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Do GLS ao LGBTIANP+ - A relevância da representatividade para fins jurídicos

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Atualizado às 08:45

Uma das grandes dificuldades enfrentadas pelas pessoas que não são iniciadas nos estudos acerca da sexualidade reside em entender o motivo pelo qual a sigla que designa as minorias sexuais está em constante mudança, bem como qual seria o motivo para se utilizar de tantas letras.

Reiterando o que foi trazido em nossa última coluna é de suma importância que o conhecimento seja disseminado para todos com o objetivo de ampliar a compreensão acerca da realidade vivida pelas minorias sexuais, possibilitando o afastamento da escuridão da ignorância, o que tem o enorme potencial de fomentar o respeito de que tanto carecem aqueles que não estão inseridos nos grupos ordinariamente considerados majoritários nesse contexto.

Destaca-se, novamente, que o que se assevera aqui é que há de ser garantido o respeito aos direitos fundamentais reservados a todas as pessoas independentemente de quaisquer características que venham a apresentar, jamais podendo a sexualidade "ser aspecto utilizado pelo Estado-legislador para privar quem quer que seja de acesso a direitos que são garantidos a todas as pessoas"1.

Conferir a todos os direitos que lhes cabem passa, necessariamente, pelo reconhecimento da sua existência como cidadãos, sendo a invisibilidade uma das mazelas mais nefastas a permear a vivência das minorias, fato que, obviamente, incide sobre os grupos vulnerabilizados em razão da sexualidade. Um dos pontos mais relevantes para a concretização dos direitos elementares constitucionalmente firmados perpassa pela ciência de que essas pessoas estão presentes na nossa sociedade, ainda que não tenhamos (ou saibamos que temos) contato com elas.

Com esse escopo urge, lastreado pela missão de colocar a sexualidade em foco como fator indissociável da humanidade de todas as pessoas, que nos apoderemos do significado da sigla (ou siglas?) utilizada para identificar esse grupo tão amplo e heterogêneo.

De plano é de se considerar que apesar de entendermos que a sexualidade é composta pelo sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero, a sigla originalmente não abrangia a todas essas vertentes, restringindo-se apenas a indicar dimensões da orientação sexual, além de agregar aqueles que não se mostravam refratários aos que ousavam subverter a normalidade esperada nesse âmbito. Dessa forma, tínhamos inicialmente a sigla GLS utilizada nos anos 1980 para referir-se ao grupo como um todo e que albergava gays (homossexuais do gênero masculinos), lésbicas (homossexuais do gênero feminino) e, finalmente, os simpatizantes à causa.

Contudo com o passar dos anos se compreendeu que o GLS padecia de falta de representatividade, deixando de fora outros aspectos divergentes da sexualidade e que também eram marginais aos parâmetros socialmente postos como adequados ou corretos2.

Com isso, visando conferir uma maior extensão e abrangência, passou-se a usar, nos anos 1990, a sigla GLBT, que logo converteu-se em LGBT. A inversão da ordem teve por fundamento a perspectiva de ofertar um maior protagonismo ao feminino, colocando o L de lésbicas antes do G dos gays, vindo a sigla a ser complementada com o B de bissexuais (aqueles que manifestam seu interesse afetivo-sexual tanto para pessoas do gênero oposto quanto para as do mesmo gênero) e do T de transexuais, característica vinculada à identidade de gênero.

Entendendo a identidade de gênero como o pertencimento da pessoa com relação a seu gênero, transexuais seriam aquelas que se entendem como sendo de um gênero distinto daquele que era o esperado em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento.

Contudo, exatamente em razão de critérios relacionados à identidade de gênero, houve uma nova alteração e, por um breve período, usou-se LGBTT, sendo que esse segundo T estava adstrito à figura das travestis. Como consignado em nossa coluna inaugural, ainda que não seja pacífica a distinção entre transexuais e travestis, com a própria comunidade valendo-se, por vezes, das expressões como sinônimas, para fins acadêmicos temos sustentado que o distintivo entre as duas figuras está no fato da existência de uma repulsa ou ojeriza de transexuais com relação à sua genitália, que faz com que venham a ponderar quanto a possibilidade de realização de intervenções cirúrgicas (não que precisem efetivamente realizá-las), fato que não se verifica entre as travestis3.

De qualquer sorte, a sigla LGBT acabou por se consolidar com a compreensão de que o T seria referente a transgênero, expressão que englobaria tanto transexuais quanto travestis, bem como outras figuras que podem ser encontradas sob a sua extensão, como intersexuais, não binários, agêneros, entre outros.

