Os três modelos de tutela coletiva de direitos: Ação de Classe Estadunidense, Reparação Coletiva Europeia e Ação Civil Pública Ibero-Americana
segunda-feira, 1 de março de 2021
Atualizado às 08:37
Introdução
Um tema extremamente importante para a responsabilidade civil diz respeito aos modelos de tutela coletiva de direitos a partir da análise dos instrumentos paradigmáticos de responsabilização coletiva através de uma visão comparada e empírica.1 É importante ressaltar que existe diferença significativa no tratamento da questão nos Estados Unidos e no Reino Unido. Apesar de a origem das ações coletivas terem sido os litígios coletivos na Inglaterra medieval,2 atualmente a tutela coletiva de direitos estadunidense é baseada no paradigma da Class Action,3 ao passo que o Reino Unido tem seguido o modelo europeu de Collective Redress.4 O presente artigo discute esses dois modelos de tutela coletiva de direitos e os distingue do paradigma da ação civil pública adotado no Brasil e que serviu de base para o modelo Ibero-Americano de tutela coletiva de direitos. Assim, são delineados os três modelos de tutela coletiva de direitos: Ação de Classe Estadunidense, Reparação Coletiva Europeia e Ação Civil Pública Ibero-Americana.
A Class Action Estadunidense
O modelo de tutela coletiva de direitos dos Estados Unidos está baseado na Class Action, cuja estrutura está definida pela regra 23 das Regras Federais de Processo Civil. Seus pré-requisitos são os seguintes: (a) numerosidade - a classe é tão numerosa que o litisconsórcio é impraticável; (b) comunalidade - existem questões de direito e de fato comuns para a classe; (c) tipicidade - as causas de pedir ou as defesas dos representantes das partes são típicos das causas de pedir ou das defesas da classe; (d) representatividade adequada - as partes irão justamente e adequadamente representar os interesses da classe.5 Existem tipos de situação em que a ação coletiva é justificada, tais como: para evitar variações de julgamento ou inconsistências que poderiam estabelecer padrões de comportamento incompatíveis;6 para evitar a dispersão de julgamentos que poderia dificultar a habilidade dos indivíduos de proteger seus interesses;7 quando a parte ré se recusa a atuar de uma maneira que se aplicaria genericamente a toda a classe, de modo que será apropriado proferir uma decisão final em benefício da classe como um todo;8 quando a predominância de questões de fato ou de direito torna a ação coletiva superior aos demais métodos para a solução eficiente e justa do conflito de interesses.9
Importante, originalmente se trata de uma ação individual ajuizada por apenas um interessado, cabendo ao Poder Judiciário certificar uma ação como sendo uma ação de toda a classe de interessados ('Class Action'), definindo a classe, causas de pedir, defesas, questões controvertidas e indicar o advogado que irá patrocinar os interesses da classe na ação coletiva.10 Uma vez certificada a ação coletiva, deve ser feito um esforço de notificação coletiva dos interessados com a informação sobre a natureza da ação, possibilidade de acompanhamento efetivo através de advogado e ainda de pedido de exclusão daquela demanda coletiva, que deve ser formulado de modo apropriado e tempestivamente, sob pena de o julgamento produzir efeitos sobre a parte que não pedir sua exclusão.11
Deborah Hensler, Professora de Tutela Coletiva de Direitos na Stanford Law School, tem elogiado o modelo de agregação de interesses da Class Action justamente pela possibilidade de empoderamento dos indivíduos lesados que podem unir suas forças e buscar a compensação devida através de um instrumento que reequilibra a assimetria de poder entre poderosos e vulneráveis.12 Ao permitir que poucos indivíduos litiguem em nome de pessoas que podem sequer não saber que possuem causas jurídicas viáveis, esse tipo de procedimento de ação coletiva tem o potencial de ampliar a frequência das ações coletivas.13 Ao possibilitar que o representante da classe postule condenação de danos econômicos em nome de todas as pessoas que se enquadram na definição da classe de lesados - salvo com relação aos que se apresentem e declinem de participar, isto é, que optem por sair ('opt out') -, esse tipo de procedimento de ação coletiva amplia substancialmente o escopo da tutela coletiva de direitos também.14 Em síntese, existe potencial enorme para a prevenção de transgressões coletivas cometidas por empresas e pelo poder público e para restabelecer o equilíbrio nas relações de poder entre cidadãos e governo, empregados e empregadores, consumidores e empresas produtoras de bens e prestadoras de serviços.15
