O assédio moral no serviço público: Veneno que adoece servidores, principalmente mulheres
sexta-feira, 28 de março de 2025
Atualizado em 27 de março de 2025 15:50
A organização do serviço público sofreu alterações ao longo dos anos, passando a ser gerenciada de forma mais próxima ao modelo privado, com o estabelecimento de metas, exigência de produtividade, cobrança por desempenho etc. - transformações que trouxeram melhorias, mas impuseram condições consideráveis aos servidores, especialmente em relação à pressão psicológica no ambiente de trabalho.
Nesse cenário, também se acirraram as dinâmicas de gestão mais incisivas, com cobranças excessivas de resultados, metas inalcançáveis e prazos reduzidos - reflexo de um mundo do trabalho cada vez mais acelerado.
Essas mudanças foram impulsionadas pelas políticas neoliberais, que tensionaram o papel do Estado ao priorizar a eficiência gerencial em detrimento das garantias sociais, resultando em um ambiente laboral marcado por cobranças intensificadas e imposição de metas produtivas. A reforma do aparelho do Estado, ao incorporar práticas da administração privada, introduziu inovações tecnológicas e organizacionais que, embora voltadas para a modernização e a redução de custos, também intensificaram o trabalho estranhado e agravaram os impactos à saúde mental dos servidores1.
Esse tipo de ambiente organizacional fomenta o estresse ocupacional, levando ao adoecimento físico e mental das pessoas. O aumento de transtornos como depressão, ansiedade e Síndrome de Burnout demonstra como essa pressão excessiva impacta diretamente a saúde dos servidores. No âmbito federal, de 2017 a 2024, 15 mil servidores foram afastados por transtornos mentais2.
Nesse contexto, altos níveis de exigência psicológica, associados ao baixo controle sobre as atividades laborais, aumentam a prevalência de reações adversas, como fadiga, exaustão emocional e doenças físicas. Além disso, a ausência de tempo para lazer e o acúmulo de demandas contribuem para a diminuição da resiliência no trabalho, intensificando os impactos negativos do estresse ocupacional3.
Esse contexto cria um terreno propício para o assédio moral, que se manifesta por meio de violências e microviolências, como linguagem agressiva, tratamento ríspido, formas de agir mais impositivas e desrespeitosas etc., que humilham, constrangem e até mesmo adoecem a pessoa afetada. Além disso, gestores que atuam de maneira descompensada e desproporcional acabam reforçando dinâmicas abusivas, intensificando o problema.
De forma resumida, o assédio moral no ambiente de trabalho pode se manifestar por meio de diversas condutas abusivas que visam desestabilizar emocionalmente a vítima e prejudicar sua atuação profissional. Entre as práticas mais comuns estão a atribuição de instruções confusas e contraditórias, a imposição de obstáculos desnecessários ao andamento das atividades e a responsabilização injusta por erros inexistentes4.
Além disso, a sobrecarga de tarefas sem justificativa, o isolamento social imposto por meio da proibição de interação com colegas e a exposição pública a críticas e brincadeiras de mau gosto são estratégias recorrentes para enfraquecer a autoestima da vítima. Outras formas de assédio incluem a retirada de instrumentos essenciais para o desempenho das funções, a imposição de horários arbitrários e a disseminação de boatos que possam comprometer sua reputação5.
É fundamental esclarecer que assédio moral não se confunde com a cobrança por metas e produção dentro da razoabilidade que a atividade exige, nem com a fiscalização de assiduidade ou cumprimento de horários. O problema reside no excesso e no abuso de poder, se manifesta no grito, no gesto agressivo, em atitudes desproporcionais que, ao se acumularem, contaminam o ambiente de trabalho - o que pode se dá por meio de comportamento sistemático e reiterado, mas também um ato isolado e pontual.
Nesse sentido, a Convenção 190 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) ampliou a definição de assédio, reconhecendo que ele pode ser tanto um padrão repetitivo quanto um evento específico - já defendi essa posição em outro artigo e entendo que a jurisprudência e a doutrina precisam ser revistas para refletir essa concepção mais atual6. E mais: ainda que o Brasil não tenha ratificado formalmente a Convenção 190, ela integra o rol de convenções fundamentais da OIT, que os Estados-membros devem observar (art.2º, Declaração da OIT relativa aos princípios e direitos fundamentais no trabalho).
Quando o assédio ocorre dentro da administração pública, a situação se torna ainda mais alarmante, pois o poder público deve servir de exemplo para a iniciativa privada no que tange ao zelo pelo meio ambiente laboral. No entanto, o que se observa é justamente o contrário: ambientes de trabalho adoecedores, onde a pressão e o abuso de poder estão presentes - a Controladoria-Geral da União (CGU) contabilizou 4.162 queixas e denúncias relacionadas a assédio moral e sexual no período de 1º de janeiro a 25 de agosto de 2023. Um volume que representa o maior registrado desde o início da série histórica da CGU, que acompanha esses dados desde 20177.
E os impactos negativos não ficam restritos a esfera do poder público. Vão muito além do local onde ocorrem. Eles se irradiam para outros órgãos, afetam os familiares dos servidores e prejudicam a sociedade como um todo. Além disso, atingem diretamente a imagem das instituições.
Outro aspecto preocupante é que pessoas assediadas por vezes reproduzem essas práticas, perpetuando um ciclo de abuso e sofrimento - não à toa digo e repito que o assédio funciona como um veneno que contamina todas as esferas, afetando indivíduos, família, coletividade e estruturas institucionais.
