Direito à intimidade da pessoa transgênero
quinta-feira, 14 de setembro de 2023
Atualizado às 07:58
Um ponto que venho reiterando nas diversas edições da presente coluna está vinculado com a garantia às minorias sexuais dos direitos franqueados a todas as pessoas, vez que inadmissível qualquer sorte de restrição a tais prerrogativas em decorrência da sexualidade. Parece absurdo ter que repisar continuamente que todos são credores dos direitos fundamentais contudo isso se faz necessário exatamente em face da realidade vivenciada por diversos grupos vulnerabilizados que continuamente são privados das proteções mais básicas ofertadas a todo cidadão1.
Nessa senda é de se questionar por quais motivos em nossa sociedade se permite e fomenta uma perspectiva de que algumas pessoas poderiam ser tidas como indivíduos de uma segunda classe tão somente pelo fato de não se inserirem nos parâmetros convencionados da "normalidade"2.
Além de ser recorrente a vedação, seja expressa ou tácita, ao acesso ao mais nuclear para a efetivação de diretivas basilares consignadas na Constituição Federal é bastante preocupante constatar que muitos consideram que as parcas conquistas obtidas pelas minorias sexuais encerrariam benefícios indevidos ou privilégios3.
De se notar que as referidas conquistas não passam da mera concessão dos direitos fundamentais aos quais todas as pessoas fazem jus e que não eram acessados por esses grupos vulnerabilizados, mas alguns consideram que as minorias sexuais nem mesmo são merecedoras do que é o ordinário. E há ainda quem queira criar uma narrativa falaciosa de que as lutas pelo acesso à igualdade e ao respeito aos parâmetros estatuídos pelo princípio da dignidade da pessoa humana configuraria a criação de "super-cidadãos"4.
Essa visão deturpada da realidade, certamente lastreada em concepções que ignoram os dados mais elementares, acabam por sustentar situações vis como a experienciada pelas pessoas transgênero, que enfrentam uma sociedade que as marginaliza e objetifica, com estatísticas que nos permitem discutir a ocorrência de um genocídio trans5.
Na seara dos direitos fundamentais me aterei na presente coluna a uma breve apreciação do direito à intimidade das pessoas transgênero. O direito à privacidade, que encerra em si também a figura da intimidade, está expressamente consignado na Constituição Federal (art. 5º, X), sendo resguardado também em sede infraconstitucional no Código Civil (art. 21) entre os direitos da personalidade.
Em linhas bastante panorâmicas pode-se entender como privacidade tudo aquilo que se relaciona com a vida do sujeito que ocorre fora do âmbito público6 e que, face ao direito à privacidade, é passível de resguardado de toda e qualquer exposição que não seja por si autorizada, já que ninguém está "obrigado a dar publicidade de todos os atos e aspectos da sua vida pessoal para a sociedade"7.
Inserida no direito à privacidade encontra-se uma camada mais nuclear, de espectro ainda mais elementar. Trata-se do direito à intimidade, que encerra em si uma posição ainda mais personalíssima da vida do indivíduo, cujo acesso se faz ainda mais restrito, quando não totalmente vedado. Nessa esfera estão "segredos, verdades, anseios ou desejos que são personalíssimos"8 e relativos ao seu próprio "eu", lugar em que se encontram questões que tangenciam quaisquer dos pilares da sexualidade (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero)9.
A intimidade emerge como um valor caro ao nosso estado democrático de direito porém toda essa preocupação se esvai quando o seu detentor não figura entre pertencentes aos grupos majoritário, como é o caso das pessoas transgênero. Aqui a atenção a esse direito fundamental torna-se incipiente e passível de toda sorte de ofensa e degradação.
Pensando especificamente no direito à intimidade das pessoas transgênero o primeiro tema me toca está vinculado com a necessidade de que venha a expor socialmente a sua identidade de gênero, ainda mais quando dotado de elevada passabilidade como tratado na coluna anterior. A quem interessa saber de informação tão íntima? A mera curiosidade quanto à vida alheia não pode respaldar tal sorte de intromissão, rompendo garantia constitucionalmente insculpida, ainda mais ao se considerar que o conhecimento desse dado será utilizado para sustentar algum tipo de preconceito.