O LGBT é atualmente a expressão mais conhecida e utilizada com o objetivo de nomear a comunidade que não se entende inserida na concepção esperada pela maioria no que tange aos critérios da sexualidade. Contudo ainda é uma sigla que não incorpora todas as nuances, o que faz com que os grupos não expressamente indicados pleiteiem a inclusão da letra que os identifica, buscando com isso fazer com que venham a ser vistos, entendidos, reconhecidos e respeitados.

Esse ideal de buscar visibilidade é elemento de suma relevância quando se estuda as minorias, especialmente as sexuais, vez que a invisibilidade social, o apagamento, a segregação, a discriminação e a percepção de que sua existência está restrita apenas a certos guetos gera uma falsa impressão de que são poucos e irrelevantes, o que culmina em um sentimento de que não merecem qualquer tipo de proteção jurídica. Para os que os entendem como pervertidos, bizarros, desviados ou qualquer outra expressão do mesmo jaez utilizada com o fim de discriminar, além de serem poucos deveriam ser dizimados e extirpados da sociedade, como se pode constatar, por exemplo, da realidade enfrentada pelas pessoas transgênero no Brasil que pode ser entendida como um genocídio trans4, em manifesta afronta ao estado democrático de direito posto.

Ser visto e reconhecido é preponderante para que se possa exigir do Poder Público a implementação de políticas públicas e ações afirmativas visando que os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos lhes sejam efetivamente ofertados e garantidos. Não se pode olvidar que toda vez que nos vemos compelidos a discutir a premência de que políticas públicas e ações afirmativas sejam implementadas estamos diante da manifesta constatação de que falhamos como sociedade e como Estado, nos termos apontados na coluna anterior.

A invisibilidade que atinge as minorias sexuais no Brasil5 é tamanha que não existem dados oficiais a revelar o seu tamanho exato ou a sua participação na sociedade, impondo que aqueles que destinam sua atenção ao tema tenham que valer-se de informações coletadas por organizações não governamentais ou estatísticas importadas de outros países. A ausência de subsídios evidencia a falta de interesse do Poder Público em conhecer esse grupo e buscar meios que venham a atender suas demandas, relegando-os a uma cidadania distinta daquela experimentada pelas maiorias.

Contudo a sigla seguia deixando de fora alguns vulnerabilizados que passaram a pleitear a sua presença, já que mostra-se imperioso, em nossa sociedade, ser compreendido como alguém para acessar os direitos mais elementares. Com isso, na busca pela representatividade, as pessoas intersexo (aqueles que, quanto ao sexo, não podem ser inseridos nos parâmetros clássicos do homem ou da mulher) foram os primeiros a conseguir emplacar sua letra representativa na sigla nessa nova fase, passando a ser utilizado o LGBTI.

Exatamente com o intento de demonstrar que o tema se mostra muito mais complexo e amplo do que o ordinariamente considerado pela maioria das pessoas em seguida passou-se a agregar um "+" à sigla, afastando qualquer viés excludente que poderia ser a ela atribuído e indicando todos os demais grupos sexualmente vulnerabilizados que não estavam englobados nas letras já indicadas.

Hoje o LGBTI+ começa a ganhar espaço e apresenta-se como a sigla que está próxima de ser tida como a mais ajustada de forma geral, sendo exatamente ela a utilizada pela Aliança Nacional LGBTI+, uma das mais conceituadas organizações da sociedade civil destinada à promoção e defesa dos direitos humanos e cidadania das minorias sexuais6.

Na sequência houve a inserção do A à sigla, passando a ser utilizada como LGBTIA+, revelando a figura das pessoas assexuais, entendidas como aquelas que, em linhas bastante superficiais, não expressam interesse sexual por nenhum dos gêneros.

Mesmo considerando a abrangência que o "+" busca conferir, o desejo de ser conhecido e notado como um grupo que tem necessidades e anseios a serem resguardados segue conduzindo outras minorias sexuais a pleitear acréscimos que busquem a consolidação de suas letras representativas na composição da sigla. Nesse novo contexto temos preferido a utilização da sigla LGBTIANP+, com os já tradicionais LGBT, mas indicando a condição das pessoas intersexo e intersexual (tema tratado com profundidade em coluna anterior), os não-binários (que não se identificam nem com o gênero masculino tampouco com o feminino) e os pansexuais (aqueles cujo interesse afetivo-sexual não se mostra atrelado a uma questão de gênero), com a manutenção do "+".

