Não é tolerância. É respeito
quinta-feira, 13 de julho de 2023
Atualizado às 08:17
Somos obrigados a nos deparar em nosso cotidiano com uma série de situações inusitadas que acabam tocando de maneira direta, ou ao menos resvalando, em questões relacionadas com a sexualidade e que, por consequência, merecem uma apreciação de natureza jurídica. O que haveria de ser ordinário e um simples desdobramento dos parâmetros mais básicos da convivência em sociedade passa a ser objeto de batalha.
A diferença entre os indivíduos, fator que nos trouxe até aqui em termos biológicos, deixou de ser uma característica nuclear da humanidade, gerando tensionamentos e embates sociais que chegam a culminar com a proposta manifesta ou sugerida de extermínio do diferente1.
A ampliação do acesso à internet conjugado com a imersão no mundo virtual aparentemente fez com que algumas distinções entre as pessoas fossem evidenciadas, levando cada grupo social a se colocar como o único dotado dos valores corretos e adequados de condução da vida em sociedade.
Em um mundo em que se tem como equivocado ou mesmo inimigo a ser dizimado (quando não possa ser cooptado) aquele que não comungue com os seus preceitos o respeito à diversidade se torna uma utopia. A impressão é que muitos anseiam por um mundo de ausência de posições dissonantes, onde a uniformidade de pensamento se mostra o ideal, desde que essa confluência se dê na direção dos conceitos por eles defendidos.
No que concerne à sexualidade se construiu um entendimento social que admitiu denominar de anormal qualquer conduta que se mostrasse desviada das diretrizes mais ordinárias ou recorrentes da heterossexualidade e da cisgeneridade2, fator crucial para a estruturação de uma sociedade que tem a discriminação como uma conduta disseminada e até mesmo positivada no ordenamento jurídico.
Para os que professam visões mais extremistas o respeito às diferenças passou a ser visto como uma fraqueza ou uma traição por não buscar a conversão do diferente aos padrões por eles enaltecidos. Outros chegam a ostentar o "respeitar" como uma qualidade, conferindo a si mesmos uma aura diferenciada, um atributo digno de uma divindade que se distingue da horda pelo simples fato de se mostrar capaz de respeitar o outro. A realidade que nos circunda faz com que o tema respeito volte a ser objeto da presente coluna, em conexão com o que foi trazido anteriormente no texto "O respeito como parâmetro elementar para a dignidade da comunidade LGBTIANP+" publicado em 18 de maio de 20233.
A insanidade instalada parece ignorar que o respeito às diferenças é pedra angular de uma sociedade que se encontra lastreada em um Estado Democrático de Direito, vez que um dos alicerces mais básicos da consolidação da dignidade humana. A materialização de um Estado Democrático de Direito pressupõe o respeito às diferenças como corolário basilar, não sendo possível se conceber sua estruturação sob bases de aniquilamento de valores, ideias e vontades dos grupos minoritários4.
A existência de um entendimento que pressuponha a possibilidade de uma sexualidade tida por anormal, por si, tem o condão de fomentar condutas denominadas recorrentemente de intolerantes, fundada em um inconteste menosprezo a tudo o que emana das minorias5.
A imposição de que todos sejam iguais ou que as minorias sejam extirpadas da convivência social (caso não se adequem ao determinado pela maioria) é característica de sistemas que se afastam dos parâmetros essenciais da democracia. Contudo muitos preferem expor uma visão de que quando não é o caso de extermínio, as minorias deveriam ser reduzidas a uma condição de existência subalterna, havendo de se contentar com o que lhe for ofertado, já que são os inferiores e derrotados por não deterem o controle do poder.
E esse não é o fundamento de sustentação da democracia. Democracia pressupõe exatamente o respeito e proteção às minorias ante a sua posição perante a maioria. Nesse âmbito as maiorias não necessitam de proteção exatamente por não estarem correndo qualquer risco, fato que não se aplica à minoria que, por seu status e pela distorção de compreensão de alguns, acabam estando continuamente sob os holofotes da segregação, discriminação e destruição6.
E nesse cenário que ganha força a figura do integrante da maioria que se vangloria de ser tolerante, pois "permite" com a sua "benevolência" que as minorias sigam existindo. Normalmente tais manifestações de elevação espiritual são acompanhadas de frases como: "esse mundo de hoje tem cada coisa" ou "o certo tá virando errado", ou ainda "não se pode falar mais nada". Compõe o manual básico, logo após a aquelas manifestações, as afirmações de que "não tenho nada contra" ou "tenho até amigos que são" para, a seguir, passar a desfiar uma enormidade de preconceitos e considerações enviesadas.
De regra é de se entender que a tolerância pressupõe alguma medida de altruísmo, pois quem é tolerante está a enfrentar algum ônus mas se portará de forma a suportar esse gravame. Contudo, no mais das vezes, quando a "carta" da tolerância é apresentada como uma enorme qualidade a ser enaltecida e valorizada não se vislumbra, de fato, a existência de qualquer ato de tolerância. "Tolerar pressupõe a necessidade de suportar, permitir ou aceitar algo que se mostra contrário aos seus interesses e convicções e que terá reflexos em sua vida"7. Então é de se questionar: em que a existência das minorias sexuais impacta na vida dos demais integrantes da sociedade que os leva a afirmar que estão a tolerar a presença de tais pessoas?
