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Crianças trans existem?

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Atualizado em 19 de junho de 2024 11:05

SIM.

Talvez essa coluna devesse acabar aqui com essa resposta simples. Exatamente por se tratar de uma pergunta que não precisaria de maiores considerações para que fosse respondida.

Contudo esse questionamento vincula dois temas sensíveis (crianças e sexualidade), o que impõe a necessidade de um aprofundamento na sua apreciação para que aqueles que não se sentiram satisfeitos com a resposta dada não possam simplesmente transformarem-se em detratores também desse texto baseados exclusivamente em seus "achismos"1.

Como tenho manifestado de forma reiterada na presente coluna um dos grandes problemas de nossa sociedade atual é que vivemos uma era em que todas as pessoas se sentem confortáveis para expor sua opinião pessoal sobre temas acerca dos quais não cabe qualquer ponderação fundada no que ela pensa2.

Não se trata de uma discussão sobre liberdade de expressão ou direito de se manifestar, mas apenas sobre senso crítico. O acesso à informação e a possibilidade de se expressar potencializados pela era da informação e pela universalização do acesso à internet tem, inegavelmente, o seu lado ruim.

Eu sou um jurista e certamente não faz nenhuma diferença as eventuais considerações e opiniões que eu possa ter sobre física quântica, por exemplo. Qual valor deve ser dado para uma assertiva que eu venha a fazer de que "a física quântica não existe~? Certamente não faria qualquer diferença e seria solenemente ignorada pelos cientistas e também pela sociedade já que não possuo qualquer respaldo para tecer considerações sobre esse assunto.

Contudo algumas áreas, apesar de apresentarem uma complexidade elevada, aparentam ser mais acessíveis à população como um todo, a ponto de muitos se sentirem autorizados a expressar o seu pensamento coloquial sobre uma questão técnica. E o fazem de forma indiscriminada, sem qualquer compromisso e sem sofrerem quaisquer consequências por desinformarem.

Quando questionados pelas sandices que expressam defendem-se com escusas como: "essa é a minha opinião". Nem mesmo se atentam que se trata de uma questão que não comporta opiniões, por ser calcada em fatos científicos.

Hoje tem sido cada vez mais recorrente as pessoas parecerem orgulhosas de sua ignorância e desconhecimento, asseverando que não precisam estudar ou se dedicar a aprender, bastando externalizar o seu pensamento construído com o que ela "sabe". Arvoram-se a expor sua opinião sobre o que não dominam, o que é ainda mais preocupante ao se considerar que não se trata de algo que admita uma "opinião".

Nesse contexto que se encontram aqueles que negam a existência de crianças transgênero. No âmbito da sexualidade pode-se afirmar que trata-se do equivalente a afirmar que a Terra é plana, como afirmo no meu Manual sobre Direitos das Pessoas Transgênero que será lançado em breve. A razão para uma afirmação tão contundente é bastante corriqueira: em sede ciência médica é consolidado o entendimento de que a transgeneridade se faz presente entre crianças.

Para trazer luz aos "céticos" quanto a essa afirmação o primeiro passo é se apoderar da premissa básica, sem a qual mostra-se impossível que se estabeleça qualquer diálogo sobre o tema, especialmente porque a maioria das manifestações contrárias à existência de crianças transgênero partem de pessoas que não têm a mínima ideia do que é identidade de gênero e transgeneridade.

Sabendo-se que a identidade de gênero "está atrelada ao conceito de pertencimento de cada um, na sua sensação ou percepção pessoal quanto a qual seja o seu gênero (masculino ou feminino)3, independentemente da sua constituição física ou genética"4, pode-se conceber, com base nesse pilar da sexualidade, que as pessoas são entendidas como sendo cisgênero ou transgênero.

Tem-se por cisgênero aquele indivíduo que não revela qualquer dissonância entre o gênero esperado em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando do nascimento e o gênero ao qual entende pertencer5. É quem teve a si atribuído o sexo homem/macho ao nascer e entende-se como alguém do gênero masculino, ou nasceu mulher/fêmea e sente-se do gênero feminino.

Os transgêneros, por sua vez, são aqueles que apresentam uma incompatibilidade entre o gênero esperado em razão do sexo que lhe foi indicado ao nascer e o gênero ao qual se entende pertencente6, de forma que esperava-se que fosse do gênero masculino por terem o sexo homem/macho mas sentem-se como alguém do gênero feminino (chamados de mulheres transgênero), ou quem se suponha que haveria ser do gênero feminino mas sente-se como do masculino, apesar de ter-lhe sido atribuído quando do nascimento o sexo mulher/fêmea (homens transgêneros)7.

Devidamente definida a condição sobre a qual a discussão se assenta cabe afirmar que sua existência é inquestionável, plenamente reconhecida pela medicina, com sua incidência podendo se manifestar desde os primeiros anos de uma criança.

A mera verificação do conteúdo da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), documento médico utilizado em todo o mundo para padronizar a indicação das condições clínicas e patológicas existentes, traz expressamente a incongruência de gênero na infância ou na adolescencia como uma doença passível de ser diagnosticada (código HA60 - incongruência de gênero na adolescência ou na idade adulta e código HA61 - incongruência de gênero na infância).

Essa tal incongruência de gênero descrita nessa classificação elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com a contribuição dos maiores especialistas em diversas áreas da saúde, é caracterizada pelo sofrimento psicológico que pode ser apresentado por quem revela a incompatibilidade físico/psicológica que caracteriza a transgeneridade, constituindo-se como uma condição que merece acompanhamento médico com o fim de tratar essa angústia.

