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Os impactos do divórcio post mortem sobre as mulheres

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Atualizado em 11 de setembro de 2024 13:46

É bastante comum no Direito Civil que os alunos dos cursos de graduação nada (ou quase nada) estudem sobre questões vinculadas a elementos de gênero ou quanto a sexualidade como um todo, segundo uma premissa de que haveria a prevalência de uma perspectiva de igualdade segundo a qual, para efeito de aplicação da lei, não existiria qualquer distinção entre alguém do gênero masculino ou feminino.

Um dos raros momentos em que o estudo do Direito Civil menciona aspectos da sexualidade é no Direito de Família, muito em decorrência da concepção clássica de que a família, base da sociedade, seria constituída pelo casamento o qual, por natureza, seria entabulado entre um homem e uma mulher1.

Hoje encontra-se consolidada, até mesmo constitucionalmente, a perspectiva de que a família pode ser estruturada não apenas por meio do matrimônio, mas também pela união estável ou pelas entidades monoparentais, persistindo a arrogância do Direito de querer definir o que é uma situação de fato como a família2. Reconhecido também o pleno afastamento da necessidade de diversidade sexual para a constituição de entidades familiares, nos termos reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 42773.

A indissolubilidade do matrimônio existente outrora também foi soterrada, com a prevalência do entendimento atual de que a possibilidade de por termo ao casamento revela-se como um direito potestativo4, o qual pode ser exercido por qualquer dos cônjuges a qualquer tempo e independentemente de comprovação de um dado motivo especificado no texto da lei.

Ainda que todos esses assuntos estejam permeados por elementos eminentemente sociais, com um forte recorte de gênero, essa perspectiva é pouco abordada na prática, com uma quantidade tímida de trabalhos versando sobre como homens e mulheres são impactados de formas diferentes pela aplicação da lei.

Quando tais distinções são apresentadas o mais recorrente é que o sejam para meramente indicar quem mais acorre ao Poder Judiciário em busca da aplicação deste ou daquele preceito jurídico, sem que se teça considerações mais aprofundadas sobre as consequências para as pessoas segundo seu gênero.

A questão do divórcio é um dos pontos em que a perspectiva de gênero tem maior incidência, tendo ela já sido objeto de apreciação até mesmo nessa coluna, quando tratei da figura do divórcio tardio (gray divorce) e como ele atinge de forma mais severa as mulheres5. E é, mais uma vez, esse meio de dissolução do casamento que será analisado sob lentes de gênero, mas agora considerando uma modalidade que vem ganhando atenção nos últimos tempos, e sobre a qual já tenho me manifestado há mais de 5 anos.

Muito se publicou nos últimos tempos em redes sociais, especialmente em perfis de profissionais da área jurídica e voltados para o público do direito, sobre a figura do divórcio post mortem, notadamente com as discussões entabuladas com relação à reforma do Código Civil e à decisão do Superior Tribunal de Justiça que a aplicou6.

Nos termos do que apresento em trabalho publicado pela Revista dos Tribunais intitulado de "Divórcio Post Mortem", desenvolvido em parceria com Vivian Assis, em 20197, bem como em live realizada com o estimado amigo e colega de Universidade Federal da Bahia, Rodolfo Pamplona Filho8, em 2020, a ideia básica é que a morte de um dos cônjuges, após iniciado o processo de divórcio, não pode ensejar em extinção do processo sem julgamento de mérito por perda do objeto (art. 485, IX do CPC).

A relevância do tema também foi reconhecida na proposta de reforma do Código Civil atualmente em trâmite. E acredito que com alguma influência do referido artigo científico citado e da sugestão que apresentei (ainda que não tenha sido expressamente comunicado de que tenha ela sido efetivamente aceita)9, já que consta a inclusão do divórcio post mortem no texto do que seria o novo § 4º do art. 1.571, com redação bastante próxima daquela que propus10.

Ainda que a morte de um dos cônjuges encerre em si uma forma de dissolução do casamento, o que poderia conduzir à ideia de que o pleito de divórcio não mais teria relevância, não se pode ignorar que existem diferenças consideráveis entre ser casado e divorciado do falecido, especialmente quanto aos aspectos sucessórios.

