Trabalho invisível: A economia do cuidado e o impacto previdenciário, social e humano na vida das mulheres
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Atualizado em 11 de abril de 2025 14:11
Não raras vezes, quando paramos para refletir sobre a luta emancipatória feminina, deparamo-nos com problemas históricos que parecem nos perseguir ao longo do tempo. A sensação é a de que, por mais que tenhamos avançado em algumas pautas, o progresso se distancia sobremaneira, quando o assunto é divisão de trabalho e responsabilidades - e aqui nem estou me referindo aos desafios do mercado, no que tange à desigualdade salarial e de oportunidades. A reflexão aqui considerada tem a ver com o trabalho, sequer remunerado. Aquele invisível à sociedade e delegado historicamente à figura feminina, a quem restou reservado o dever de tornar a economia do cuidado cada vez mais pulsante. Uma lógica que perpetua desigualdades e fortalece uma estrutura social machista e misógina.
Muitos são os impactos que esse sistema de opressão seletivo causa na vida das mulheres; um deles tem natureza previdenciária. Ao passo que vemos um mercado de trabalho majoritariamente ocupado por homens, às mulheres é reservado o espaço privado de seus lares, onde realizam as atividades atinentes à organização, limpeza, cuidado com os filhos, dentre tantas outras ocupações possíveis, a comprometer a percepção de uma renda e, naturalmente, inviabilizar o recolhimento de contribuições previdenciárias, resultando em um prejuízo substancial do ponto de vista de proteção social, diante de eventos que relativizem a capacidade - seja temporária ou permanentemente - ou ainda diante da velhice, quando a possibilidade de uma aposentadoria ganha especial relevância.
O distanciamento da mulher do mercado de trabalho retira dela a autonomia financeira e a coloca numa posição de excessiva vulnerabilidade, condição agravada pelo desgaste emocional a isso subjacente, uma vez que as renuncias relacionadas à carreira profissional, aos negócios, à liberdade de escolha, embora possam parecer adequadas, dentro de um conservador senso de moralidade, são especialmente danosas, pois impactam sensivelmente a vida e o bem-estar social dessas mulheres a médio e longo prazo, naquilo que é fundamental para a manutenção da dignidade de qualquer indivíduo: a capacidade de prover o seu próprio sustento.
Nesse contexto, tem-se um desdobramento comum relacionado a essa problemática, que é a questão dos subempregos. Impossibilitadas de deixar o ambiente doméstico na lógica de manutenção da economia do cuidado, e na tentativa de recobrar a autoestima e a independência financeira, as mulheres têm apostado no mercado informal, lançando mão de cursos digitais para agregar novas habilidades e fazer disso uma fonte de renda, o que aparentemente pode parecer bom, mas na verdade é uma realidade que mascara um problema de ordem estrutural, e que revitimiza a mulher em relação aos seus esforços.
Outro aspecto importante a ser considerado nessa análise diz respeito ao recorte socioeconômico e racial, relacionado ao tema. Quando lançamos luz a essas percepções, fica ainda mais nítida a gravidade do problema, uma vez que considerar os impactos do trabalho invisível e não remunerado na vida de mulheres brancas de classe média à alta é totalmente diferente de fazer a mesma análise observando a realidade de mulheres negras e pobres.
Os desafios se acentuam sensivelmente porque, no caso destas, o racismo estrutural e o elitismo distanciam ainda mais as oportunidades de emprego e crescimento profissional, sem mencionar que os deveres de cuidado, além de serem administrados conjuntamente com qualquer outra ocupação informal, em razão da ausência de alternativas capazes de atenuar a sobrecarga, são tidos como única possibilidade para essas mulheres, tendo vista a presunção preconceituosa de que estas seriam limitadas intelectualmente para outras ocupações.
Ao evidenciar as diferentes realidades, o cuidado contesta a existência de um ponto de vista próprio relativo à experiência e ao lugar que as mulheres ocupam na sociedade como categoria homogênea, favorecendo um ponto de vista que emerge da conjunção das relações de poder, de raça e de classe, fato que expõe a necessidade não apenas de fortalecer o diálogo e estimular a conscientização sobre o assunto, mas também a responsabilidade de, enquanto sociedade, promover o enfrentamento político da matéria, visando o combate efetivo às desigualdades e às opressões.
