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A objeção de consciência discriminatória na medicina: por linhas claras para que um privilégio possa ser efetivado como direito

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Atualizado às 07:49

Recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a resolução Nº 2.283/2020. Nela é alterado dispositivo constante de outra resolução anterior do CFM, a resolução nº 2.168/2017, que estabelece Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida (RA).

A alteração promovida pela Resolução é menos significativa por aquilo que altera e introduz de novo no regramento ético da profissão médica, e mais pelo que revela sobre a forma como os próprios médicos enxergam as suas prerrogativas individuais no exercício ético da sua profissão.

Como já dito, a resolução nº 2.168/2017 estabelece regras éticas para aplicação, pelos profissionais médicos, das tecnologias de reprodução assistida. Ela foi alterada pela Resolução Nº 2.283/2020 em um dos seus artigos, que dispunha, originalmente, que:

"II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA [Reprodução Assistida]

[...]

2. É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos, pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico."

Com a alteração, a nova redação do dispositivo passou a ser a seguinte:

"II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA [Reprodução Assistida]

[...]

2. É permitido o uso das técnicas de RA para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros"

A princípio, poderia parecer que os médicos não poderiam mais fazer uso da "objeção de consciência" no contexto das técnicas de RA, dada a remoção da referência a ela do dispositivo, mas, conforme consta na "exposição de motivos" da Resolução Nº 2.283/2020, a alteração visou a aprimorar a sua redação, explicitando a possibilidade do acesso das técnicas de RA a pessoas casadas - ao excluir a menção a pessoas solteiras -, às transgêneras e também às heterossexuais, removendo também a referência à objeção de consciência, por tê-la como desnecessária, por já ser essa um direito do médico garantido pelo Código de Ética Médica (CEM), aprovado pela Resolução CFM nº 2.217/2018.

Antes, contudo, de passar ao comentário específico sobre o sentido da alteração para o exercício da chamada objeção de consciência médica (OCM), cabe uma digressão sobre a alteração que viu necessária a inclusão de referência a "heterossexuais" na norma. Alegou-se uma preocupação com interpretações "heterodoxas" ou "adoção literal" da redação original do dispositivo, que poderiam gerar possíveis exclusões na abrangência daqueles que teriam acesso às técnicas de RA, dos heterossexuais, dos casados, e dos transgêneros.

Tal preocupação, especificamente em relação aos "heterossexuais", talvez nasça da ignorância acerca do motivo pelo qual foi necessário, em primeiro lugar, incluir um dispositivo em resolução que trata de normas éticas para aplicação de tecnologias de RA em que houvesse menção expressa de que elas deveriam ser disponibilizadas a pessoas homossexuais. É fato social notório no Brasil a discriminação e a violência sofrida por homossexuais e transgêneros, discriminação essa que se perpetua, também, na negativa de acesso a um serviço de saúde que lhes seria, a princípio, constitucionalmente garantido. Desconsidera-se, aqui, a história recente do país, pelo menos desde a Constituição de 1988, em que pessoas homossexuais e transgêneras buscaram - e ainda buscam - o direito de terem as suas uniões afetivas reconhecidas como entidades familiares e o de receber tratamento isonômico perante a lei em matéria de sua autonomia reprodutiva e efetivado o seu direito ao planejamento familiar.

Não é nosso objetivo adentrar as razões socioculturais que explicam a violência e a discriminação historicamente sofridas por esses grupos, mas nos parece extremamente obtuso, mesmo a um observador desatento e pouco afeito à análise das muitas mazelas sociais brasileiras, ignorar que tal dispositivo, enquanto norma ética, teria como objetivo garantir, de forma enfática, o acesso às técnicas de RA a grupos aos quais, historicamente, tal acesso foi negado, e não o de listar exaustivamente a quem se deve dar acesso a tais técnicas.

Não obstante, o nosso objetivo, aqui, não é a crítica a esse aspecto da alteração do dispositivo, mas realçar o contraste, um tanto quanto bizarro, da forma como se justificou a necessidade de incluir também a expressa menção a "heterossexuais" no dispositivo, com a forma como se motivou a exclusão da referência à OCM.

Concomitantemente à percebida necessidade de incluir "heterossexuais" no dispositivo, para evitar interpretações "heterodoxas", entendeu-se como desnecessária uma simples menção à objeção de consciência, pois esta última já estaria garantida no CEM.

Parte-se do pressuposto, portanto, que o exercício ao direito à objeção de consciência dos médicos é pacífico, seguro e inconteste, despicienda a sua repetição especificamente ao exercício no contexto das práticas de RA.

Isso, no entanto, não é verdade.

Em primeiro lugar, poder-se-ia afirmar que a forma como o CEM regulamenta a objeção de consciência médica no Brasil é altamente problemática e, mesmo, em certo sentido, inconstitucional.

O inciso VII do Capítulo I do CEM afirma que um dos princípios (éticos) fundamentais do exercício da medicina no Brasil é que:

"- O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente."

Ou seja, à exceção de casos em que a recusa no tratamento possa acarretar risco de vida ou de danos à saúde do paciente, os médicos brasileiros poderiam, em primeira leitura, se recusar a prestar qualquer tratamento a qualquer pessoa, tout court.

Esta formulação, no entanto, desrespeita o dispositivo da CR/1988 que lhe dá fundamento. Afinal, a autonomia no exercício profissional não é, por si só, garantia constitucional. Há, como regra geral, a obrigação de qualquer um, o que inclui os médicos, em cumprir aquilo que lhes ordena a lei.