É importante salientar que o processo civil coletivo nos Estados Unidos também possui outros instrumentos processuais, tais como as ações coletivas ajuizadas pelas associações, as ações coletivas ajuizadas pelos entes públicos e os mecanismos de reunião de demandas repetitivas através das ordens de gerenciamento de casos ('Case Management Orders').16 Contudo, a Class Action é a grande protagonista do sistema de tutela coletiva de direitos por conta justamente das dimensões dessas ações coletivas e das enormes vantagens proporcionadas pelos ganhos de escala para a proteção efetiva dos direitos dos interesses lesados.17 Aliás, por conta justamente dos incentivos econômicos, tais ações coletivas quase sempre se encerram através de um acordo coletivo com a definição da quantia em dinheiro a ser paga aos lesados a título de compensação e com a definição de uma fórmula para cálculo de indenização individual ou de um procedimento para determinações dos pagamentos a serem feitos caso-a-caso (ou uma combinação de fórmula e procedimento).18 O objetivo desses acordos globais é solucionar integralmente todas as questões litigiosas decorrentes das circunstâncias fáticas geradoras da responsabilização coletiva do réu, pondo término ao conflito coletivo.19 Guido Calabresi, Professor da Faculdade de Direito de Yale e Magistrado nos Estados Unidos, elogia justamente a capacidade do sistema de tutela coletiva de proporcionar reparação através do envio de um crédito automático para cada lesado pelo envio de um cheque através do correio com o pagamento da indenização pelos danos sofridos, sem que tenha sido necessário ingressar diretamente na ação coletiva para se beneficiar do provimento jurisdicional ou do acordo coletivo.20
O Collective Redress europeu
Em contraste com o paradigma estadunidense da Class Action, a União Europeia tem desenvolvido no século XXI um modelo alternativo de tutela coletiva de direitos: o Collective Redress europeu. Em abril de 2018, na esteira do escândalo do dieselgate,21 a Comissão Europeia lançou uma nova proposta para os consumidores - 'A New Deal for Consumers', cujo objetivo principal era justamente o fortalecimento dos direitos do consumidor e da sua aplicação.22 Além de mais transparência para consumidores nas plataformas digitais e no comércio eletrônico, tal iniciativa pretendia afirmar a necessidade de desenvolvimento de novos mecanismos para que os consumidores possam proteger seus direitos e obter compensação através de uma ação representativa com características europeias23. Ao reconhecer que o cenário do escândalo do dieselgate demonstrou a inexistência de mecanismos de reparação coletiva do direito comunitário da União Europeia, a Comissão Europeia anunciou, contudo, que o modelo emergente deve ter garantias fortes, que o tornará diferente das class actions: "ações representativas não serão permitidas aos escritórios de advocacia, mas somente para associações de consumidores que não buscam o lucro e que devem estar sujeitas a um critério estrito de admissibilidade, monitoradas pelo poder público".24 O novo sistema deveria assegurar que os consumidores tenham seus direitos protegidos e recebam suas indenizações, sem que haja o risco de litígios abusivos ou desprovidos de méritos.25
Até o presente momento, contudo, o modelo europeu de reparação coletiva padece de fragilidades quanto à viabilidade econômica das ações e existem inúmeras incertezas sobre o financiamento da tutela coletiva de direitos: quem financia, quanto custa e como o mecanismo de agregação de interesses adotado pela legislação proporciona incentivos necessários para os relevantes atores jurídicos ingressarem com suas demandas coletivas.26 No Reino Unido, por exemplo, houve um caso de transgressão coletiva aos torcedores de futebol por conta de manipulação de preços de camisas de times de futebol em 2001, em que a associação de defesa dos consumidores Which? estimou que cerca de dois milhões de consumidores foram lesados em cerca de 20 libras esterlinas em média, o que justificava, em tese, o ajuizamento de uma ação coletiva do ponto de vista econômico e da abrangência da lesão coletiva.27 Contudo, na prática, como o modelo britânico exigia que os consumidores expressamente manifestassem seu interesse em ser incluídos na tutela coletiva de direitos, a ação judicial teve efeitos somente com relação a 130 consumidores que efetivamente subscreveram um termo de interesse e optaram por entrar ('opt in').28 No final, um total de cerca de 600 pessoas procuraram a associação de consumidores e um acordo coletivo foi celebrado para fins de ressarcimento, tendo o pagamento total sido estimado em 18.000 libras.29