Em uma análise bastante célere é de se afirmar que aquele que se encontra divorciado do falecido não possui direitos sucessórios, de forma que se o processo de divórcio for julgado procedente, mesmo após a morte de um dos cônjuges, com seus efeitos retroagindo à data do óbito ou do término do convívio do casal, haveria o afastamento do ex-cônjuge da herança.

Para fins práticos é de se entender que o divórcio post mortem acaba sendo uma situação que importará em um manifesto benefício dos demais herdeiros em detrimento do cônjuge separado (judicialmente ou de fato) cuja sentença de divórcio ainda não fora prolatada.

Em suma, havendo a extinção do processo de divórcio ante à eventual perda do objeto, o cônjuge continuaria sendo cônjuge, viraria viúvo em decorrência da morte e seria, a princípio, herdeiro do falecido. Com a configuração do divórcio post mortem esse cônjuge perderia o status de casado, em decisão que retroagiria e faria com que ele deixasse de gozar da condição de sucessor do de cujus.

Isso se dá vez que o Código Civil, ao discorrer sobre a ordem de vocação hereditária (art. 1.829), prevê a presença do cônjuge como herdeiro, atendidos alguns requisitos, em concorrência com os descendentes. Estabelece também que na ausência desses, concorre com os ascendentes (até mesmo com cota mínima garantida) e precede aos colaterais se o falecido não tiver deixado parentes em linha reta.

Contudo para que possa ser herdeiro esse cônjuge, nos termos do art. 1.830 do Código Civil, não pode estar separado judicialmente, nem mesmo de fato (há mais de 2 anos, salvo se for inocente pela ruptura). Como a premissa para que tenha direitos sucessórios é que seja cônjuge, se for divorciado não estará entre os que tem vocação hereditária legítima.

Considerando os impactos econômicos distintos que recaem sobre homens e mulheres, especialmente quando o divórcio se dá em uma idade mais avançada11, faz-se necessário ponderar como o afastamento do cônjuge do gênero feminino da sucessão, em decorrência do divórcio post mortem, trará efeitos mais profundos para as mulheres do que para os homens.

Para além de vir a perder quem eventualmente ainda lhe conferia suporte econômico, decorrente de dever de alimentos, o afastamento da condição de herdeiro vai privar esse cônjuge não só do acesso aos bens do falecido, mas também do direito real de habitação ao qual poderia, em dados casos, fazer jus (art. 1.831 do Código Civil).

A razão óbvia para se pensar nas mulheres como as que mais sentirão os efeitos do divórcio post mortem repousa no fato de que sua expectativa de vida (79 anos) é superior que aquela apresentada pelos homens (72 anos)12, de sorte que há uma maior probabilidade prática de que, nos relacionamentos entre pessoas de gêneros distintos, o cônjuge supérstite seja aquele do gênero feminino.

Por certo que não se está aqui afirmando que existe qualquer tipo de conduta que tenha o intuito de prejudicar ainda mais as pessoas do gênero feminino ao se pugnar pela aplicação do divórcio post mortem. Trata-se apenas de uma constatação fática de que a aplicação da lei com acuidade técnica tende a impor um maior gravame a um grupo que é socialmente mais vulnerabilizado.

Mas esse fato não pode ser ignorado, tampouco ser tido como um mero efeito colateral que acaba por vitimar mais uma vez aquela que normalmente já padece de uma série de perdas em decorrência da fria aplicação do texto legal.

É preponderante que a condição de vulnerabilidade da mulher seja parte dessa equação para que não venha a ter contra si a imposição de um ônus que apenas reforçaria todas as iniquidades pelas quais passa. Compreender o contexto e considerar todo o entorno que envolve a situação há de ser um fator crucial para a justa aplicação dos efeitos decorrentes do reconhecimento do divórcio post mortem.

Imagine que uma mulher, vítima de violência doméstica, proponha ação de divórcio e, na primeira hipótese, o cônjuge que a agrediu, de forma maliciosa, tente protelar ao máximo a prolação da sentença com o intuito de manter a condição de herdeiro no caso da morte iminente da vítima. A imposição dos efeitos do divórcio post mortem impediriam que esse agressor viesse a se beneficiar de sua própria torpeza. Porém, nesse mesmo contexto, se o agressor vier a falecer, essa vítima estaria afastada dos direitos sucessórios, podendo o patrimônio, em certas circunstâncias, até mesmo ser encaminhado para o Estado ante a uma caracterização de jacência e vacância.

