Breves notas quanto à inseminação caseira e reflexos nos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo/gênero
quinta-feira, 4 de abril de 2024
Atualizado às 08:08
O desejo de perpetuar sua existência leva as pessoas a buscarem as mais diversas formas de fazer com que sua presença permaneça no mundo mesmo após a sua morte, valendo-se de diversos meios para atingir tal objetivo, sendo uma das maneiras mais ordinárias para tanto a constituição de uma prole, tornando possível que traços daquela pessoa (crenças e valores ou mesmo aspectos genéticos) mantenham-se vivos para a posteridade.
Tradicionalmente a prole estava atrelada, ao menos para fins legais, à constituição de uma família, lastreado na premissa de que as pessoas apenas poderiam manter relações sexuais entre si após o casamento. Mesmo com a consolidação da laicidade do Estado tais preceitos de raízes eminentemente religiosas seguem presentes em nosso ordenamento jurídico, que continua replicando de forma anacrônica concepções arraigadas em uma realidade social que já de longa data não mais se verifica1.
O Código Civil, mesmo que seu texto vigente tenha sido incorporado ao ordenamento jurídico no início dos anos 2000, está repleto de previsões que se mostram dissociadas da realidade atual, bem como desconhece uma ampla quantidade de situações fáticas já existentes à época e que hoje fazem parte do cotidiano da população.
Um dos temas ignorados (quase que plenamente) pelo Código Civil e que ainda não foi contemplado por nenhuma legislação específica, em que pese estar vinculado com a perspectiva de planejamento familiar (art. 227, §7º da Constituição Federal e Lei nº 9.263/1996) é o da reprodução humana assistida (RHA), assim entendida toda a gama de métodos que buscam auxiliar a viabilizar uma gestação e, consequentemente, o nascimento de um filho, quando tal intento não se atinge pelas formas chamadas de naturais.
Assim, em linhas bastante panorâmicas, a reprodução humana assistida (RHA) se presta a possibilitar que pessoas que não podem ter filhos segundo os parâmetros usuais consigam alcançar esse objetivo, normalmente ante a utilização de técnicas baseadas em ciência que viabilizem a gravidez e o nascimento da criança.
A leniência legislativa2 que faz com que temas extremamente importantes restem não positivado, conduzindo a uma série de discussões exatamente face a ausência de diretrizes normatizadoras, também aqui se faz presente.
Como a questão tangencia elementos de cunho médico, como já virou um costume, o Poder Legislativo se acomoda e não desempenha seu mister, fazendo com que, muitas vezes, as previsões deontológicas elaboradas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) acabem sendo assumidas como se tivessem o poder de regulamentar a questão para toda a população3.
Além de uma manifesta impropriedade técnica ainda dá força a manifestações e diretrizes concebidas no âmbito do Conselho Federal de Medicina (CFM) que extrapolam suas atribuições, tocando em pontos que estão além das considerações meramente médicas, imiscuindo-se em temas que estão totalmente fora de seu escopo, como, por exemplo, definir quem pode ser o paciente da reprodução humana assistida (RHA)4 ou quem poderá gestar em uma gestação em substituição, para além de parâmetros eminentemente clínicos.
Para as hipóteses em que as técnicas de reprodução humana assistida (RHA) venham a ser realizadas por um profissional da área médica há o regramento elaborado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelecendo os parâmetros médicos atinentes ao tema, aos quais os profissionais vinculados a esse conselho de classe estão sujeitos (Resolução CFM nº 2320/22).
Feitas essas ponderações introdutórias passo a efetivamente me debruçar sobre o grande tema acerca do qual tecerei considerações relacionadas à sexualidade. O pano de fundo do presente texto é o que se tem nominado como inseminação caseira, uma resposta imediata5 que acaba restando para quem deseja engravidar e não possui condições arcar com os elevados valores cobrados pelos serviços ofertados por clínicas e profissionais especializados em reprodução humana assistida (RHA).
Assim ao lado da reprodução humana assistida (RHA) realizada com base em elementos afeitos à técnicas desenvolvidas por profissionais da área médica há também uma outra vertente, que denomino, genericamente, de técnicas de reprodução humana assistida caseira, que comporta as hipóteses de tentativa de gravidez acompanhadas de um elemento negocial específico direcionado a esse fim.
Fugindo do modelo tradicional se está diante de uma avença por meio da qual as partes comprometem-se a atividades que levam a uma gravidez. De forma bastante resumida a reprodução humana assistida caseira baseia-se em um negócio jurídico por meio do qual um indivíduo se compromete a entregar seu esperma para que a mulher venha a engravidar6.
Nesse universo que surge a discussão das chamadas formas de inseminação caseira. Nela há o estabelecimento de um acordo de que alguém fornecerá a quem deseja engravidar, as chamadas "tentadoras", o seu esperma para que ela o inocule em seu corpo (com uma seringa) e tente ficar grávida.
