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Equilíbrio competitivo ou preconceito velado? Considerações preliminares sobre as mulheres transgênero nas competições esportivas

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Atualizado às 07:14

Muito do preconceito propalado nos dias atuais é apresentado com um verniz de rigor científico que busca afastar a natureza discriminatória que está na base das discussões entabuladas. Sob um véu de uma aparente tecnicidade se esconde em verdade o ranço do preconceito que, nessas situações, se revela ainda mais pernicioso ao se revestir de contornos de uma cientificidade que, de fato, não existe.

Não se ignora que por vezes essa concepção tem até mesmo um viés inconsciente, não revelando uma conduta intencional ou dolosa de agir de forma discriminatória, quando o agente se considera respaldado por certezas que ele mesmo constrói ou que lhe são entregues como verdades consolidadas.

Esse panorama aqui indicado se manifesta em inúmeros contextos contudo me aterei na presente coluna a analisar a incidência de tal agir quanto à presença de mulheres transgênero nos esportes. Mulheres transgênero, por terem a si atribuído quando de seu nascimento o sexo masculino, face aos hormônios que suas gônadas produzem, apresentam, ordinariamente, uma maior quantidade de testosterona no corpo caso não venham a passar por um processo de hormonioterapia, nos termos indicados em coluna anterior1.

Um dos elementos que me suscitaram a discorrer sobre o tema na presente coluna foi a oportunidade de ter publicado a tradução de um importante estudo realizado pelo Canadian Centre for Ethics in Sports e que encontra-se publicado na mais recente edição da Revista Direito e Sexualidade (V.4, N.1)2. Em "Atletas transgênero e esportes de elite: uma revisão científica" há a apresentação do resultado da compilação de estudos sobre o impacto da participação de mulheres transgênero nos esportes de elite no qual se constatou que inexistem evidências de que elas gozam de vantagens injustas, após o tratamento hormonal, quando competindo com mulheres cisgênero.

Ressalta-se não se tratar de um estudo visando aferir clinicamente se existem benefícios para as mulheres transgênero mas que somente analisou os trabalhos já realizados e demonstrou que neles não há a confirmação de vantagens.

Em que pese a ausência de elementos comprobatórios de que haveria um benefício quando tal questão é colocada em discussão todas as pessoas tendem a ter uma opinião, independentemente de uma fundamentação técnica. Quando me deparo com essas "certezas" manifestadas por leigos automaticamente me recordo de pessoas que asseveram que vacinas causam autismo e outros negacionismos que afrontam todo o conhecimento científico.

Algumas "convicções do senso comum", fundadas na percepção que a pessoa tem da realidade, mesmo quando refutadas pela ausência de demonstração de que aquele entendimento encontra respaldo, segue moldando a sua forma de pensar. É similar à afirmação trazida por Hans Rosling na obra "Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos", que afirma que, diante de uma ilusão de ótica, mesmo tendo havido a medição de duas linhas com a demonstração de que tem exatamente o mesmo comprimento, se segue enxergando uma diferença3.

As pessoas são confrontadas com o fato científico de que a informação que elas sustentam não procede, mas seguem agarradas à sua crença de que sua percepção está correta, normalmente seguidas de afirmações como: "é claro que tem benefícios" ou "mesmo com a pesquisa dizendo o contrário você sabe que não é justo", tentando afastar a ciência e os estudos com a afirmação de que o senso comum há de se sobrepor.

Por vezes até mesmo pessoas que tem algum conhecimento na área acabam se posicionando sem ter lastro em comprovações científicas fundadas em estudos que atendam a melhor técnica, o que ganha ares bastante preocupantes tentando valer-se de um argumento de autoridade desprovido de sustentação.

A participação de pessoas transgênero em competições esportivas não é figura ignorada pelas entidades responsáveis pelos esportes que, já de algum tempo, foram instadas a buscar o estabelecimento de parâmetros visando garantir o equilíbrio competitivo. O Comitê Olímpico Internacional e várias associações esportivas, como a Word Athletics (antiga Associação Internacional de Federações de Atletismo - IAAF) e a Federação Internacional de Voleibol (FIBV) estabelecem critérios técnicos formais, baseado na quantidade de testosterona para determinar se uma mulher transgênero está autorizada a participar das competições.

O aspecto do equilíbrio esportivo faz com que o argumento da vontade do ganho competitivo seja trazido como elemento para apreciação do tema, com o questionamento acerca da "mudança de sexo" para competir e ganhar, remontando a existência de um aspecto volitivo na identidade de gênero. A isso é premente se responder que se tal conduta houver não estamos diante de uma pessoa transgênero mas sim de alguém que está tentando valer-se de meios escusos para a obtenção de um benefício, o que há de ser tratado e entendido como uma fraude. É a tentativa de usurpação de uma condição sexual com fins ilícitos sendo de se ressaltar que a transgeneridade não se assenta na vontade ou escolha de quem quer que seja4.