É premente que se tenha o cuidado para que a efetiva implementação do divórcio post mortem não venha a gerar uma maior vulnerabilização das mulheres, impondo-se que a incidência dos seus efeitos esteja vinculada aos parâmetros fixados pelo Conselho Nacional de Justiça no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero13.

Seguindo a diretriz que orienta magistrados(as) a considerarem desigualdades e vulnerabilidades de gênero em seus julgamentos caberia a aferição das circunstâncias vividas por aquele cônjuge supérstite para se determinar se caberia ou não a incidência dos efeitos do divórcio post mortem e se, ato contínuo, ele haveria de ser afastado da condição de herdeiro.

Exatamente para tentar mitigar o risco de uma ampliação dos gravames enfrentados por aquele que é a vítima das violências nos relacionamentos a proposta que apresentei para a reforma do Código Civil previa apenas a incidência do divórcio post mortem quando do falecimento do autor do pleito de dissolução do casamento. Talvez essa não fosse a formulação perfeita mas aparentemente reduziria a possibilidade de que a vítima fosse prejudicada pela morte do agente das condutas ofensivas.

O aspecto delicado a ser ponderado nesse contexto de afastamento dos efeitos do divórcio post mortem é que muitas vezes os maiores beneficiados com a exclusão do cônjuge da sucessão poderiam ser outros grupos vulnerabilizados, como descendentes na condição de crianças/adolescentes ou mesmo de ascendentes idosos.

Trata-se, portanto, de questão extremamente intricada e que merece um olhar bastante acurado da doutrina, bem como uma aplicação consciente do Poder Judiciário, a fim de que aqueles que merecem proteção especial não sejam ainda mais vulnerabilizados.

Não há como se pensar em uma incidência cega dos efeitos concebidos para o divórcio post mortem pois isso poderá acarretar em manifesta injustiça, afrontando claramente os preceitos norteadores do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero ou a princípios constitucionais caros a um Estado Democrático de Direito.

 Entender e aplicar as leis tendo a Justiça como norte exige do operador do direito muito mais do que o mero conhecimento da técnica. Impõe também, entre outras coisas, uma compreensão elementar dos alicerces da sexualidade, como tenho indicado de forma contínua nessa coluna.

 O manejo dos institutos jurídicos vai além da letra fria da legislação. E nossa doutrina e Judiciário ainda não se mostram plenamente capacitados para tanto já que é recorrente uma completa marginalização dos elementos vinculados à sexualidade que são indispensáveis para a efetivação da Justiça.

__________

1 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296.

2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, n. 1, p.III - VII, 2022.

3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 130.

5 Disponível aqui

6 Disponível aqui.

7 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ASSIS, Vivian S. Divórcio post mortem. Revista dos Tribunais. São Paulo. Impresso, v.1004, p.51 - 60, 2019.

8 Disponível aqui.

9 Disponível aqui.

10 Texto proposto:

"O falecimento do cônjuge que formulou o pedido de divórcio não extingue o processo, devendo o pedido ser julgado, com seus efeitos retroagindo à data da morte, em caso de procedência"

Texto aprovado:

"O falecimento de um dos cônjuges ou de um dos conviventes, depois da propositura da ação de divórcio ou de dissolução da união estável, não enseja a extinção do processo, podendo os herdeiros prosseguir com a demanda, retroagindo os efeitos da sentença à data estabelecida na sentença como aquela do final do convívio"

Apesar do texto da proposta indicar que os efeitos da sentença retroagiriam à data do "final do convívio", o relatório final traz que "o falecimento de um dos cônjuges depois da propositura da ação de divórcio não ensejaria a extinção do processo, podendo os herdeiros prosseguir com a demanda, retroagindo os efeitos da sentença à data do óbito."

11 I-Fen Lin; Susan L Brown. The Economic Consequences of Gray Divorce for Women and Men, Innovation in Aging. V. 6, n. suplem. 2022, p. 295.

12 Disponível aqui.

13 Disponível aqui.