Tais dificuldades não se limitam ao Reino Unido, sendo observadas em outras jurisdições europeias, como a Alemanha, França, Bélgica e na Escandinávia, por exemplo.30 Esses problemas não foram alterados pela recém aprovada Diretiva 1028/2020 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, que prevê ações coletivas por entidades qualificadas previamente aprovadas pelos Estados-Membros (Artigo 4º), financiadas com recursos públicos (Artigo 20, n. 2) e a manifestação do consentimento expresso ou tácito dos consumidores individuais (Artigo 9º, n. 2), sendo admissível a cobrança de taxas de adesão para participar da ação coletiva (Artigo 20, n. 3).31 Por um lado, o modelo europeu de Collective Redress expressa uma preocupação com os custos e a litigiosidade atribuída à Class Action estadunidense.32 Por outro lado, os instrumentos de reparação coletiva europeus enfrentam dificuldades em termos do mecanismo para agregação de interesses e dos problemas para financiamento das demandas de massa, em especial nos casos de pequeno valor médio do interesse individual lesado.33 Não por acaso, Rachel Mulheron defende a necessidade de adoção do regime de agregação de interesses opt out ao invés de opt in,34 tendo celebrado uma reforma legislativa de 2015 no Reino Unido nesse sentido.35
A ação civil pública ibero-americana
Além dos modelos da Class Action e de Collective Redress, existe um modelo ibero-americano de tutela coletiva de direitos, cujo paradigma é a ação civil pública brasileira. Historicamente originado pela ação popular em 1934,36 o processo coletivo brasileiro se aperfeiçoou com o advento da Lei da Ação Civil Pública37 e do Código de Defesa do Consumidor.38 Tal modelo serviu de inspiração para o advento do processo coletivo em Portugal, na Espanha e na América Latina em geral.39 Foi criado, inclusive, um Código Modelo de Processos Coletivos, que, como bem salientado por Elton Venturi, supriu uma lacuna nos países ibero-americanos, tendo sido uma iniciativa extremamente feliz para o fomento e desenvolvimento do processo civil coletivo nessas jurisdições.40 As características particulares do nosso modelo são distintas da Class Action estadunidense e do Collective Redress europeu.41
Considerações finais
O presente artigo delineou os três modelos de tutela coletiva de direitos a partir da tradição da Class Action, do Collective Redress e da ação civil pública. O paradigma da ação de classe inspirou o desenvolvimento da tutela coletiva de direitos em outros países da common law, tal como Canadá42 e Austrália, por exemplo.43 No Reino Unido, por outro lado, o modelo de tutela coletiva de direitos seguia as diretrizes europeias do Collective Redress, sendo certo que a proteção dos direitos coletivos dos consumidores têm sido insuficiente, tal como evidenciado por inúmeros exemplos de transgressões coletivas sem a devida reparação.44 Existe, aliás, a sugestão doutrinária de que o modelo brasileiro e ibero-americano poderiam servir de paradigma para os países da Civil Law.45 Nesse contexto, aliás, e diante da frustração com a efetividade do modelo europeu, Miguel Sousa Ferro, Professor na Universidade de Lisboa, se pergunta, inclusive, se Portugal irá mostrar o caminho para a Europa com relação aos desafios e possibilidades da responsabilização coletiva.46
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1 A respeito do tema, aliás, confira-se FORTES, Pedro Rubim Borges. Collective action in comparative and empirical perspective: towards a socio-legal theory. 2016. Tese de Doutorado. University of Oxford.
2 YEAZELL, Stephen C. et al. From medieval group litigation to the modern class action. Yale university press, 1987.
3 HENSLER, Deborah R. et al. Class action dilemmas: Pursuing public goals for private gain. Rand Corporation, 2000.
4 HODGES, Christopher. The reform of class and representative actions in European legal systems: A new framework for collective redress in Europe. Bloomsbury Publishing, 2008.
