Doctrine of frustration of contract: uma visão geral
segunda-feira, 21 de setembro de 2020
Atualizado às 09:07
Nesta minha segunda participação na coluna "Direito Privado no Common Law", aproveito para tratar de um tema especialmente relevante na atualidade, por conta da pandemia da Covid-19: a doctrine of frustration of contract, presente no Direito inglês.
Noção
Após a celebração do contrato, se sobrevierem circunstâncias que impeçam, alterem ou onerem consideravelmente o cumprimento das prestações para uma das partes, no Direito inglês o contratante prejudicado pode invocar a doctrine of frustration. O contrato passa a ser tido como ineficaz. Na prática, ele não poderá mais servir de base para uma pretensão contratual de cumprimento, ou mesmo para uma pretensão indenizatória por breach of contract1.
Origens
Em um primeiro momento, na Inglaterra, a maioria dos deveres contratuais era tida como absoluta, no sentido de que eventos supervenientes à formação do contrato não isentariam o devedor do seu cumprimento. Em um julgado de 1647 (Paradine v Jane), o locador exigira o pagamento de aluguel e o locatário contestou, alegando que foi desapossado do imóvel por ato de inimigos do rei. O argumento de defesa não foi acolhido, sob o fundamento de que os deveres contratuais devem ser cumpridos independentemente de "qualquer acidente por necessidade inevitável", porque o devedor poderia ter se precavido e previsto isso no próprio contrato. Esta doctrine of absolute contracts é tida, até os dias de hoje, como suficientemente satisfatória e continua sendo aplicada a casos onde a sua aplicação é razoável, levando-se em consideração a natureza do contrato ou as circunstâncias de sua celebração2.
Em leading case de 1863 (Taylor v Caldwell), foi formulada regra geral para extinção dos contratos por eventos supervenientes que ficou conhecida como doctrine of frustration. No caso, as partes contrataram a locação de uma sala de espetáculos para apresentação de quatro concertos. Seis dias antes da primeira apresentação, o prédio foi destruído por um incêndio acidental, tornando-se impossível a realização dos espetáculos. Em face do não cumprimento do contrato, os locatários exigiram dos locadores indenização pelos gastos com publicidade do evento e outras despesas. O tribunal concluiu que os locadores não eram responsáveis, porque o contrato havia sido extinto com a destruição do prédio. A base para isso foi a percepção da corte de que o contrato estava sujeito a uma "implied condition that the parties shall be excused in case, before breach, performance becomes impossible from the perishing of the thing without the default of the contractor"3.
Vale menção de que, na atualidade, essa regra encontra expressão no Sale of Goods Act 1979, onde prevê-se que, em caso de contratos de compra e venda de coisa certa, se a coisa se perder após a celebração do contrato, o contrato é ineficaz por frustration4.
Ampliação
Após a sua formulação em 1863, a doctrine of frustration passou por um "período de crescimento". Ela foi aplicada a casos em que a impossibilidade da prestação decorreu de outras formas que não a perda de coisa específica. E também a casos em que a prestação não se tornou propriamente impossível, mas o "objetivo comercial, ou propósito, do contrato foi frustrado." Em um caso julgado em 1903 (Krell v Henry), o réu alugou um apartamento durante os dias programados para a coroação do Rei Eduardo VII. Apesar de não estar previsto expressamente no contrato, o seu objetivo era o de assistir aos cortejos da coroação. O Rei ficou, todavia, doente e as celebrações foram adiadas, frustrando o propósito do contrato. Do ponto de vista material, a prestações não eram impossíveis, pois o locatário poderia ter usado e pagado pelo apartamento nos dias originalmente ajustados. Mas o tribunal concluiu que a frustration não era restrita à impossibilidade física, sendo também aplicável "to cases where the event which renders the contract incapable of performance is the cessation or non-existence of an express condition or state of things, going to the root of contract, and essential to its performance"5.
Restrição da teoria
Ao longo da maior parte do século XX, contudo, a doctrine of frustration passou por um estreitamento do seu escopo. Diversos fatores fundamentam essa tendência: a resistência dos tribunais em permitir que uma parte se utilize da teoria apenas como uma forma de escapar de um mau negócio; a dificuldade de traçar uma linha distintiva entre casos de frustration e casos em que a responsabilidade pela quebra do contrato é estrita; a tendência dos comerciantes de preverem as possíveis causas de frustration, redigindo cláusulas expressas no contrato sobre obstáculos à prestação6.
