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Pode haver racismo contra quem não é negro? Os contornos de raça atribuídos pelo STF para a sexualidade

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Atualizado em 5 de junho de 2024 14:24

Compreender a dinâmica da sociedade contemporânea é imprescindível para que se possa assimilar alguns elementos técnicos que transpõem o entendimento ordinário das pessoas. Sob o holofote dos parâmetros estatuídos em um Estado Democrático de Direito é primordial que achismos e lugares comuns não influenciem discussões técnicas.

Dentre esses um dos mais intrincados é a compreensão do conceito de raça e, consequentemente, de racismo.

Tradicionalmente se tinha a concepção de que os seres humanos poderiam ser divididos, segundo aspectos biológicos, em raças, o que já se mostrou cientificamente superado após estudos de sequenciamento genético que constataram que todos os seres humanos pertencem a uma mesma e única raça.

Brancos, pretos, pardos, amarelos ou qualquer outra designação que tenha existido para distinguir as pessoas a partir da cor de sua pele não tem respaldo nas ciências biológicas. Contudo, mesmo sendo entendimento consolidado, as distinções lastreadas na cor da pele das pessoas seguem pautando nossa sociedade, revelando, indubitavelmente, que a segregação que existe em razão das chamadas "raças" em verdade não está calcada em elementos biológicos mas sim em parâmetros bem diferentes.

De sorte que é bastante plausível se questionar: Se não existem raças como é possível que se continue a discutir o racismo e seus desdobramentos?

A resposta é simples: O racismo não está lastreado no conceito biológico de raça.

A definição mais comum para o termo raça, bem como para racismo, está associada a características físicas (cor de pele, cabelo, constituição facial, etc), sendo as chamadas pautas raciais direcionadas à efetivação, em favor população negra, das garantais constitucionalmente asseguradas a todas as pessoas. Essa construção que vincula raça às pessoas pretas e pardas mostra-se assentada no campo da sociologia e de muitas outras ciências, contudo, para o mundo jurídico, o termo tem uma amplitude diferente.

Inicialmente é primordial se pontuar que a Constituição Federal é expressa ao distinguir raça de cor (de pele) já que consta do texto do art. 5º as duas expressões de forma concomitante. Partindo da premissa de que não há palavra inútil ou supérflua no texto da lei (verba cum effectu sunt accipienda) é inquestionável que tais palavras não são sinônimas e encerram em si concepções distintas, de maneira que pode-se afirmar de forma peremptória que para fins constitucionais raça e cor são aspectos distintos e que gozam de proteção, não se admitindo discriminações baseadas nem em uma, nem na outra.

O ordenamento jurídico pátrio toma por base a concepção social de raça, que deságua na figura do racismo social, que se estabelece segundo uma crença de superioridade de um grupo face a outro, tido por inferior e, portanto, passível de discriminação e segregação, baseado não apenas em aspectos físicos mas também em critérios morais, intelectuais, culturais, étnicos, religiosos, geográficos, entre outros.1

Essa opção legislativa que criminaliza como racismo condutas ofensivas calcadas não só na cor da pele da pessoa resta evidenciada no texto positivado. A lei caó (lei 7716/89) que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor segue firmando a distinção, asseverando que o crime de racismo configura-se ao "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional" (art. 20), tipificando ainda "injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional" como injúria racial (art. 2º-A).

Estando patente que raça não é o mesmo que cor, e que racismo não se restringe somente a ofensas e discriminações fundadas nos caracteres fenotípicos de uma pessoa de pele negra é premente que se discorra sobre o que efetivamente comporta, para fins jurídicos, tais expressões.

Fundado na concepção social de racismo que parte da premissa de um determinado grupo que se considerada superior a outro que não expressa as mesmas características que as suas, e, em razão disso, passa a agir de forma a subjugar, menosprezar, reduzir direitos, e até mesmo extirpar da sociedade sua presença, é evidente que racismo, sob o viés legal, vai além do genocídio do povo negro.2

Sem que se estabeleça qualquer tipo de comparação ou equivalência, que em nada ajuda nessa análise e acaba por criar celeumas que apenas fortalecerão as maiorias, a nossa realidade revela que existem outros grupos sociais que também padecem dessas mesmas mazelas, razão pela qual a legislação que pune as condutas racistas sanciona também atos discriminatórios que se lastreiam em aspectos diversos da cor.