A ideia de uma gravidez decorrente de se introduzir, de forma "não natural" o esperma na vagina de uma mulher, sem o emprego de técnica médicas, não é uma realidade nova. Basta lembrar o caso que ganhou espaço na mídia brasileira no início dos anos 2000 quando a cantora mexicana Glória Trevi, presa nas dependências da Polícia Federal, sem direito a visitas íntimas, engravidou e se afirmou, à época, que ela teria sido "fecundada com a ajuda de uma caneta Bic"7.
Contudo não se pode ignorar que por vezes a reprodução humana assistida caseira se dá de uma maneira ainda mais prosaica. Em busca de uma maior probabilidade de êxito a negociação entabulada prevê simplesmente que as partes manterão uma relação sexual com o mero fim de que a "tentante" venha a engravidar, afastando do contexto qualquer elemento de cunho afetivo ou amoroso que possa envolver uma relação sexual. O ato é praticado com o simples fulcro de engravidar, numa versão atual do que antigamente se costumava chamar de "produção independente".
Apenas para manter o tom provocador que marca essa coluna proponho que quem me lê pense: em nossa sociedade, considerando toda a estrutura moral que a rege, como seria vista a hipótese em que a mulher não possa ter filhos e permita que seu cônjuge mantenha relações sexuais com outra para que ela engravide e depois lhe entregue o filho. Tal solução seria bem recebida pela sociedade? Seria uma forma "natural" de gestação em substituição?
A inexistência de legislação sobre esses temas cria mitos que são replicados pelas pessoas leigas, pela mídia, e até mesmo por iniciados no mundo jurídico. Mesmo não havendo qualquer previsão expressa na lei quanto ao tema, muitos asseveram que, ante a vedação de cobrança para doações prevista pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) haveria a proibição da pagamento pela oferta de esperma. Contudo se não há a participação de profissional da área médica não há a incidência do regramento do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Mas é importante se questionar: há de fato uma doação? Qual seria o objeto da doação? O que é doado é efetivamente um bem? Isso que teria sido doado poderia ser objeto de doação? A questão encontra restrição na lei de doação de órgãos e tecidos (Lei 9.434/97)? As restrições constantes na Lei de Biossegurança se aplicam nesses casos? Pode haver uma interpretação ampliativa para restringir direitos? Aquele que oferta seu esperma tem deveres e direitos com relação à criança? O caráter altruístico da conduta tem impacto na apreciação da negociação entabulada?
Todos esses temas serão tratados de forma aprofundada em trabalhos futuros, cabendo-me, nesse momento, direcionar a análise para os fins aos quais me propus.
O objetivo nesse texto não é discutir os riscos para a saúde em razão de tal tipo de prática (transmissão de doenças ou o risco de uma grande quantidade de crianças filhas do mesmo doador, gerando o perigo de um "incesto acidental", por exemplo), tampouco a possibilidade de que se venha a deparar com pessoas inescrupulosas que queiram se aproveitar da vulnerabilidade apresentada por quem quer engravidar (exigindo benefícios indevidos ou forçando a manutenção de relações sexuais).
O que se coloca é: se tais situações de reprodução humana assistida caseira existem, como pode se constatar dos inúmeros grupos em redes sociais nos quais é possível encontrar a oferta de esperma para esse fim8, bem como em decisões judiciais, como fica a definição de quem serão os genitores dessa criança?
A resposta desse questionamento passa, na prática, por uma análise que incide sobre elementos atrelados à sexualidade, já que as consequências serão distintas dependendo das características expressadas pelas pessoas envolvidas.
Se a "tentante" que realizou a reprodução humana assistida caseira não estiver em um relacionamento com quem quer que seja e seu intento seja figurar sozinha como genitora daquela criança a existência prévia de uma inseminação caseira sequer será suscitada. Ao nascer ela poderá, dotada simplesmente da Declaração de Nascido Vivo (DNV), registrar a criança como sua filha sem questionamentos quanto a forma como se deu sua gravidez.
No caso da "tentante" ter um relacionamento consolidado, como um casamento, também poderá dirigir-se sozinha ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN) e realizar o registro de nascimento daquela criança indicando como genitores, no campo destinado à filiação, ela e seu cônjuge, face à presunção de paternidade existente no Código Civil (art. 1.597). Ainda que eu questione profundamente os parâmetros que norteiam tal presunção não se pode olvidar que ela existe e goza de aplicabilidade prática.
Se, porém, a tentante viver em união estável não haverá a possibilidade de que venha a valer-se da presunção pois o Código Civil não abarca expressamente tal alternativa, podendo até mesmo se questionar judicialmente se esse dispositivo não há de ser garantido a quem vive em união estável, mormente ante a compreensão de que também caracteriza uma entidade familiar igual ao casamento, independentemente de ter sido estabelecida entre pessoas do mesmo sexo/gênero ou de sexo/gênero distintos, como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 42779.
