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O divórcio tardio e seus impactos de gênero

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Atualizado às 08:22

Ainda que já tenhamos caminhado muito no sentido de estabelecer efetivamente a igualdade preconizada no texto constitucional é evidente que estamos distantes de alcançar esse objetivo, fato que pode ser constatado em inúmeras situações do cotidiano brasileiro, como na absurda discrepância entre os salários recebidos por homens e mulheres que exercem a mesma função laborativa.

Mesmo com a libertação de muitas das amarras que cerceavam a liberdade das mulheres seguem persistindo em nossa sociedade, na prática, alguns obstáculos importantes que dificultam o desenvolvimento pleno de suas vidas, impedindo, com suas ramificações nefastas, que a igualdade formal se consolide em material.

O Direito de Família é um ambiente profícuo de proliferação das forças opressora do machismo fundado em uma falsa ideia de tradição e manutenção da estrutura clássica da família, com raízes em um conservadorismo oriundo de uma enviesada compreensão das diretrizes religiosas. Vários preceitos tradicionalistas de fundo manifestamente discriminatório, embora superados legalmente, continuam a encontrar guarida e proteção sob os muros construídos pelas entidades familiares, reverberando uma segregação contra as mulheres que impõe a necessidade de uma ampla proteção face a toda sorte de violência doméstica que se apresenta com números elevados em nosso país.

E é nesse território do Direito de Família que ainda hoje, em 2023, é possível se constatar que uma considerável parcela da população desconhece seus direitos mais básicos, como aqueles relacionados à possibilidade de rompimento de um relacionamento constituído por meio do casamento. Continua sendo recorrente o questionamento por parte das mulheres quanto a existência de um direito ao divórcio independentemente do consentimento ou autorização do cônjuge, associado à afirmação de alguns homens de que "não darão o divórcio" caso elas o desejem.

Tal dúvida é um manifesto reflexo do entendimento estabelecido em certos círculos de que a mulher, em um casamento entre pessoas de gênero distintos (vide o desenvolvimento do tema gênero e casamento na coluna anterior) seria entendida quase que como uma propriedade de seu marido, tendo a si atribuído o nome de família dele, passando a dever respeito, obediência e submissão a ele.

Mesmo com a igualdade consolidada na Constituição Federal de 1988, acompanhada das alterações inseridas no Código Civil de 2002 e acrescido dos novos parâmetros fixados pela Emenda Constitucional nº 66 que alterou o conteúdo do § 6º do art. 226 da Constituição Federal, é evidente que uma grande parcela da sociedade ainda não se apropriou plenamente das novas concepções sociais e legais que permeiam as relações familiares, demonstrando que a transição para uma consciência da atual condição na mulher nas relações matrimoniais ainda encontra-se em curso.

Nos corredores acadêmicos e nos núcleos de discussão de excelência o Direitos de Família tem sido objeto de análises de alta complexidade e, especificamente no que concerne aos relacionamentos amorosos/afetivos interpessoais, questões como a contratualização das relações familiares, a liberdade de imposição de cláusulas de natureza existencial em pactos antenupciais e do divórcio post mortem, a título de exemplo, têm exigido dos estudiosos elevado grau de atenção e dedicação. Contudo não se pode simplesmente ignorar que segue sendo necessário difundir para a população leiga as consequências de elementos considerados básicos, permitindo que venham a compreender os direitos legislados e, com isso, possam acessá-los.

Nesse contexto é premente que se dissemine de maneira ampla para todas as pessoas, de forma a garantir o exercício pleno da cidadania, que saímos de uma visão de indissolubilidade do casamento no século passado para uma ampla liberdade de dissolução dos matrimônios, que passou a ser entendida como uma possibilidade lastreada na mera discricionariedade dos cônjuges, revelando-se como ato de natureza potestativa e apartada da imposição religiosa de que o matrimônio perduraria até que a morte separasse os cônjuges, não mais imperando o pensamento de que "o que Deus uniu o homem não separa".