Alguma celeuma já se estabeleceu quanto a eventualidade de se expor tal condição em sede de casamento, com base na existência de um dever de boa-fé que também se faria presente no direito de família. Um dos exemplos mais clássicos nos manuais e doutrina de direito de família ao tratar de invalidade do casamento consistia em asseverar que caracterizaria a figura de erro essencial quanto a pessoa do outro cônjuge, fator passível de invalidade do casamento, o desconhecimento relativo ao sexo do seu consorte (Art. 1.577 do Código Civil). Trazendo de uma forma mais explícita, o desconhecimento de que a pessoa com quem se casou é uma pessoa trans permitiria a dissolução daquele casamento por anulabilidade, a qual haveria de ser pleiteada pelo cônjuge "ludibriado".
Não se olvida que, segundo os critérios postos da escada ponteana, sustentou-se durante muito tempo que a união entre duas pessoas do mesmo sexo caracterizaria um casamento inexistente, ante a falta da diversidade sexual que, em que pese não constar do texto legal como elemento integrante do plano da existência, tinha-se como um "requisito natural" do casamento que sequer precisaria constar da lei de tão óbvio que seria10 ou uma "condição de tal modo evidente, que dispensa regulamentação legislativa"11.
Imprescindível, porém, se ponderar "se este 'ser natural' está em consonância com a sociedade de hoje pois, outrora, já se considerou natural que o homem fosse superior à mulher, ou que brancos fossem superiores a pretos, posicionamentos hoje totalmente superados, havendo ainda de se pontuar que até mesmo na natureza (biologia) este conceito já sofreu inúmeras mudanças no decorrer dos tempos"12.
Parece ser mais uma vez a já conhecida situação de buscar meios para se tentar restringir o acesso a direitos a uma minoria sexual como "subterfúgio para negar, num outro plano, efeitos às associações afetivas"13 daqueles que não se coadunam com os preceitos sociais esperados e postos.
Considerando que a atual realidade social se faz bastante distinta daquela que serviu de base para a construção do Código Civil de 1916, o qual foi replicado em larga escala na redação da codificação civil vigente, o padrão não mais é o de que as relações sexuais apenas passariam a existir após o casamento, permitindo que só então se viesse a tomar conhecimento de que o sexo do cônjuge é distinto do gênero por ele performado. Me parece que isso por si só já bastaria para se trazer para o diálogo a coerência da existência de alegação de erro essencial quanto a pessoa do cônjuge que tenha por fundamento uma alegação desse jaez, sob pena de se estar contrariando o direito-vivo, como preconizava Orlando Gomes14.
Não se ignora que continuam existindo aqueles que, pelos mais variados motivos, acabam por ter relações sexuais com seus parceiros apenas após o casamento, o que, também, não pode ser entendido como fator a sustentar o argumento do erro essencial em razão da transgeneridade do consorte. Tal assertiva se faz de início pelo simples fato de que não mais prevalece a concepção de que o casamento é o permissivo estatal para as práticas sexuais entre as pessoas.
De outro lado é de se ponderar que se a pessoa decidiu se casar com a outra o fez com quem ela é naquele momento e não com base em quem ela foi um dia. O fato de ela ter nascido com caracteres sexuais externos pertencentes a um gênero com qual ela não se reconhece não altera quem ela é, ainda mais quando já realizado todo um processo transexualizador que lhe conferiu tamanha passabilidade15 que nem mesmo aquele que com ela se casou tivesse constatado que ela é uma pessoa transgênero.
Não se vislumbra a existência de manifestações quanto a qualquer sorte de erro quando a pessoa apresenta um genótipo distinto do binarismo do XX e XY, ou quando tem características sexuais internas do sexo distinto do seu gênero de pertencimento ou mesmo quando tenha passado por intervenções cirúrgicas que não se relacionem com elementos atrelados à sexualidade.
Cirurgias que não visem um processo transexualizador ou que se destinem à afirmação de gênero realizadas por pessoas cisgênero, como um implante de silicone nos seios em mulheres ou a redução de glândulas mamárias em homens ou até mesmo em mulheres em razão de questões estruturais (dores nas costas, por exemplo) não são consideradas como fundamentos para uma eventual alegação de invalidade do casamento. Mas quando realizadas por uma pessoa transgênero haveria tal possibilidade? Ou falta coerência ou sobra preconceito.
Evidencia-se, portanto, que a questão de fundo não se escora no fato de que o corpo da pessoa passou por intervenções cirúrgicas mas sim na perspectiva do preconceito que existe face à condição sexual apresentada por aquela pessoa. Será que a descoberta da condição transgênero faz com que o sentimento que fez com que aquelas pessoas viessem a se unir deixe de existir por tomar ciência de que ela fez uma operação para adequar seu corpo? Ou são as pressões sociais e o preconceito que ensejam o argumento?
