de renunciar a outras formas de reparação monetária ou qualquer responsabilidade financeira pessoal do demandado. Como resultado, o magistrado pode tratar o processo da mesma forma que uma tutela de urgência contra uma violação constitucional em curso. O ponto fulcral do litígio consistirá em aclarar a norma constitucional em um estado de incerteza. Portanto, quando as pessoas optam por uma indenização nominal, buscam simplesmente o reconhecimento judicial de que seus direitos foram violados. O valor concedido não é o ponto. Os demandantes simplesmente anseiam que os maus-tratos recebidos se tornem públicos, ou tentam estabelecer fundamentos para outras pretensões, tal como uma futura demanda por punitive damages em um conjunto de casos cuja repetição denota um comportamento demeritório do demandado por um desprezo pela sorte de um conjunto de vítimas.
O noticiado julgamento de 2021 se filia a um leading case do último quartel do século XX, Carey v. Piphus (435 US 247, 1978), no qual a SCOTUS se baseou explicitamente nos remédios da responsabilidade civil do common law para decidir a medida indenizatória adequada para uma violação dos direitos constitucionais dos demandantes. Embora tenham eles demonstrado que foram suspensos do ensino médio sem uma audiência, em flagrante violação ao due process of law, a Corte Suprema recusou o estabelecimento de uma presunção de danos de natureza compensatórios. Nada obstante, declarou expressamente que uma indenização nominal era disponibilizada para reivindicar o direito constitucional em questão.
Ao tornar a privação de direitos acionável por nominal damages por montante não superior a 1 dólar - mesmo sem prova de dano real - o ordenamento reconhece a importância para a sociedade que esses direitos sejam escrupulosamente observados. Em termos de enforcement, não se trata apenas de acesso ao judiciário, mas da ampliação da esfera de autonomia do demandante, direcionando o procedimento como entenda conveniente a seus propósitos. Uma sentença com indenização nominal altera a relação jurídica entre as partes de três maneiras: primeiro, a condenação fornece ao demandante direitos substantivos em virtude de ser a parte vencedora; em segundo lugar, o réu pagará ao autor, conduta que espontaneamente não faria, independente do valor; terceiro, o demandado incorre em responsabilidades legais por meio de um julgamento que induz a uma alteração comportamental.
Lado outro, o sistema de responsabilidade civil se mantém fiel ao princípio de que indenizações substanciais devem ser concedidas exclusivamente para compensar danos reais ou, no caso de punitive damages, para punir escandalosas violações de direitos. A partir do caso Carey, os tribunais federais estenderam a disponibilidade de nominal damages para uma ampla gama de ações de responsabilidade civil constitucional. Entre outros, os tribunais aprovaram tal indenização para violações a 1. Emenda em termos de liberdade religiosa e liberdades comunicativas e uma série de outras lesões a direitos fundamentais. Ou seja, esse tipo de raciocínio conecta-se com a visão do common law de que indenização pode eventualmente assumir uma função reivindicatória de um direito que foi violado.
O curioso e, de certa forma contraditório, é que a par da evolução funcional do nominal damages nos EUA, vocacionado à tutela de "constitutional torts", a tradição inglesa remete a sua aplicação aos casos em que o tribunal ordena que alguém pague uma quantia mínima a outra pessoa que ela prejudicou, mas não de uma forma que o tribunal considere séria, ou se o ilícito se fez presente, porém inexiste prova do dano e, por fim, nos casos em que o dano não pode ser calculado e de qualquer forma o ilícito mereça a desaprovação judicial. Exemplifique-se aqui com um demandante lesado que prova que as ações do réu causaram lesão física, mas não apresenta registros médicos para mostrar a sua extensão. O valor concedido é uma quantia simbólica, embora em algumas jurisdições possa ser igual aos custos da demanda judicial.3
Inegavelmente, o caso mais célebre de nominal damages em que não se considerou a demanda "suficientemente séria" para uma indenização compensatória, ocorreu quando a imprensa relatou que o então primeiro ministro Winston Churchill estaria bêbado durante um jantar na Casa Branca em 1942. Ele ajuizou uma ação de difamação contra o jornalista Louis Adamic em razão da publicação da estória inverídica. O Júri entendeu que não haveria espaço para compensação de danos, pois a elevada reputação de Churchill não fora afetada. Entretanto, o jornalista foi condenado a pagar a quantia de um shilling (cerca de 25 centavos) como uma forma suficiente da vindicação do direito do demandante de zelar por sua reputação.4
E nas jurisdições do civil law, haveria um equivalente funcional à figura dos nominal damages? Em nossa cultura compensatória, tipicamente as pessoas não demandam em caso de danos mínimos. O custo e o tumulto de uma litigância excedem a reparação esperada. Todavia, algumas pessoas demandarão independentemente da magnitude do dano, tornando claro que buscam vindicar os seus direitos ao invés de perseguir uma compensação econômica. Em casos de violações à direitos da personalidade uma vítima poderá se contentar com uma indenização semelhante ao nominal damages, normalmente associado à uma retratação pública ou pedido de desculpas.