Não vamos nos aprofundar em questões como o divórcio impositivo ou independente da manifestação do outro cônjuge por não ser esse o escopo do presente texto, mas não é mais possível se olvidar que há a plena liberdade de dissolução dos casamentos formalizados, o que tem manifestos impactos na estruturação da sociedade atual como um todo, especialmente se considerando as novas composições familiares com as chamadas famílias mosaico ou recompostas.

Todas essas considerações de fundo técnico-jurídico relacionadas à possibilidade de dissolução do casamento não podem desconhecer do fato de que as diversas diferenças existentes entre as várias camadas da sociedade acabam por exigir uma aferição acurada daquele que se dedica ao estudo do tema, sendo o recorte de gênero um dos mais impactantes.

Valoroso que seja possível afirmar que hodiernamente as mulheres gozam verdadeiramente de uma liberdade de tomar para si as rédeas de suas vidas e desvincular-se de um relacionamento que não mais se mostra adequado aos seus ideais, distanciando-se de um mundo que sempre impôs às mulheres uma condição de submissão. Contudo as circunstâncias que permeiam a realidade vivenciada por essas mulheres não podem ser colocadas de lado pois os impactos de uma dissolução de casamento serão distintos para homens e mulheres envolvidos em um matrimônio de pessoas de gênero distintos.

Nesse momento direcionaremos nossa atenção a uma hipótese específica de dissolução de casamento que tem ganhado espaço em decorrência da nova condição conferida em favor das mulheres com as alterações que se instalaram no Direito de Família.

Questão que já vem despertando a preocupação e estudos mais aprofundados pelo mundo afora é o aumento do número dos divórcios tardios, também chamados de "divórcios grisalhos" como uma tradução da expressão usada em língua inglesa "gray divorce". Essencialmente trata-se das dissoluções de casamento realizadas por pessoas que contam com mais de 50 anos de idade e com um longo período de matrimônio.

O tema ganhou algum espaço nas redes sociais nos últimos tempos face a uma reportagem veiculada pela BBC Brasil1 que foi repercutida por alguns colegas que se dedicam ao estudo do Direito de Família. Os dados tem demonstrado uma ampliação no número de divórcios tardios, fato associado a uma redução da estigmatização que acompanhava o divórcio e que confere às pessoas um menor receio dos impactos sociais de se romper o casamento, ao que se associa o aumento da expectativa de vida das pessoas e a cada vez mais presente perspectiva de que a busca da felicidade é um direito inerente à condição humana.

Nessa mesma reportagem a BBC Brasil faz um levantamento que revela que no Brasil, em 2021, da totalidade dos divórcios (judiciais e extrajudiciais) ocorridos cerca de 26% tinham ao menos um dos ex-cônjuges com mais de 50 (cinquenta) anos de idade.

Inquestionavelmente é louvável se constatar que as pessoas não mais têm se sentido vinculadas a uma imposição religiosa ou social de manter-se em um matrimônio que não se mostra em consonância com os anseios e objetivos de cada um, contudo enaltecer tal situação e ignorar seus desdobramentos é inadmissível.

Por óbvio os casamentos mais antigos são aqueles em que prospera a estrutura do relacionamento heterossexual baseado na figura clássica do homem como provedor e arrimo econômico de um lado em contraposição com a figura feminina da mulher desprovida de meios próprios de subsistência e que se responsabiliza plenamente pelas obrigações de cuidado com relação à família e ao lar.

A maioridade dos filhos do casal e sua saída da casa da família, aposentadoria do marido que acaba por impor um maior período de convivência entre os cônjuges e mesmo o desgaste natural de um relacionamento duradouro são fatores indicados como alguns dos que acabam por influenciar na decisão de romper aquele relacionamento já que os estigmas do passado vinculados ao divórcio já não mais gozam da mesma força.

Apesar de ordinária a compreensão de que em sede de dissolução desses casamentos a mulher venha a pleitear o pagamento de pensão alimentícia visando a sua mantença é de se notar que normalmente um dos aspectos que faz com que as mulheres ponderem se efetivamente querem o divórcio relaciona-se com as condições econômicas que virá a enfrentar em uma nova realidade. Não se pode apreciar a presente questão sem ponderar o fato de que ela se encontra em uma delicada intersecção que atinge marcadores como gênero, idade, classe social e raça.