Ainda assim é patente que tal sorte de restrição atingirá de maneira mais forte aqueles que estiverem em uma união estável com alguém do mesmo sexo/gênero, haja vista toda a discriminação que ainda incide sobre as minorias sexuais.
Basta se considerar que para aqueles que estiverem em uma relação com alguém de sexo/gênero10 distinto será franqueada de forma inquestionável a possibilidade de que o companheiro da tentante compareça ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN) e reconheça a paternidade, o que poderá fazer sem que haja perguntas ou oposições, exatamente por ser uma declaração que se coaduna com os padrões postos de um relacionamento que se insere na cis-heteronormatividade vigente.
Contudo se a tentante estiver em um relacionamento com outra pessoa do gênero feminino certamente enfrentará objeções para que a criança seja registrada também em nome de sua companheira.
Nem mesmo tenho a convicção de afirmar que se fosse casada com alguém do mesmo sexo/gênero conseguiria tranquilamente valer-se da presunção de que o cônjuge de quem deu à luz à criança seria o outro genitor, seja pela estrutura que norteou o Código Civil, ou pela oposição de restrições de cunho moral ou até mesmo pela influência do Provimento 149/23 do Conselho Nacional de Justiça (art. 512 e ss.), que incorporou o conteúdo do Provimento 63/17.
O que se pode concluir é que, mais uma vez, o fato de estar inserido em uma relação que foge do padrão normativo que segue sustentando o nosso ordenamento jurídico fará com que a pessoa se veja impedida de estabelecer uma relação paterno-filial em caso de reprodução humana assistida caseira, fator que não incide quando tal prática se estabelece por uma tentante que se relaciona com alguém do gênero masculino.
Independentemente de todo o espectro que se possa suscitar para a compreensão da presente questão é primordial que se analise se tal vedação, que claramente ofende os parâmetros elementares da igualdade, estaria atendendo à premissa de que há de se assegurar, com absoluta prioridade, os direitos de crianças e adolescentes (art. 227 da Constituição Federal).
Ao filho de um relacionamento furtivo se garante a possibilidade de que tenha ,em sua Certidão de Nascimento, o nome de quem manteve uma relação sexual com sua mãe Da mesma maneira que se garante que haja o reconhecimento, na prática, de um filho que não é seu (por equívoco ou mesmo intencionalmente).
Afastar o estabelecimento de vinculação paterno-filial a quem ofertou o material para a inseminação caseira até pode gerar questionamentos com relação aos eventuais direitos dessa criança. Contudo não é esse o caso aqui, já que o objetivo é conferir a essa criança um "genitor".
Obstaculizar que quem é fruto de uma reprodução humana assistida caseira seja registrado atende aos interesses de quem? Só o fazer quando se depara com uma relação entre pessoas que não se inserem no modelo clássico do envolvimento heterossexual entre um homem e uma mulher não configura discriminação?
A mim parece que estamos diante da presença de mais uma, entre as inúmeras, situações de discriminação institucionalizada pelo Estado, que pode ensejar em uma conduta criminosa, por exemplo, do Oficial do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN), inserida no contexto da criminalização da homofobia, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADO 26.
A reprodução humana assistida (RHA) como um todo é tema que necessita de um regramento, não sendo admissível que o Poder Legislativo sig omitindo-se, haja vista a relevância social que recai sobre o tema. Mas como tudo o que tangencia elementos da sexualidade gera um verdadeiro pavor em certos setores da sociedade, seguimos relegados a laborar com princípios para solucionar questões que impõem um regramento tecnicamente sólido.
Mas segue sendo mais cômodo para o Estado quedar-se inerte.
__________
1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, n.2 p. I - IV, 2021.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48.
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. In: Nelson Rosenvald; Joyceane Bezerra de Menezes; Luciana Dadalto. (Org.). Responsabilidade Civil e Medicina. 2ed.: Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 307-321.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. MACEDO, Andreia Assis. Reprodução humana assistida post mortem e direitos sucessórios. Revista Conversas Civilísticas. Salvador, v.2, n.2, 2022, p. 4.
5 ARAÚJO, Ana Thereza Meireles. Projetos parentais por meio de inseminações caseiras: uma análise bioético-jurídica. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 24, p. 101-119, abr./jun. 2020, p. 102.
6 Não ignoro o fato de que quem possui útero pode engravidar, o que permite que, eventualmente, um homem transgênero possa vir ter uma gestação. Apenas para tornar a compreensão do tema menos complexa, seguirei me valendo da hipótese ordinária de sexo/gênero que pode engravidar.
7 Disponível aqui.
8 Disponível aqui.
9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011
10 Apesar de entender que não deve haver a mistura das figuras de sexo e gênero, como descrito em colunas anteriores, tratarei as duas em conjunto para conferir uma compreensão ampla das hipóteses.