Será que todos esses profissionais que dedicaram sua vida à medicina estão errados em afirmar que existem crianças transgênero?

Há também o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association - APA), que também prevê a existência de sofrimento em decorrência da transgeneridade em crianças (código 302.6) e em adolescentes (código 302.85). Nesse mesmo documento há a afirmação expressa de que essa sensação de desconforto psicológico normalmente tem início na infância8, o que torna evidente que a transgeneridade se faz presente naquele momento, já que não há como experienciar a consequência antes da causa se instalar.

Estariam também esses profissionais equivocados?

No âmbito nacional o Conselho Federal de Medicina (CFM) afirma expressamente a existência da chamada incongruência de gênero. A Resolução 2265/19, que dispõe   sobre   o   cuidado   específico   à   pessoa   com incongruência   de   gênero   ou   transgênero, prevê no Anexo III, que versa sobre o acompanhamento psiquiátrico, que a identidade de gênero se configura por volta dos 4 (quatro) anos, cominando que os eventuais efeitos psicológicos daí decorrentes deverão ser verificados ante acompanhamento a ser realizado durante a infância daquela criança9.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) também não sabe o que está dizendo?

Em mapeamento realizado no Município de São Paulo cerca de 70% dos entrevistados afirmaram que deixaram de identificar-se com o gênero a eles imposto em decorrência do sexo que lhes foi designado ao nascer até os 15 anos de idade (26% entre os 6 e 10 anos e 36% entre os 11 e 15 anos)10.

Estariam essas pessoas mentindo? Qual seria o seu mote para inventar uma condição que só lhes traz prejuízo e segregação?

Importante que fique bastante claro que apesar de constar de documentos médicos a transgeneridade não é uma doença.  E isso precisa ser evidenciado para que não se queira retornar a um período já superado de patologização11.

O apagamento enfrentando pelas pessoas transgênero, tão nefasto e que coloca em risco a sua integridade12, se mostra ainda mais forte com as crianças transgênero, pois ao se negar sua existência se está negando que elas tenham acesso aos direitos mais elementares, já que aquele que não existe não precisa de proteção.

O preconceito e a ignorância quanto as questões atinentes à sexualidade fazem com que até mesmo um dos preceitos mais nucleares no que tange a crianças e adolescentes seja ignorado, pois tal negativa rechaça a efetivação da determinação constante do art. 227 da Constituição Federal que assevera ser "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade" seus direitos elementares.

Uns negam a existência de crianças transgênero sob a simples alegação que nunca as viu, como se o contato com uma determinada situação fosse o parâmetro científico para que ela viesse a existir.

  Crianças trans existem e essa é uma afirmação que não se reveste de nenhuma conotação moral, política ou religiosa. Não posso crer que ainda nos permitimos considerar como dignas de leitura afirmações como a de que crianças trans não existem principalmente quando expressadas por pessoas que não têm o menor conhecimento técnico científico sobre o tema.

Essa negativa despropositada fomenta o preconceito e a discriminação, fatores preponderantes para a absurda taxa de suicídios que recai sobre as pessoas transgênero, ainda mais quando se considera que os pensamentos suicidas se manifestam inicialmente antes mesmo dos 18 anos (84% dos casos), como constatado em pesquisa realizada no Chile13.

A existência de crianças trans é um fato, e penso que tenha ficado evidente que isso não é uma opinião. Não cabe falar de opinião ou liberdade de expressão, mormente quando se trata de um tema em que a desinformação pode matar.

Então não permita que manifestações inconsequentes e falsas continuem sendo propagadas. Compartilhe o conhecimento trazido nessa coluna para que ao menos consigamos afastar o risco de que alguém continue a negar fatos cientificamente comprovados. Porém, se mesmo assim alguém que pode ter contato com esse material o ignorou e segue negando a existência de crianças transgênero estará comprovado que se trata de alguém mal intencionado, criminoso e ignóbil.

Queiram ou não aqueles que apresentam um viés religioso extremista ou moralista ignorante, a resposta para o título da presente coluna é elementar: CRIANÇAS TRANS EXISTEM14.

__________

1 Preocupação que tem sido constante nos textos dessa coluna.

2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Informações jurídicas imprecisas na mídia e redes sociais: o risco de danos para a sociedade. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 1, p. III-VI, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 19 jun. 2024.

3 A indicação aqui apresentada está simplificada, considerando a visão binária do gênero, mas não ignoramos toda a gama de expressões de gênero existentes.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16.

6 Disponível aqui.

7 Reitero o posicionamento adotado desde sempre nessa coluna de que o sexo binário há de ser nomeado de homem/macho ou mulher/fêmea, e não masculino ou feminino.

8 Disponível aqui. Acesso em 12 jan.2024.

9 Disponível aqui. Acesso em: 17 jan.2024.

10 CEDEC - CENTRO DE ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA. Mapeamento das Pessoas Trans na Cidade de São Paulo: relatório de pesquisa. São Paulo, 2021, p. 25. Disponível aqui. Acesso em 01 mai.2023.

11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 36.

12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022.

13 Resumen Ejecutivo Encuesta-T 2017, p. 23-24.

14 Muitas famílias de crianças trans apresentam trabalhos interessante de conscientização, como é o caso da ONG Minha Criança Trans.