Um estudo feito nos EUA e publicado em 2022 constatou que as mulheres enfrentam uma redução de 45% (quarenta e cinco por cento) em seu padrão de vida enquanto o percentual é de apenas 21% (vinte e um por cento) no caso dos homens, concluindo que os chamados "gray divorces" são, normalmente, devastadores financeiramente especialmente para as mulheres2.

Essa mesma pesquisa considerou também outros fatores relacionados a essas pessoas, como a constituição de uma nova família e características econômicas vinculada ao bem estar dessas pessoas, constando que encontram-se em maior risco aqueles que tiveram menor acesso à educação e entendidos como "não brancos", sendo que um "recasamento" é mais recorrente entre os homens, mais jovens e "brancos".

Patente está que não é possível compreender o divórcio tardio ("gray divorce" ou divórcio grisalho) no Brasil sem ter em mente que as pessoas serão por ele impactadas de formas distintas considerando sua realidade, em que pese inexistirem dados consolidados em território nacional acerca da questão.

A figura do dever de alimentos para o cônjuge no Brasil, como já mencionado, está prevista legislação contudo isso não é garantia de que a mulher gozará de tal prerrogativa na prática (considerando o recorte de gênero propostos no presente texto), e tendo em mente que o "recasamento" é mais comum entre os homens, se mostra bastante provável que esse indivíduo venha a destinar suas finanças para o cuidado da nova família, muitas vezes valendo-se de meios ilícitos para furtar-se de suas responsabilidades alimentares com a ex-cônjuge, que, caso tenha filhos, será, de forma geral, por eles sustentada caso não tenha condições de se inserir no mercado de trabalho.

Acrescente-se ainda que o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) é no sentido de que obrigação alimentar devida em favor de cônjuge há de estar vinculada a uma limitação temporal, ressalvadas situações absolutamente excepcionais como a de incapacidade física para o trabalho. Contudo não se olvide que tal posicionamento está atrelado à tese de que o alimentando não pode aproveitar-se da obrigação do alimentante e quedar-se inerte caso tenha capacidade laboral3.

O ponto que pode se mostrar preponderante para a discussão aqui firmada está exatamente em se aferir em que medida o fato de ter abdicado de sua vida profissional para dedicar-se ao cuidado da família e do lar conjugal se mostra relevante para a determinação da "incapacidade de inserção no mercado de trabalho", aferição de elevada complexidade que contrapõe o dever de alimentar à vedação do abuso desse direito por seu beneficiário.

O divórcio tardio é uma realidade e fruto de conquistas civilizatórias que não mais exigem a manutenção de um casamento para resguardar critérios morais e religiosos que restringiam a autonomia das pessoas, todavia não é possível se ignorar que muitas vezes essa dissolução do matrimônio poderá atingir de forma mais severa as mulheres que podem se ver imersas em uma nova realidade desprovida de meios mínimos para sua mantença, especialmente ao se considerar que muitas dessas mulheres não reúnem as condições necessárias para perceberem benefícios previdenciários que possam garantir a sua subsistência.

Com isso é preponderante que direcionemos nossas atenções também para as consequências dos divórcios tardios a fim de viabilizar que as mulheres que venham a sofrer impactos econômicos, que coloquem em risco a sua mantença, tenham meios de efetivamente poder dar sequência em suas vidas sem que sejam relegadas a uma condição de precariedade que faça com que a liberdade de romper com o relacionamento não seja real em razão de obstáculos de fundo econômico que inviabilizariam o exercício de sua liberdade de buscar a felicidade.

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1 Disponível aqui. Acesso em 15.04.2023

2 I-Fen Lin; Susan L Brown. The Economic Consequences of Gray Divorce for Women and Men, Innovation in Aging. V. 6, n. suplem. 2022, p. 295.

3 Disponível aqui. Acesso em 17 abr.2023