A Medicina detém o monopólio do exercício público de práticas de promoção à saúde humana no Brasil, o que significa dizer que práticas de promoção à saúde alternativas às prescrições da ciência médica são, em geral, proibidas, assim como é vedada a prática de terapêuticas de promoção à saúde humana por aqueles que não tenham a habilitação própria conferida pelos órgãos de regulação da Medicina. Este monopólio faz com que a Medicina possa ser considerada como instituição social corresponsável pela efetivação do direito constitucional à saúde, pelo que se pode concluir que há um direito constitucional individual de todos de terem acesso a técnicas de promoção à saúde que sejam legalmente autorizadas, e o respectivo dever da Medicina de provê-las.

A OCM, entendida como a prerrogativa de recusa, por médico(a) individual, em realizar certo tratamento, ou em tratar certa pessoa, em virtude de objeção derivada de crença ou convicção íntima de sua consciência, deve estar compatível com esta constatação.

Assim, um primeiro problema na forma como o CEM trata a OCM é que não há cláusula de garantia ao tratamento por parte do paciente que tem negado acesso a serviço de saúde por médico objetor. Não há, por exemplo, o dever do médico objetor em indicar outro profissional, acessível ao paciente em questão, que dispor-se-ia a realizar o tratamento ou a tratar o paciente. Embora haja, no Brasil, previsões nesse sentido em normas técnicas do Ministério da Saúde sobre serviços de abortamento do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, claramente o problema é uma questão que deveria ser tratada como pertinente a todo e qualquer contexto do exercício da OCM, não apenas em relação a um procedimento específico.

Criar legalmente tais deveres - ou, ao menos, como previsões específicas no CEM -, a serem exigíveis como ônus de qualquer médico objetor, seria o mínimo, ante ao quadro constitucional vigente.

Afinal, a liberdade de consciência, direito constitucional fundamental no qual se esteia a OCM, exige que o objetor, que se recuse a praticar ato que lhe seria legalmente exigível por razões de convicção filosófica ou religiosa, se obrigue a prestação alternativa, fixada em lei (art. 5º, VIII, da CR/1988).

Ou seja, deve haver, para casos do exercício da objeção de consciência, obrigação alternativa fixada em lei, algo que, de fato, não ocorre no Brasil para o caso da OCM, embora haja, como já mencionado, em algumas normas técnicas aplicáveis a serviços de abortamento legal no SUS, por exemplo, diretrizes no sentido de que deve haver a indicação de outro(a) profissional para realizar o procedimento no caso de OCM, e que os gestores de instituições de saúde deverão tomar medidas para garantir o acesso ao aborto em casos de OCM. Não há qualquer previsão aplicável aos serviços de RA, no entanto, o qual nos diz respeito no contexto presente.

Em suma, sendo o exercício da OCM prerrogativa fundada na liberdade constitucional de crença ou convicção, deve estar necessariamente atrelada à obrigatoriedade de prestação legal alternativa, caso contrário é inconstitucional ao constituir-se em efetivo privilégio, o de eximir-se de obrigação legal a todos imposta por motivo de convicção filosófica ou religiosa sem ter de arcar com o ônus de prestar qualquer obrigação alternativa.

E, mesmo que superado este ponto, supondo que houvesse alguma obrigação alternativa fixada em lei para exercício da OCM - e não há - a alteração promovida pelo CFM na resolução sobre normas éticas de RA deixa entrever, ainda, um equívoco adicional: a concepção de que o conteúdo da convicção ou crença pela qual se exerce a OCM é irrelevante para sua legitimidade enquanto direito dos profissionais.

Imagine-se situação hipotética, mas verossímil: um casal homoafetivo procura clínica de RA para terem um(a) filho(a), e o médico responsável pelo seu atendimento os informa que não irá disponibilizar a eles ou a elas o acesso pois possui objeção de consciência ao tratamento de homossexuais, uma vez que, pelas suas crenças religiosas, a união entre pessoas do mesmo sexo é tida como "antinatural".

Tal situação, a qual seria aparentemente de regular exercício da OCM, estaria, na verdade, vedada, em absoluto.

O próprio CEM afirma, como um dos seus outros princípios fundamentais, que a medicina será exercida "sem discriminação de nenhuma natureza". Logo, o exercício da OCM deve estar compatibilizado com esta cláusula "antidiscriminatória", que efetivamente molda o alcance do direito à OCM.

Dada a dimensão pública da profissão médica, a qual citamos, tal cláusula antidiscriminatória poderia ser lida também como corolário do próprio direito à saúde enquanto direito fundamental, ou mesmo como concretização de um dos objetivos da República, em conformidade com o que dispõe o art. 3°, IV, da CR/1988.

Isso significaria que a OCM poderá ser exercida, legitimamente, em relação a procedimentos técnicos específicos, como o aborto, para ficar no caso mais comum, mas não em razão de objeção a aspectos identitários do(a) paciente, como a sua raça, local de origem, classe social, religião, afiliação partidária, preferência política, orientação sexual etc. Assim, o exercício da OCM em relação a "quem não deseje" esbarraria, quase sempre, na cláusula antidiscriminatória que deve ordenar o exercício ético da Medicina.

Fato é, urge uma melhor compreensão sobre o tema da OCM pelos próprios profissionais da Medicina, para que tratem esta prerrogativa não mais como privilégio corporativo, mas como direito individual, a ser lido e interpretado a partir dos parâmetros estabelecidos pelo nosso sistema constitucional.

*Daniel Mendes Ribeiro é  professor Adjunto do Departamento de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Governador Valadares.

**Brunello Stancioli é mestre e doutor em Direito (UFMG). Professor dos programas de pós-graduação em Direito e em Filosofia (Ética) da UFMG.