Ainda que haja alguma resistência por parte daqueles que se dedicam às pautas raciais (segundo o parâmetro tradicional), temendo que a utilização da expressão para tratar de situações que não se direcionam ao preconceito fundado na cor da pele e características físicas a ela associadas ensejaria no enfraquecimento da sua luta, o fato é que atualmente a legislação pátria abarca no conceito de raça e racismo mais do que o usualmente entendido.

Mesmo sensível aos reclames dos que defendem os interesses das pessoas negras não há como se conceber a exclusão de outros grupos vulnerabilizados da proteção oferecida pela legislação destinada à apenação do crime de racismo e injúria racial. Uma luta não invalida a outra, tampouco um grupo deve ficar desprotegido para que as necessidades do outro sejam reconhecidas.

Comungo da ideia de que seria salutar a existência de uma legislação específica visando a proteção dos direitos de cada um dos grupos vulnerabilizados, atendendo às idiossincrasias inerentes a cada um deles. Contudo não alcançamos tal estágio de evolução civilizatória, fator que nos conduz a albergar sob a proteção da lei mais abrangente todos aqueles que são vítimas de uma tentativa de redução por parte de um grupo detentor de poder.

O STF, consoante ao acima exposto, reconheceu no início dos anos 2000, no julgamento do que ficou conhecido como Caso Ellwanger (HC 82.424-2/RS), que a configuração do crime de racismo não se restringia apenas a práticas discriminatórias baseadas na cor de pele das pessoas, condenando o editor Siegfried Ellwanger por divulgar material antissemita e negar o holocausto através de sua editora.

Foi esse também o posicionamento adotado pelo STF quando do julgamento da ADO 26, entendendo pela aplicação das penas previstas para o racismo e para a injúria racial às condutas de homofobia e transfobia. No entanto é de se notar que nesse caso houve uma maior resistência em se admitir a utilização da concepção social de raça.

Como de costume, quando as questões tangenciam elementos da sexualidade, especialmente em se tratando das minorias sexuais, há sempre uma objeção à concessão de direitos a tais grupos vulnerabilizados, em clara expressão à fragilidade masculina, cisgênero e heterossexual existente.3 Reconhecer que publicações antissemitas configuravam racismo, como no Caso Ellwanger, não gerou tantas oposições quanto as vistas de certos setores da sociedade e mesmo do mundo jurídico quando da criminalização da homofobia e da transfobia, o que pode ser atribuído ao desconhecimento e ao preconceito.

Configura-se a homofobia quando a homossexualidade, enquanto atributo concernente à orientação sexual, é usada como elemento a fundamentar práticas segregatórias e discriminatórias respaldadas na crença de que em razão dessa característica a pessoa possa ser ofendida ou subjugada, ante a compreensão de que não é merecedora dos mesmos direitos garantidos a todas as demais. Caso o fundamento da conduta seja a transgeneridade da vítima, estamos diante da transfobia.

O reconhecimento de que homossexuais e pessoas transgênero às quais são direcionadas manifestações discriminatórias, baseadas em sua orientação sexual ou identidade de gênero, são vítimas de racismo ou injúria racial não tem nenhuma relação com interpretação por analogia que, por determinação expressa da lei, não cabe na hermenêutica aplicável à legislação penal.

Como pode ser facilmente constatado da decisão proferida na ADO 26 o que se deu foi a delimitação do conceito de raça, reconhecendo também a necessidade de que seja elaborada a legislação específica, mas que, enquanto essa não for apresentada, impõe-se a aplicação dos preceitos atrelados ao crime de racismo às condutas discriminatórias praticadas contra homossexuais e pessoas transgênero.

Contudo é relevante se ponderar a situação segundo uma perspectiva que contemple a adequada compreensão dos elementos associados à sexualidade, mormente ao se considerar que entre as minorias sexuais existem outros grupos que não apenas homossexuais e pessoas transgênero.

