O Paradigma Masculino no Direito das Mulheres - Parte II
quinta-feira, 21 de março de 2024
Atualizado às 07:49
Na primeira parte do presente texto construí as bases do que passarei a analisar na sequência. A premissa criada de que as mulheres são "cuidadoras por natureza", que tem em si um gene que as conduz a exercer as atividades de cuidado, lastreada em uma visão manifestamente machista que permeia toda a nossa sociedade, gera consequências severas.
Mais do que crer que os homens são incapazes de cumprir adequadamente com tais atividades de cuidado o que está por detrás dessa visão é exatamente que essas atribuições seriam de menor valor, e, por isso, destinadas às mulheres que, por outro lado, não teriam condições de realizar aquelas incumbências de maior complexidade, as quais apenas os homens teriam as "ferramentas naturais" para desempenhar.
É evidente que a estrutura social posta aniquila a discussão efetiva de um equacionamento dessa iniquidade que impõe às mulheres, quase que com exclusividade, o exercício das atividades relacionadas ao cuidado. Ou, como bem traduz Silvia Federici, "o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago"1.
Nos termos indicado no final da primeira parte dessa coluna a condição vivenciada ordinariamente pelas mulheres nesse contexto revela-se como uma usurpação que haveria de ser afastada, não podendo seguir prosperando essa situação de enriquecimento indevido de quem se beneficia dessa atividade.
Se é evidente que há essa maior oneração das mães em relação aos pais é de se questionar por qual motivo não temos uma mudança dessa situação. Nesse diapasão começam a surgir decisões reconhecendo o dever de ressarcir essa mulher por todo esse trabalho realizado, sendo de se mencionar julgamentos recentes ocorridos na Espanha em que se fixou indenizações em tais casos na monta de 80 mil Euros2 e 200 mil Euros3, bem como decisões aqui no Brasil em que se determinou que esse trabalho invisível exercido pela mulher há de ser considerado quando do arbitramento da pensão alimentícia para os filhos4.
Já mencionei anteriormente a imperiosa necessidade de se discutir de forma séria em território nacional a devida compensação dos serviços de cuidado prestados pela mulher quando das ponderações tecidas sobre o uso exclusivo do bem comum do casal após a dissolução de fato do casamento ou da união estável5.
Essa visão defasada de que a mulher é a "cuidadora" e o homem o "provedor" dos filhos continua muito presente em nossa sociedade e segue causando graves danos, com reflexos manifestos na atividade legislativa e judicial.
No âmbito legislativo a massiva superioridade masculina nas casas legislativas, onde a presença feminina extremamente baixa6 tem evidentes reflexos nos direitos que são franqueados a elas, bem como naqueles que lhes são negados, é fator preponderante. A baixa representatividade é uma mácula indelével de nossa legislação e pode ser facilmente constatada em momentos em que se cria uma igualdade que não se efetiva ou em uma discriminação que a segrega ou fomenta ainda mais sua posição de inferioridade.
Em uma legislação que é feita majoritariamente por homens as dores, anseios e expectativas femininas ou são ignoradas ou são imaginadas segundo a perspectiva masculina, gerando um enorme distanciamento entre o que é realmente necessário e o que se garante.
Apenas à guisa de argumentação provoco quem acompanha esse texto a ponderar: se estivéssemos diante de um Poder Legislativo composto por uma maioria feminina teríamos tanta dificuldade para aprovar leis que atendem a necessidades eminentemente femininas, como as decorrentes da pobreza menstrual? Como estaria a discussão sobre a possibilidade de aborto, se fossem os homens que engravidassem? Salutar se consignar manifestação do Ministro Luís Roberto Barroso: "Porque se só a mulher engravida, para ela ser verdadeiramente igual ao homem, ela tem que ter o direito de querer ou não querer engravidar. E, se homens engravidassem, esse problema já estaria resolvido há muito tempo"7.
Existem outras situações nas quais aparentemente há uma proteção à mulher ou mesmo um respeito às diferenças, mas que acabam por aprofundar ainda mais a crença de que determinadas atividades são "naturais" das mulheres, afastando a responsabilidade dos homens com relação a elas.
Nesse aspecto um dos elementos que mais chamam a atenção e que vem sendo objeto de profundas alterações legislativas em alguns países é a figura da licença maternidade. Nos moldes atualmente regulamentados no Brasil esse benefício se revela como um reforço do estereótipo de que apenas a mulher tem obrigações de cuidado com relação aos filhos.
Premente que se assevere que a possibilidade de afastamento dos pais do exercício de suas atividades laborais prevista na lei em decorrência do nascimento de filho não se destina apenas à atividade de amamentação, mas especialmente a viabilizar os primeiros cuidados com aquele que acaba de nascer e que, conforme já afirmado nos termos do que determina o Código Civil ao tratar do poder familiar (art. 1.634), é responsabilidade de ambos os pais.