A fragilidade demonstrada pelas maiorias é tamanha que há quem proteste contra as conquistas mais singelas e que somente visam conferir o mínimo de proteção às minorais sexuais, chegando mesmo a bradar que estariam querendo a destruição da masculinidade ao se criar políticas públicas e ações afirmativas em favor das minorias. Até o absurdo argumento de um preconceito contra homens, heterossexuais e cisgêneros tem sido suscitado, similar ao racismo reverso que pessoas brancas chegam a afirmar sofrerem, como se as minorias pudessem subjugar e oprimir os grupos majoritários.
Os seres humanos que se colocam como tolerantes costumeiramente são levados a um enorme conflito interno quando se deparam com seus ídolos declarando uma sexualidade dissonante ou mesmo quando seus ascendentes ou descendentes revelam-se como integrante da população LGBTIANP+. A mera proposição hipotética de tais situações faz com que, quando instados a se manifestar quanto a sua reação nesses casos, os coloca acuados e acabam demonstrando a real faceta do preconceito que carregam.
Ser tolerante traz consigo um espectro de autonomia e discricionariedade que confere ao indivíduo a prerrogativa de determinar se quer ou não expressar tal característica para a sociedade como um todo. Na essência pode-se asseverar que aquele que está suportando alguma sorte de ofensa teria a escolha de contrapor-se a ela ou suportá-la. E não é essa a questão que se vislumbra aqui, pois não cabe a maioria nem suportar, tampouco opor-se à existência daqueles que se mostram diferentes do ordinariamente esperado.
Trata-se apenas de respeitar. E nessa seara não se discute discricionariedade. O respeito não é uma escolha mas sim uma imposição. Deve existir e se fazer presente, sob pena de responsabilização.
Quem se diz tolerante por ser heterossexual e "aceitar" pessoas homossexuais, bissexuais, pansexuais ou assexuais merece loas? Em que sua vida é atingida pela existência de pessoas com orientação sexual distinta da sua? O mesmo se questiona com relação à pessoa cisgênero que afirma aceitar os transgêneros.
O aceitar reveste-se também de uma prepotência assustadora pois assenta-se em uma perspectiva de tamanha arrogância que faz crer que a existência das diferenças é dependente da sua concordância ou permissão. Inegavelmente o que há de balizar tal compreensão é apenas o respeito por não ser "plausível se pensar que compete à maioria o poder de autorizar, permitir ou concordar com o fato de a minoria não seguir os seus parâmetros"8.
O esfacelamento das bases democráticas dá azo a uma sensação, aos grupos majoritários, de que são detentores de poderes de vida e morte em face das minorias. E essa sensação de superioridade fica ainda mais evidente quando nos deparamos com os grupos vulnerabilizados em razão de sua sexualidade face a todo o histórico de estigma que sempre caminhou ao lado dos que não poderiam ser considerados "normais" quanto ao seu sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.
Salutar que se expresse a distinção entre tolerância e respeito face aos contornos jurídicos daí decorrentes. Não respeitar é diferente de não ser tolerante, em que pese a utilização consolidada em muitos meios da expressão "intolerância" em contextos em que efetivamente há desrespeito.
Estamos hoje em uma sociedade fortemente segregadora e discriminatória na qual não ser alguém que se coadune com o que se tem por ordinário faz com que se venha a ser incluído entre os "anormais", os quais podem ser ofendidos e atacados. E muito disso é a expressão das numerosas omissões do Estado ao não desempenhar seu precípuo dever de proteger as minorias, o que é manifesto ao se constatar a eloquente leniência legislativa associada aos temas de interesse das minorias sexuais9.
E ainda existem os presunçosos arautos da democracia que asseveram sua grandiosidade como seres humanos ao aduzir que respeitam as diferenças e que não são pessoas intolerantes, como se isso fosse algo que não haveria de se fazer presente na conduta de todas as pessoas10. Fazer o que deve ser feito é algo tão pouco usual nos dias atuais que respeitar virou uma qualidade, um enorme diferencial no mundo de trevas da segregação e discriminação em que vivemos.
Segundo um olhar jurídico é relevante se ter em mente que condutas que revelem um desrespeito às diferenças em razão da sexualidade são ensejadoras de consequências tanto na esfera civil (responsabilidade civil) quanto na penal, especialmente após o julgamento da ADO 26 em que as condutas de natureza homotransfóbicas foram reconhecidas como ofensas raciais, passiveis da aplicação das penas cominadas para o racismo e para injúria racial.
É primordial que se perceba que, em verdade, não estamos diante de uma realidade que exija das pessoas a tolerância quanto a existência e os direitos das pessoas LGBTIANP+.
Viva e deixe viver.
E que a diferença floresça num mundo em que o respeito impere.
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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 10.
3 Disponível aqui.
4 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 6-7.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 13.
6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.
7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de ge^nero e a responsabilidade civil do Estado pela lenie^ncia legislativa. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015, p. 43.
8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de ge^nero e a responsabilidade civil do Estado pela lenie^ncia legislativa. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015, p. 43.
9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de ge^nero e a responsabilidade civil do Estado pela lenie^ncia legislativa. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015.
10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 13.