No âmbito da identidade de gênero é de se entender que ao ter utilizado a expressão transgênero a decisão valeu-se do termo guarda-chuva que reúne em si todos aqueles que apresentam uma percepção de gênero distinta daquela esperada em razão do sexo que lhe foi atribuído quando do seu nascimento.4

Contudo ao trabalhar apenas com a ideia de homossexuais quando se deteve a tratar da orientação sexual acabou deixando de fora outros grupos minoritários e vulnerabilizados. De sorte que, por um critério de coerência e primando pela igualdade, é inafastável que bissexuais, assexuais e pansexuais também tenham para si reconhecida a proteção da legislação que tipifica o racismo e a injúria racial.

Nesse mesmo contexto da sexualidade e seus elementos componentes é possível se sustentar ainda que o feminino, enquanto aspecto de gênero, há de ser compreendido também como uma condição passível de ser reconhecida como um elemento de raça, segundo a perspectiva social, nos exatos termos reconhecidos pelo STF em favor da orientação sexual e da identidade de gênero.

Ao se considerar toda a realidade que perpassa pelo feminino, com salários menores mesmo exercendo as mesmas funções, imposição social de responsabilização pelos deveres de cuidado, elevada taxa de homicídios simplesmente pelo fato de expressarem socialmente o feminino, bem como toda sorte de violência sexual, fica clara a presença de uma situação na qual o homem/masculino age como um grupo majoritário que subjuga e mitiga direitos delas.

Mulheres são vítimas de agressões pelo simples fato de expressarem o feminino, podendo-se afirmar que, em alguma medida, padecem dos mesmos riscos enfrentados por pessoas transgênero e homossexuais, ainda que se tenha muito por cristalino que em um estágio de luta mais desenvolvido. Pessoas transgênero e homossexuais estão em um estágio mais embrionário na busca pela garantia dos direitos que lhes são imprescindíveis do que quem expressa o feminino, contudo não há como se negar toda a discriminação que ainda recai sobre elas.

Finalmente é necessário que se aprecie o tema segundo o alicerce do sexo, mais especificamente com relação às pessoas intersexo, que são aquelas que, por seus aspectos físicos ou genéticos, não se adequam perfeitamente aos padrões clássicos atribuídos ao homem ou à mulher, nos termos trazidos em colunas anteriores.5

Em razão de sua condição também é bastante comum que pessoas intersexo sejam vitimadas por racismo social, nos exatos termos anteriormente expostos, de forma que a si também há de ser conferida a proteção penal específica.

Assim, considerando os preceitos balizadores da concepção jurídica de raça e de racismo, conforme já reconhecido pelo STF, não há hermenêutica admissível que afaste a compreensão de que todo aquele que integra uma minoria sexual pode ser inserido como vítima do tipo penal que busca coibir o racismo.

Para que não reste dúvidas o que estou afirmando é que pessoas transgênero, homossexuais, assexuais, bissexuais, pansexuais, mulheres e pessoas intersexo são vítimas de racismo, independentemente de sua cor de pele, apenas e tão somente em razão de sua condição de integrantes de uma minoria sexual.

Proteger as minorias sexuais com a tipificação penal serve para revelar de forma patente o nível de vulnerabilidade por elas vivenciado, impondo a necessária reflexão de quais os rumos que nossa sociedade está tomando, já que em algumas searas ainda seguimos vivendo na Idade Média.

Muitos tem revelado o medo de que a IA possa colocar em risco a humanidade, mas seguem ignorando que os maiores predadores dos seres humanos continuam sendo os seres humanos...

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1 Leandro Reinaldo da Cunha. Transgêneros: conquistas e perspectivas. Direito na Sociedade da Informação V, São Paulo: Almedina, 2020, 170.

2 Abdias do Nascimento. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

3 O tema da fragilidade cisgênero é abordado em nosso Manual dos direitos transgênero, da Editora Saraiva.

4 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16.

5 Leandro Reinaldo da Cunha, Thais Emilia de Campos dos Santos e Dionne do Carmo Araújo Freitas. Intersexo, intersexual e a importância da distinção para fins jurídicos. Disponível aqui.