Ao se conferir ao homem apenas 3 (três) dias de afastamento do trabalho e à mulher 4 (quatro) meses após o parto passa-se o sinal de que o pai tem alguns dias para celebrar o nascimento e a mãe alguns meses para cuidar, sem que isso seja também uma responsabilidade para ele. A licença em decorrência do nascimento de prole não pode tratar dessa forma distintiva o pai e a mãe, não por ser desejado que o homem tenha dias de descanso pelo nascimento mas sim para que também tenha, como se impõe à mulher, a consciência de que a ele também incumbe cuidar dos filhos.
Impor ao homem esse dever de cuidado quando do nascimento do seu filho ante a concessão de um prazo de licença compartilhado ou equivalente com o destinado à mulher além de um enorme caráter pedagógico atenderia aos preceitos insculpidos no Código Civil quando trata dos deveres dos pais como também iria ao encontro do cumprimento da diretriz de se garantir a especial e absoluta proteção à criança e ao adolescente, nos termos trazidos pelo art. 227 da Constituição Federal.
Essa desigualdade que parece ser, de início, uma proteção especial à mulher ou mesmo a garantia da igualdade por tratá-la de forma a reconhecer sua diferença natural de ter dado à luz à criança além das raízes machistas de que cabe à mulher cuidar do filho ainda tem efeitos que se protraem no tempo, impactando na manutenção, em toda a sociedade, da ultrapassada visão de que não há qualquer responsabilidade do homem quanto aos cuidados.
A ampliação da licença para o homem por si só não resolve. Ele precisa efetivamente cuidar. O problema é que há um lado cultural que precisa ser superado e que a masculinidade frágil não mais lance seus tentáculos fazendo com que se acredite que aquele que exerce atividades "maternas" é menos homem.
Isso acaba impondo à mulher que fique em casa e que o homem trabalhe, cerceando sua liberdade e acesso ao trabalho, relegando-a a uma situação extremamente delicada nas hipóteses nada excepcionais em que vem a ser abandonada posteriormente com o filho, sem a real possibilidade de uma inserção no mercado de trabalho nos mesmos moldes que o homem tem.
Nem mesmo se pode falar que a legislação garante uma verdadeira proteção a ela nesse caso pois nas situações extraordinárias em que é conferido a ela o direito a alimentos após o casamento esse tem sido deferido de forma que nem sempre se consideram as idiossincrasias do caso concreto, havendo a fixação de um critério temporal para o recebimento do benefício8.
Essa estruturação legislativa faz com que empresas prefiram contratar homens a mulheres, já que eles não deixarão o trabalho para cuidar de filhos doentes ou levá-los ao médico, considerando o entendimento geral de que tais deveres competem à mãe.
Constata-se um efeito dominó.
Infelizmente mesmo com toda a evolução social e o letramento de gênero que se impõe nos dias atuais ainda vivemos na prática em uma sociedade extremamente machista, com toda sua estrutura segregadora, que continua, apesar da igualdade formal e de todas as lutas já travadas, relegando as pessoas do gênero feminino a uma condição de inferioridade, com os mesmos contornos do racismo social que fundamentou a decisão da ADO26 que reconheceu a homotransfobia como conduta inserida no crime de racismo.
E por isso provoco: a mulher, independentemente da cor de sua pela, não seria vítima de racismo nos termos fixados pelo STF? Esse é tema que será aprofundado em uma próxima coluna
Por fim espero que essa coluna chegue especialmente aos homens, já que são eles que, em sua larga maioria, precisam se libertar de todo o machismo que continuam professando. Mulheres, obviamente, são bem-vindas para a leitura desse texto, mas sinto que para elas boa parte do que aqui foi escrito não passa de uma série de obviedades que elas vivenciam e constatam em seu cotidiano. Pregar para convertidos, como se costuma dizer, não tem o poder de mudar essa realidade. O imprescindível é se atingir aqueles que confortavelmente estão repousando em seu machismo e privilégios para que entendam que a busca da igualdade é uma luta séria e não um "mimimi".
Que todos os privilégios que me acompanham permitam que esse texto seja lido por outros privilegiados que compartilhem ao menos um dos marcadores que me torna privilegiado (homem, branco, cisgênero, heterossexual, funcionário público federal, com educação institucional, doutor, professor titular de uma das mais antigas e conceituadas faculdade de direito do Brasil, etc.) e que passem a entender sua condição extremamente favorecida pelo simples fato de não externarem socialmente elementos vinculados ao feminino.
Por mais patente que seja, o óbvio deve ser dito: os homens precisam reconhecer sua condição de privilégio, sem que isso seja internalizado como uma ofensa. É um fato e precisamos laborar em busca de uma real igualdade de gênero.
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