5 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, a.
6 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, b, 1, a.
7 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, b, 1, b.
8 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, b, 2.
9 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, b, 3.
10 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, c, 1.
11 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, c, 2.
12 HENSLER, Deborah, The Globalization of Class Actions: An Overview. in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), p. 8.
13 Idem, 8-9.
14 Idem, 9.
15 Idem.
16 PACE, Nicholas M., Group and Aggregate Litigation in the United States. in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), 33-36.
17 HENSLER, Deborah R. et al. Class action dilemmas: Pursuing public goals for private gain. Rand Corporation, 2000.
18 HENSLER, Deborah, The Globalization of Class Actions: An Overview. in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), p. 20.
19 Idem.
20 CALABRESI, Guido, Class Action in the U.S. experience: The Legal Perspective, BACKHAUS Jürgen, Alberto CASSONE, and Giovane RAMELLO (editors), The Law and Economics of Class Actions in Europe: Lessons From America. Cheltenham, Edward Elgar (2012), p. 10-11.
21 FORTES, Pedro Rubim Borges; OLIVEIRA, Pedro Farias. A insustentável leveza do ser? A quantificação do dano moral coletivo sob a perspectiva do fenômeno da ilicitude lucrativa e o'caso Dieselgate'. Revista IBERC, v. 2, n. 3, 2019.
22 Disponível aqui.
23 Idem.
24 Idem.
25 Idem.
26 CAMERON, Camille, Jasminka KALAJDZIC, and Alon KLEMENT, Economic Enablers, inHENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Ianika, TZANKOVA, Class Actions in Context: How Culture, Economics, and Politics Shape Collective Litigation. Cheltenham: Edward Elgar (2016), p. 137.
27 HODGES, Christopher. The Reform of Class and Representative Actions in European Legal Systems: A New Framework for Collective Redress in Europe. Oxford: Hart (2008), p. 24-25.
28 Idem, p. 25.
29 Idem, p. 25-26.
30 LEIN, Eva et al. Collective Redress in Europe: Why and How?. British Institute of international and comparative law, 2015.
31 Directive (EU) 2020/1828 of the European Parliament and of the Council of 25 November 2020 on representative actions for the protection of the collective interests of consumers and repealing Directive 2009/22/EC.
32 HODGES, Christopher, European Union Legislation, in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), p. 81.
33 Idem, p. 82.
34 MULHERON, Rachael. Justice Enhanced: Framing an Opt-Out Class Action for England. The modern law review, v. 70, n. 4, p. 550-580, 2007.
35 MULHERON, Rachael. The United Kingdom's New Opt-Out Class Action. Oxford Journal of Legal Studies, v. 37, n. 4, p. 814-843, 2017.
36 MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; DA FONSECA, Rodrigo Garcia. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção," habeas data". Revista dos Tribunais, 1989.
37 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo, 1995.
38 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. Forense Universitária, 2007.
39 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazou; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito comparado. 2011.
40 VENTURI, Elton, Introdução. GIDI, Antonio; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Comentários ao código modelo de processos coletivos: um diálogo ibero-americano. Juspodivm, 2009. p. 21.
41 GRINOVER, Ada Pellegrini, Brazil. in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), p. 63-67.
42 KALAJDZIC, Jasminka. Class actions in Canada: The promise and reality of access to justice. UBC Press, 2018.
43 MULHERON, Rachael. The class action in common law legal systems: a comparative perspective. Bloomsbury Publishing, 2004.
44 HODGES, Christopher. The reform of class and representative actions in European legal systems: A new framework for collective redress in Europe. Bloomsbury Publishing, 2008.
45 GIDI, Antonio. Class actions in Brazil-a model for civil law countries. The American Journal of Comparative Law, v. 51, n. 2, p. 311-408, 2003; GIDI, Antonio. The class action code: a model for civil law countries. In: BACKHAUS Jürgen, Alberto CASSONE, and Giovane RAMELLO (editors), The Law and Economics of Class Actions in Europe: Lessons From America. Cheltenham, Edward Elgar (2012), 2012.
46 FERRO, Miguel Sousa. Collective redress: will Portugal show the way. Journal of European competition law & practice, v. 6, n. 5, p. 299-300, 2015.