É fato que o presente tópico congrega em si aspectos que envolvem os esportes, algo que tem impacto em nossa sociedade, e a sexualidade, um dos grandes catalizadores de preconceito e discriminação. Isso faz com que seja relevante se aproveitar dessa sinergia para colocar em pauta o debate relacionado à identidade de gênero, já que a proteção dos direitos humanos parece não ser o bastante para a maioria da coletividade.

Inusitado se constatar que muitas vezes aqueles que se insurgem contra a presença de mulheres transgênero nas competições esportivas são os que tecem as considerações mais misóginas quando diante dos esportes femininos. Nesse exato momento está ocorrendo a Copa do Mundo de Futebol Feminino e, em razão de comentários machistas e preconceituosos, a transmissão pelo YouTube da partida inaugural da competição teve o chat desativado5. Isso nos faz questionar: a oposição à presença de mulheres transgênero nas competições tem por base o interesse no equilíbrio esportivo ou é mero preconceito velado?

Se o problema de fato é o equilíbrio esportivo há de se entender, portanto, que enquanto não existirem distinções físicas em razão dos impactos hormonais no corpo não há motivo para se discutir a presença de pessoas transgênero nas competições. Contudo não é o que se vê quando se fala de competições em que meninas transgênero buscam participar, como foi no caso da patinadora brasileira Maria Joaquina Reikdal que foi impedida, aos 11 anos de idade, de competir no campeonato sul-americano de patinação em 20196.

Os grandes defensores do equilíbrio esportivo normalmente assumem que a igualdade é parâmetro nuclear das disputas, sendo a meritocracia o diferencial para um melhor desempenho e resultados. Apenas para acender a discussão sobre o tema convido à leitura dos inúmeros trabalhos que discorrem sobre a meritocracia, como a obra de Michael Sandel7.

Seja como for, atendo-me ao meu campo do conhecimento, não pretendo discutir se o desenvolvimento de uma compleição física com a presença de testosterona em níveis mais elevados é capaz ou não de conferir uma vantagem competitiva. Deixo isso para os estudos clínicos.

Mas não posso me esquivar de um questionamento que parece ser dos mais relevantes em termos sociais, qual seja, o que vale mais: o pseudo equilíbrio ou a inclusão?

Se os estudos não são conclusivos com relação à existência de uma vantagem competitiva qual o motivo de tanta objeção e grita quando da participação de mulheres transgênero em competição com outras mulheres? Ante a ausência de elementos a conduta correta é a de segregação e não inclusão como muitos professam?

Nos últimos dias vi nas redes sociais a provocação de uma pessoa (que infelizmente não me recordo quem foi para citar devidamente) que afirmava de maneira singela que ou as mulheres transgênero não tem nenhum benefício em face das demais mulheres ou há um enorme equívoco do técnico da seleção de vôlei feminino em não convocar a oposta/ponta Tifanny Abreu, primeira mulher transexual a participar de uma partida oficial da Superliga.

Sob a lente jurídica é relevante se considerar que a vedação da participação de mulheres transgênero em competições esportivas com as demais mulheres além de configurar as hipóteses já consolidadas de práticas discriminatórias pode também ter outros desdobramentos.

A proibição da mulher transgênero em competições esportivas com as demais mulheres enseja em si uma hipótese manifesta de dano.

Possível se vislumbrar, no campo dos danos patrimoniais, a incidência de dano material face aos gastos tidos para a preparação para aquela competição em específico e despesas de locomoção e estadia já realizadas ou mesmo lucros cessantes ante a perda de valores que seriam recebidos a título de patrocínio pela participação numa dada competição, por exemplo.

Nesse mesmo âmbito é justo se pensar também em indenização oriunda da perda de uma chance, considerando eventuais premiações que poderiam ser alcançadas pela atleta que se viu privada indevidamente da participação na competição.

Em sede de danos extrapatrimoniais não se pode ignorar a configuração de danos morais, os quais haveriam de ser acrescidos de outros que se apartam do espectro patrimonial, como o dano existencial.

Feitas essas ponderações me parece ser imperioso que a presença das mulheres transgênero nos esportes seja tratada de maneira séria e sem leviandades, despida de achismos. Mas o que se questiona, em verdade, é: as pessoas querem mesmo apreciar o tema de forma responsável ou apenas ter mais uma área onde o preconceito contra as minorias possa vicejar?

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui

3 Hans Rosling. Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos. 9. ed.. Rio de Janeiro: Record, 2023, p. 24.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direitos dos transgêneros sob a perspectiva europeia. Revista Debater a Europa, N. 19, 2018, p. 49 

5 Disponível aqui

6 Disponível aqui.

7 Michael Sandel. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum. São Paulo: Editora Civilização brasileira, 2020.