O tema ganha especial relevância a se considerar a "gravidade" maior quando a "pseudo ocultação" do passado é promovida por uma mulher transgênero, o que traz consigo, além do recorte de gênero, todo o tempero originário da masculinidade frágil16.
Antes mesmo que tenha que enfrentar argumentações preconceituosas revestidas de um verniz de tecnicidade é importante que fique cristalino que não ignoro aqui uma eventual discussão sobre o fato de que o desconhecimento da condição transgênero do cônjuge poderia ensejar uma frustração quanto a um desejo de procriar. Contudo, nesse caso, a alegação há de ser referente a esse fato e não à condição transgênero, já que essa impossibilidade também poderia acometer uma pessoa cisgênero. Tampouco é plausível se escamotear os reais motivos discriminatórios ante a uma falsa alegação de impossibilidade de prole própria, fator que atualmente vem sendo cada vez mais mitigado face às diversas modalidades de reprodução humana assistida que a ciência proporciona.
É fato que a legislação vigente ao tratar do tema apenas assevera que o pleito de invalidade do casamento depende da indicação por parte de um dos cônjuges de uma situação desconhecida antes do casamento que se fosse sabida faria com que a união não viesse a se estabelecer.
O argumento básico é de que se o cônjuge tivesse ciência daquele determinado fato (impossibilidade de ter filhos) não se casaria, algo que é, inegavelmente, dotado de uma grande subjetividade na prática. Contudo tal alegação haverá de se devidamente comprovada em sede processual. E, na ausência de prova cabal, me parece bastante prosaico se assumir que o pedido de invalidade do casamento caracterizaria prova (ou ao menos um forte indício) de preconceito.
No mais, se o pleito expressamente se fundar no fato de ter tomado ciência da transgeneridade do outro, fica patente e manifestamente comprovado o preconceito. E não podemos nos esquecer que, nos termos trazidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento da ADO 26, a compreensão jurídica da expressão raça abarca também elementos da sexualidade, o que permite tipificar como crime de racismo condutas transfóbicas.
Caminhando para a conclusão daquilo que se propõe no presente texto nos preocupa a existência na doutrina de nomes respeitáveis que já chegaram a suscitar que haveria uma obrigação de que a pessoa transgênero viesse a expor tal condição para seu parceiro antes do casamento, sob pena de responsabilidade civil, o que a mim parece uma interpretação teratológica da legislação vigente, e que acaba por privilegiar um capricho de uma pessoa em detrimento do resguardo de um direito fundamental e da personalidade17.
Exigir a revelação de algo tão íntimo é de uma violência atroz. Contudo isso parece não ser algo relevante para uma grande parcela da sociedade que assevera que a "verdade" tem que prevalecer, ao tempo que consome fake news com voracidade. Há ainda a cantilena dos que propagam a necessidade da proteção da "família tradicional" ou da "sagrada família católica" e que, convenientemente, ignoram preceitos cristãos básicos.
Ao permitir que se transija com relação aos direitos fundamentais das pessoas por considerá-las menos merecedoras por não estarem inseridas nos grupos majoritários e dominantes faz com que esse grupo tão vulnerabilizado seja obrigado a seguir confrontando seu passado que, além de traumático, não mais reflete a sua existência atual, contrariando e apagando toda a luta pela passabilidade que lhe permite distanciar-se um pouco de toda a discriminação.
Com base em que essa violência se justifica? Qual seria o respaldo jurídico para afastar o direito fundamental da privacidade e da intimidade? O direito a ser respeitado não se aplica a quem não é maioria? Pode ser mitigada a dignidade em prol de um preconceito?
A resposta é um enorme NÃO. E quem diz o contrário haverá de me convencer que seu posicionamento não é apenas mais uma reminiscência de um passado que não mais pode prosperar ante ao estado democrático de direito posto por nossa Constituição Federal.
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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10.
3 Disponível aqui.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 55.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022
6 Luiz Alberto David Araújo; Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 151.
7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 161.
8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 161.
9 Disponível aqui.
10 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296.
11 Carlos Roberto Gonçalves. Direito civil brasileiro. Volume 6: Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 142-143.
12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 200.
13 Luiz Edson Fachin. Direito de Família. 2 ed. Rio de janeiro: Renovar, 2003. p. 126.
14 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 37.
15 Disponível aqui.
16 Disponível aqui.
17 Leandro Reinaldo da Cunha, Identidade de gênero, dever de informar e responsabilidade civil. Revista IBERC, v. 2, n. 1, 22 maio 2019.