A despeito dos avanços, o acesso feminino ao trabalho remunerado ocorre ainda em situação desvantajosa, e isso significa, dentre outras consequências danosas, ter que lidar com uma dupla jornada, onde o desgaste físico e mental decorrente da sobrecarga de afazeres vulnerabiliza ainda mais a mulher. Além disso, a divisão sexual do trabalho se traduz no mercado, na persistente super-representação das mulheres nas ocupações precárias, mal remuneradas e de menor prestígio social, assim como na sistemática diferença na distribuição de homens e mulheres nas diferentes profissões e ocupações.
Todas as questões consideradas, quando observadas sob a ótica previdenciária, evidenciam as inúmeras fragilidades a nível de proteção social e legal quando o assunto envolve o trabalho invisível e não remunerado das mulheres. Isso porque o impacto prático dessa realidade caracteriza mais uma violência em face de um grupo já vulnerabilizado na sociedade, especialmente, no que tange a dificuldade de materializar os meios probatórios nas demandas que envolvem a aposentadoria rural das seguradas especiais; passando pela dificuldade de reconhecimento de ocupações informais como trabalho, no contexto de concessão dos benefícios por incapacidade; assim como a possibilidade remota de uma aposentadoria após anos de afastamento do mercado de trabalho, sem mencionar os desafios próprios relativos ao salário-maternidade. Todas essas questões corroboram, sobremaneira, o impacto previdenciário da economia do cuidado na vida das mulheres.
Nesse ponto, é salutar destacar alguns dados estatísticos: i) segundo a OIT, 76% do trabalho de cuidado não remunerado no mundo é realizado por mulheres; ii) pela mesma fonte, em 2030, 2,3 bilhões de pessoas demandarão cuidado ao redor do mundo; iii) a Oxfam divulgou, em 2020, que mulheres e meninas dedicam 12,5 bilhões de horas ao trabalho do cuidado não remunerado. Este dado representa uma contribuição anual avaliada ao menos em 10,8 trilhões de dólares; iv) segundo o IBGE, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, em 2022, mulheres brasileiras dedicaram aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas quase o dobro de tempo que os homens. São 21,3 horas semanais, contra 11,7 horas, em média; v) 86% das mulheres com idades entre 14 e 24 anos cuidam de afazeres da casa; entre os homens da mesma idade, só 69%; vi) as taxas de realização de afazeres domésticos pelas mulheres brancas (90,5%), pretas (92,7%) ou pardas (91,9%) são sempre mais altas que a dos homens dos mesmos grupos de cor ou raça (80,0%, 80,6% e 78,0%, respectivamente).
Em 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio de seu Conselho de Administração, deu um importante passo ao iniciar um amplo debate sobre a economia do cuidado. Esse diálogo resultou, em junho de 2024, na aprovação de uma resolução histórica durante a 112ª Conferência Internacional do Trabalho. O entendimento firmado entre representantes de governos, empregadores e trabalhadores destaca que o trabalho relacionado à economia do cuidado, assim como qualquer outra atividade laboral, não deve ser tratado como mercadoria. Além disso, reforça o direito universal de acesso ao cuidado, e a necessidade de garantir condições justas e dignas para aqueles que desempenham essas funções.
Diante do exposto, é imprescindível reconhecer que o trabalho de cuidado, embora invisibilizado e não remunerado, segue estruturando as bases de uma sociedade machista e patriarcal, impondo uma carga cada vez mais pesada sobre as mulheres, especialmente as mais vulneráveis. A omissão histórica do Estado e da sociedade em valorizar e amparar essa forma de trabalho resulta em impactos nefastos na trajetória profissional, na autonomia financeira e na proteção previdenciária dessas mulheres. Para avançarmos rumo a uma sociedade mais justa e igualitária, é urgente que políticas públicas sejam implementadas com foco na redistribuição do cuidado, no reconhecimento legal e previdenciário dessas atividades e na desconstrução das estruturas de gênero, raça e classe que perpetuam essas desigualdades. O enfrentamento da economia do cuidado como um problema político e coletivo não é apenas uma questão de justiça social - é um passo necessário para garantir dignidade e equidade a todas as mulheres.
Referências
IPEA. Relatório de Pesquisa. Economia dos cuidados: marco teórico-conceitual. 2016.
Oxfam Brasil. Trabalho de cuidado: uma questão também econômica. 2020.
Agência IBGE Notícias. PNAD Outras formas de trabalho. 2022.
OIT. Artigo de opinião. Economia do Cuidado: Um pilar para a justiça social. 2024.
Forbes. Economia do cuidado: mulheres são responsáveis por mais de 75% do trabalho não remunerado. 2023.