Mesmo com a inclusão dessas novas letras é importante a permanência do "+" na sigla exatamente para demonstrar que nem todos estão expressamente representados, reforçando que as minorias sexuais não se restringem àquelas inseridas nas letras que compõem a sigla, mas que a sexualidade reveste-se de uma dimensão ainda maior, repudiando qualquer sorte de exclusão. Apenas à guisa de exemplo pode-se relatar que quando se preenche cadastros em redes sociais em outros países são apresentadas até 50 possibilidades de respostas para o campo destinado ao sexo, como se dá com o Facebook7.

Há, atualmente, quem chegue a utilizar a sigla LGBTQQICAAPF2K+, que traria, além das minorias já mencionadas, um Q de Queer (termo de origem inglesa usado como guarda-chuva para todos aqueles que não são heterossexuais e cisgêneros, fundado na ideia de que aquele que tinha tais características seria "estranho") e outro de "questionando" (os que não têm certeza quanto a alguma das facetas de sua sexualidade), um C de curioso (quem possui uma sexualidade definida mas demonstra o interesse em experimentar situações diversas daquelas a ela atrelada), um A de aliados (não pertencem a nenhuma das minorias mas unem forças em favor dos seus direitos), mais um P de polissexuais (com orientação sexual por dois ou mais gêneros mas não por todos), um F de familiares (parentes de integrantes de uma das minorias sexuais), um 2 de 2-espíritos (oriundo do two-spirits utilizado por alguns povos originários da América do Norte que identificam-se tanto com um espírito masculino como com um feminino) e um K de kink (pessoas que possuem fetiches), além do abrangente "+".

Feitas as devidas apresentações das letras que compõem a sigla entendemos que é crucial, atendendo ao preceito técnico que buscamos reforçar continuamente na presente coluna, que não se use, ao menos no âmbito jurídico, a sigla de forma indiscriminada e sem a acuidade técnica necessária para se evitar maiores confusões ou mesmo discussões desnecessárias. Tal afirmação se faz exatamente para que não se incorra no equívoco de discutir o acesso a atendimento médico especializado para toda a população LGBTIANP+ quando isso não se impõe como no caso de pessoas não-binárias, ou então o acesso a refúgio/asilo para pessoas assexuais.

Evidente que a inserção de novas letras na composição da sigla pode dar azo a manifestações jocosas, que fará com que alguns considerem a questão como algo risível. Essa conclusão equivocada é um preço a ser pago para se garantir a visibilidade dos grupos que deixam de ser inexistentes e passam a ser, ao menos, conhecidos, elemento primordial para que venham a ser objeto de discussão social.

Outra questão que se coloca é a de que a inclusão de "novas" letras poderia trazer a banalização da discussão, uma redução da relevância das questões atinentes à sexualidade como um todo, todavia, é premente que tais letras sejam expostas e divulgadas para que os problemas existentes sejam conhecidos e passem a receber a devida atenção.

Por fim há de ser refutada a afirmação de que a cumulação de letras torna o tema mais difícil de ser assimilado pela população como um todo já que nesse sentido há de imperar o objetivo que tem norteado a presente coluna, qual seja, viabilizar a todos, especialmente àqueles inseridos no universo jurídico, o acesso a informações que não são usuais do seu cotidiano.

A compreensão da existência de minorias sexuais com realidades distintas impõe a discussão das suas necessidades e da forma como o ordenamento jurídico tem atuado no sentido de garantir a efetivação de seus direitos fundamentais. Uma das consequências mais elementares de se dar visibilidade é demonstrar que algo existe e, no presente caso, esse "algo" é exatamente uma pessoa que há de ter respeitados seus direitos e garantias fundamentais, os quais não podem jamais ser afastados ou relegados por não ser ela alguém inserida no espectro majoritário, sob pena de uma ruptura do tecido social que dá sustentação ao estado democrático de direito.

Temos por certo que o adequado entendimento do tema, com todas as suas idiossincrasias, é indispensável para que a apreciação de certos direitos seja qualificada e entabulada de maneira correta e nos exatos limites previstos constitucionalmente, como no caso do direito à igualdade, à não discriminação, à vedação ao discurso de ódio, à educação inclusiva, à saúde integral, à participação política e social, entre outros.

Será demais exigir que todos sejam respeitados e tenham seus direitos garantidos, com a aplicação simples do clássico e surrado preceito cunhado por Aristóteles de que "devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade"?

__________

1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16.

2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10.

3 Simona Argentieri. Travestismo, transexualismo, transgêneros: identificação e imitação, Jornal de Psicanálise, 42:77, São Paulo, 2006, p. 176.

4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Da invisibilidade à exposição indevida: as agruras que seguem permeando a vida das pessoas trans no Brasil. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, p. I - IV, 2022.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui. Acesso em: 30 mai. 2023.