No Código Civil brasileiro, tal como no código francês, inexiste um "de minimis rule". Lá e aqui a regra da reparação integral preside a responsabilidade civil extracontratual, aplicando-se extensivamente às pequenas indenizações, que podem mesmo conduzir a uma condenação meramente nominal quando um direito fundamental for infringido, tal como o "franc symbolique" - hoje substituído pelo Euro simbólico - indenização em que não se leva em consideração o valor monetário, mas a representatividade da decisão judicial, valorizando-se o aspecto qualitativo da indenização em detrimento do quantitativo, em reconhecimento a uma violação de um direito.
Talvez possamos nos valer da regra da proporcionalidade e da multifuncionalidade da responsabilidade civil para compreendermos que uma função reivindicatória de direitos pode ser uma alternativa à tradicional função compensatória não apenas em retratações públicas. Vale a pena reconhecer a validação simbólica que a indenização nominal oferece para muitos litigantes. O benefício de solicitar reparação por ilícitos não deriva do valor final concedido, mas do fato de que existe uma via sancionada pelo Estado para não autorizar a menor violação aos nossos direitos, convertendo ilícitos em sentenças, a final, "rights without a remedy really do not exist".
Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Fellow of the European Law Institute (ELI). Member of the Society of Legal Scholars (UK). Membro do Grupo Iberoamericano de Responsabilidade Civil. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF.
__________
1 Precedente fundacional no direito constitucional inglês. Concerne ao direito de voto e desobediência a um servidor público. Lord Holt estabeleceu o importante princípio de que pode haver prejuízo na ausência de uma perda econômica (iniuria sine damno), pois o direito presume o dano, sendo suficiente a demonstração de que um direito foi infringido.
2 Questão semelhante foi debatida em 2020 na Suprema Corte da Austrália em Lewis v Australian Capital Territory [2020] HCA 26 (5 August 2020) na qual o tribunal reconheceu que uma violação de direitos pode ser reivindicada pela via de nominal damages. Citando o precedente Ashby v White, Gordon J afirmou que "This appeal is concerned with the tort of false imprisonment, a form of trespass to the person. It is actionable per se, regardless of whether the victim suffers any harm. It does not require proof of special damage. That is unsurprising. The tort protects and, where necessary, vindicates a person's right to freedom from interference with personal liberty as a fundamental legal right.. A right to nominal damages, as one remedy, follows from that finding of liability. That award of nominal damages marks the fact that "there [was] an infraction of a legal right". There is then a question as to whether any other relief should be awarded to a particular plaintiff, in their own unique situation".
3 Com idênticos fundamentos, nominal damages também se aplicam em matéria contratual. A hipótese é rara, pois a maior parte das demandas por "breach of contract" envolvem alguma forma de perda econômica do demandante. Ilustrativamente, como hipótese de nominal damages na seara do inadimplemento, podemos citar com a Empresa A, que firma contrato com a Empresa B para fabricar 10.000 bonecos, em razão de sua notória especialização. Porém, naquele momento a Empresa A não tem a capacidade de fabricar bonecos e não revela o fato a empresa B. Ao invés disso contrata a empresa C para fabricar os bonecos a 1/3 do custo normal, obtendo grande lucro. Todavia, a Empresa B constata que já tinha 10.000 bonecos armazenados. Ao comunicar o fato à Empresa A, descobre que ela sequer manufaturava os bonecos. Embora a Empresa B não tenha sofrido uma perda financeira, a Empresa A claramente a enganou. A Empresa B pode ter a intenção de quebrar o contrato, mas isso não retira o fato de que a Empresa A formou o contrato com base em fraude. Nesse caso, mesmo com fundamento em uma relação contratual, a Empresa B poderia receber uma indenização nominal pela violação de sua confiança.
4 Churchill visitou Roosevelt em dezembro de 1941 e permaneceu em Washington até janeiro de 1942. No último dia da visita histórica de Churchill, 13 de janeiro, Roosevelt preparou uma surpresa para Churchill: ele convidou Louis Adamic e sua esposa Stella para jantar, antes de Roosevelt dar o livro "Two-Way Passage" para Churchill de autoria de Adamic com a recomendação de ler pelo menos a última parte. Na última parte do livro Two-Way Passage, Adamic ceticamente, discute as diferenças entre os britânicos e a visão americana potencial da ordem pós-guerra da Europa. Adamic apela aos EUA para que entrem na guerra mundial, mas não para ajudar a Grã-Bretanha, mas vice-versa, para que os Estados Unidos salvem a Europa do domínio britânico.