Quando se faz um recorte de gênero, a questão assume proporções ainda mais graves. A pesquisa intitulada "Mulheres e liderança na burocracia federal" demonstra a alta incidência de assédio contra mulheres no serviço público, apontando a violência de gênero como um dos principais problemas enfrentados ao longo de suas carreiras. Seis em cada dez mulheres entrevistadas relataram ter sofrido assédio moral, enquanto 28,3% vivenciaram assédio sexual e 30% foram vítimas de violência psicológica - são dados que refletem um ambiente de trabalho hostil, no qual a discriminação de gênero, apontada por 55,1% das participantes, também se configura como um obstáculo para a ascensão profissional8.
As mulheres, por integrarem um grupo vulnerável, sofrem mais com as cobranças abusivas. O machismo estrutural as coloca sob uma pressão desproporcional, pois, além das exigências do trabalho, muitas vezes são submetidas à dupla ou tripla jornada, acumulando funções domésticas e de cuidado. Como resultado, são alvos do esgotamento físico e mental.
Não é por acaso que as mulheres figuram entre as que mais adoecem, sendo as principais vítimas de transtornos como depressão, ansiedade e síndrome do pânico. As condições precárias de trabalho, aliadas à sobrecarga, intensificam o sofrimento psíquico9.
Diante do assédio moral, a vítima deve adotar algumas medidas para se proteger e buscar a responsabilização do agressor. É essencial registrar detalhadamente todas as humilhações sofridas, anotando datas, locais, testemunhas e o teor das agressões. Além disso, dar visibilidade à situação ao procurar apoio de colegas que tenham presenciado ou vivenciado condutas semelhantes podem fortalecer a denúncia10.
Sempre que possível, deve-se evitar interações com o agressor sem a presença de testemunhas, reduzindo os riscos de manipulação ou intimidação. Outra medida fundamental é acionar os canais formais de denúncia da instituição, garantindo que o caso seja devidamente investigado. Ademais, é importante contar com o apoio psicológicos e até mesmo psiquiátrico, se for o caso11.
Para a Instituição Pública enfrentar esse problema, é essencial criar mecanismos eficazes de acolhimento, garantindo suporte adequado às vítimas. Canais de denúncia precisam funcionar de maneira efetiva, protegendo os (as) denunciantes e assegurando investigações sérias e imparciais. É imprescindível acender o alerta e compreender o problema do assédio dentro da dinâmica organizacional do trabalho, sem negligenciar os riscos psicossociais.
Mais do que isso, é necessário promover uma cultura organizacional que previna, minimize e elimine essas práticas. É dever das instituições envidar todos os esforços para mitigar/eliminar o assédio moral e suas consequências, criando ambientes de trabalho saudáveis e hígidos para todos os servidores.
Referências
ARNAUD, Fernanda Iracema Moura; GOMES, Vera Lúcia Batista. Novas formas de gestão da força de trabalho do serviço público brasileiro e suas repercussões para o adoecimento mental: um estudo sobre os servidores de uma instituição judiciária. Revista Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 48, p. 106-134, jul./dez. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2025.
ASSIS, Cinthia. Saúde mental dos servidores públicos: do tabu aos primeiros passos. República.org, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 18 fev. 2025.
FERNANDEZ, Michelle; MARQUES, Ananda. Mulheres na liderança da burocracia federal: desafios e dificuldades para ascensão na carreira. República.org, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025.
MATOS, Larissa. O conceito de assédio para o Direito do Trabalho a partir da Convenção 190 da OIT. Revista LTR, ano 88, junho/2024, p. 683-688.
PEREIRA, Giselle. Assédio: CGU registra 4 mil denúncias no Executivo federal em 2023. SINTRAJUD, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2025.
PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025.
ROSSATO, Gabrieli; ONGARO, Juliana Dal; GRECO, Patrícia Bitencourt Toscani; LUZ, Emanuelli Mancio Ferreira da; SABIN, Luiza Dressler; MAGNAGO, Tânia Solange Bosi de Souza. Estresse e resiliência no trabalho em servidores públicos federais. Enfermagem em Foco, v. 11, n. 3, p. 78-86, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025.
SAMPAIO, Fabiana. Quase metade das mulheres brasileiras sofrem de ansiedade ou depressão. Agência Brasil, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025.
__________
1 ARNAUD, Fernanda Iracema Moura; GOMES, Vera Lúcia Batista. Novas formas de gestão da força de trabalho do serviço público brasileiro e suas repercussões para o adoecimento mental: um estudo sobre os servidores de uma instituição judiciária. Revista Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 48, p. 106-134, jul./dez. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2025.
2 ASSIS, Cinthia. Saúde mental dos servidores públicos: do tabu aos primeiros passos. República.org, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 18 fev. 2025.
3 ROSSATO, Gabrieli; ONGARO, Juliana Dal; GRECO, Patrícia Bitencourt Toscani; LUZ, Emanuelli Mancio Ferreira da; SABIN, Luiza Dressler; MAGNAGO, Tânia Solange Bosi de Souza. Estresse e resiliência no trabalho em servidores públicos federais. Enfermagem em Foco, v. 11, n. 3, p. 78-86, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025.
4 PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025.
5 PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025.
6 MATOS, Larissa. O conceito de assédio para o Direito do Trabalho a partir da Convenção 190 da OIT. Revista LTR, ano 88, junho/2024, p.683-688.
7 PEREIRA, Giselle. Assédio: CGU registra 4 mil denúncias no Executivo federal em 2023. SINTRAJUD, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 fev. 2025.
8 FERNANDEZ, Michelle; MARQUES, Ananda. Mulheres na liderança da burocracia federal: desafios e dificuldades para ascensão na carreira. República.org, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025.
9 SAMPAIO, Fabiana. Quase metade das mulheres brasileiras sofrem de ansiedade ou depressão. Agência Brasil, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 19 fev. 2025.
10 PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025.
11 PRÓ-VIDA. Assédio moral pode afetar a saúde mental do profissional. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 21 fev. 2025.