Nesse sentido, a Segunda Guerra Mundial deu origem a poucos casos reportados nos quais se reconheceu ter havido frustration por outras razões que não impossibilidade jurídica superveniente. Em 1956, por conta da Crise de Suez, apenas em dois casos a frustration doctrine foi inicialmente aplicada. As decisões foram, todavia, reformadas em segunda instância. Quando o Canal de Suez foi fechado novamente em 1967, pleitos de frustration obtiveram mais sucesso. Mas a "crise energética", resultante de ulteriores hostilidades no oriente médio em 1973, não levou a nenhum caso em que frustration tivesse sido sequer alegada como defesa7.
Deve-se levar em conta que, nos casos relativos ao fechamento do Canal de Suez, não houve propriamente impossibilidade da prestação. A prestação meramente tornou-se mais onerosa para a parte alegando frustration. Há, de fato, uma nítida relutância dos tribunais para aplicar a teoria a esta hipótese. Por outro lado, ela foi aplicada a casos em que a prestação foi efetivamente impossibilitada. Isso ocorreu em casos envolvendo contratos de transporte marítimo em que os navios ficaram presos por longos períodos após eclosão de hostilidades entre Irã e Iraque em 19808.
Dificuldades práticas
Do ponto de vista prático, a doctrine of frustration dá azo a duas dificuldades. Em primeiro lugar, apenas raramente é melhor que o contrato seja totalmente extinto, em vez de permanecer em pleno vigor. Frequentemente, algum meio-termo é a solução mais razoável. Nesse sentido, em alguns casos relativos ao cancelamento da coroação, os contratos previam que, se o cortejo fosse cancelado, o portador do ingresso teria direito a usá-lo no dia que ele viesse a ocorrer. De maneira análoga, após 1956, os contratos de transporte ou venda de mercadorias passaram a prever qual das partes suportaria o custo extra, caso o Canal de Suez viesse a ser fechado novamente. Na falta de tais previsões expressas, esse tipo de solução é vedado aos tribunais ingleses, pois eles não têm o poder de modificar os contratos por conta de eventos supervenientes9.
A segunda dificuldade é a de que a alocação de riscos produzida pela doctrine of frustration nem sempre é inteiramente satisfatória. Em um caso como Taylor v Caldwell, pode ser razoável que o locador não seja em nenhuma medida responsável pelos lucros que o locatário esperava obter com a prestação. Por outro lado, não é igualmente evidente que o locatário deva suportar sozinho as perdas decorrentes de ter agido confiando no contrato. Neste caso, o locatário requereu indenização não por lucros cessantes, mas pelos gastos inutilizados em divulgação e preparação para os espetáculos. Sem dúvida os locadores também incorreram em despesas com instalações e outros preparativos para os espetáculos. Pode ser, então, preferível que tais prejuízos fossem distribuídos entre as partes. No common law, contudo, isso seria possível apenas se o contrato contivesse previsão expressa nesse sentido. Se, por exemplo, em um dos casos da coroação, o contrato previsse que, em caso de cancelamento do cortejo, o portador do ingresso teria direito à restituição do seu dinheiro, menos uma porcentagem para cobrir os custos do devedor10.
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1 KÖTZ, Hein. Europäisches Vertragsrecht. 2. Aufl. Tübingen: Mohr Siebeck, 2015, p. 416.
2 TREITEL, Guenter; PEEL, Edwin. The law of contract. 12th. ed. London: Sweet & Maxwell, 2007, p. 925.
3 Taylor v Caldwell, 1863, p. 833 apud TREITEL; PEEL, op. cit., p. 925. Segundo observa Reinhard Zimmermann, essa solução tem inspiração no Direito romano. Por outro lado, a construção baseada na "condição tácita" é criticada por apresentar natureza fictícia e sérias inconsistências. Para críticas, ver: ZIMMERMANN, Reinhard. The law of obligations: Roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 816.
4 Cf. Sale of Goods Act 1979: Art. 7. Goods perishing before sale but after agreement to sell. Where there is an agreement to sell specific goods and subsequently the goods, without any fault on the part of the seller or buyer, perish before the risk passes to the buyer, the agreement is avoided.
5 Krell v Henry, 1903, p. 748 apud TREITEL; PEEL, op. cit., p. 926.
6 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 927.
7 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 927.
8 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 927.
9 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 927-928.
10 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 928.