Breves considerações ético-jurídicas sobre a prática da inseminação caseira
terça-feira, 1 de dezembro de 2020
Atualizado às 08:28
Notas introdutórias*
A variabilidade da constituição dos projetos parentais contemporâneos compõe o conjunto de questionamentos bioéticos e jurídicos, que carecem de reflexões ponderadas, já que apontam situações novas que envolvem a proteção aos sujeitos e aos seus direitos, bem como a salvaguarda de bens sociais e jurídicos. O procedimento de inseminação doméstica ou caseira é parte desse panorama e evidencia a cada vez mais ascensão da autonomia no âmago das decisões relacionadas à constituição da família.
A prática surge como uma resposta imediata aos custos elevados da reprodução medicamente assistida e se tornou uma via alternativa para casais homoafetivos que demandariam a doação de gametas para execução de seu projeto parental. A prática pode ser, no entanto, também executada por pessoas solteiras ou viúvas, que optem pela realização de projetos monoparentais, ou, ainda, casais heteroafetivos com dificuldades biológicas para a procriação.
No Brasil, a doação de material germinativo é permitida e disciplinada deontologicamente pela Resolução 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina. Ela determina que seja mantido o anonimato do doador, de modo que o procedimento assistido seja executado por profissionais especializados, com o aparato de uma clínica responsável pela captação dos gametas, pela avaliação diagnóstica dos mesmos e pela implantação.
Assim, como alternativa para as pessoas que não podem ou não querem se submeter ao procedimento assistido como regulamenta o Conselho Federal de Medicina, surge a chamada "inseminação caseira". Inseminação porque envolve a implantação do semên no corpo da mulher e caseira porque o procedimento é feito de maneira doméstica, sem qualquer aparato especializado. Na inseminação caseira, há um doador conhecido e escolhido pelo casal ou pelo indivíduo que quer executar o projeto parental. Como executores da prática, pode-se ter um casal de mulheres, uma única mulher, um casal de homens ou um único homem (nos casos em que não serão usados o sêmen), ou, ainda, um casal de homem e mulher, por exemplo, com problemas de fertilidade.
A conduta tem evidenciado uma série de pontos relevantes quando analisadas à luz da Bioética e do Direito, como o direito de constituir uma família a partir da dimensão singular de cada casal ou de cada sujeito. No entanto, surgem diversas questões como os critérios de escolha dos doadores, a possibilidade de venda de sêmen, a possibilidade de transmissão de doenças não diagnosticadas e o problema da filiação, já que a doação é identificada.
Inseminação caseira: Questões bioéticas e jurídicas
Antes, a infertilidade e a esterilidade eram os únicos motivadores que justificavam a busca pelos procedimentos assistidos de reprodução. Outras motivações, hoje, passaram a integrar a demanda por tais procedimentos, como os impedimentos de ordem circunstancial, como é o caso da produção independente (ou realização do projeto parental por apenas uma pessoa), e, também, no caso dos casais homoafetivos, que não querem contrariar sua orientação sexual. Assim, em ambas as situações, para a procriação, é necessário um doador de material biológico e/ou gestante por substituição1.
A prática da inseminação caseira aponta para a extensão ainda maior dessas motivações, como a ausente capacidade financeira em realizar a procriação por meio de uma unidade especializada2. Relatos noticiados da prática no país3 apontaram que indivíduos que já passaram pelo processo procriativo caseiro afirmaram não existir cobrança pela doação do material biológico. Entretanto, sabe-se que esta é uma possibilidade real, considerando o fato de que, na grande maioria das vezes, não há, pelos envolvidos, a opção por celebração de um contrato, onde a cláusula de venda seria frontalmente nula por contrariar o disposto na lei 11.105/2005, que proibe venda de semên, óvulos e embriões.
Na inseminação caseira, há questões quanto à segurança do procedimento no que tange à tramissão de patologias não conhecidas previamente, tendo em vista que, em grande parte dos casos, o doador "não é submetido a exames específicos, com a finalidade de pesquisar eventuais doenças genéticas ou não, que podem ser transmitidas à mulher ou à prole (HIV, HTLV-I/II, Hepatite e outros)"4. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em 06 de abril de 2018, publicou um comunicado em sua página oficial sobre o procedimento caseiro de reprodução5. Pontua a ANVISA6 a possibilidade de que o "uso de um instrumento como o espéculo, utilizado para abrir as paredes da vagina, e a introdução de cateteres e outros instrumentos podem trazer riscos a mais quando feitos por um leigo", além do fato de que a "contaminação por bactérias e fungos presentes no ambiente também pode ocorrer quando a manipulação do sêmen é feita em ambientes abertos"6.
Na reprodução com doação de gametas de forma assistida, há um contrato celebrado com uma clínica de fertilização que usará o material biológico doado (óvulo ou sêmen). Os comandos disciplinados pela Resolução do CFM não evidenciaram parâmetros claros quanto aos critérios de escolha dos doadores de gametas. A doação de gametas, em qualquer de suas formas, precisa garantir proteção à diversidade biológica, advinda da tutela constitucional do patrimônio genético humano. Assim, a doação de gametas deve ser o máximo possível semelhante à procriação natural, ou seja, ao padrão fenotípico do casal ou da pessoa demandante do projeto parental. O objetivo é descartar qualquer busca por padrões genéticos e estéticos capazes de institucionalizar um verdadeiro "processo seletivo" de características em prol de seres humanos perfeitos1. É evidente que a escolha fenotípica a partir do padrão de quem demanda a procriação somente poderia ser possível se ela fosse realizada através da normativa que vincula as unidades especializadas.
Quanto à filiação, a inseminação caseira é prática relativamente nova e consequentemente desregulada pelo Ordenamento Jurídico em vigor. O doador, na reprodução assistida em clínicas especializadas, obrigatoriamente, é anônimo, enquanto que, na inseminação caseira, passa a ser conhecido, já que os demandantes o procuram e acordam, muitas vezes verbalmente, os termos da doação. Várias questões surgem quando se percebe a precariedade do contrato, na medida em que é significamente provável que a combinação de qualquer isenção de responsabilidade futura em relação ao filho não elimina os efeitos jurídicos possíveis, pois, "a qualquer tempo, poderá ser intentada ação de investigação de paternidade em desfavor do doador, que não terá condições de provar, por total ausência probatória, que o filho nasceu de uma inseminação artificial caseira"4.
A doutrina questiona então a validade desse contrato, seja ele escrito ou verbal, já que trata da constituição de um projeto parental alicerçado em práticas não reconhecidas pelo Direito vigente. As obrigações decorrentes da filiação, enquanto matéria de ordem pública, não estão condicionadas à vontade das partes. O Estado interfere estabelecendo regras concernentes à filiação, considerando, inclusive, a situação de vulnerabilidade dos concebidos e nascidos.
Acrescente-se que, em março de 2016, foi publicado o Provimento nº 52, da Corregedoria Nacional de Justiça-CNJ7, para regulamentar o registro e emissão da certidão, diretamente nos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais, de filhos concebidos por reprodução assistida, dispensando, dessa forma, a necessidade de autorização judicial. O provimento não contemplou a situação da prática em foco. Sabe-se, também, que os Tribunais Superiores reconheceram jurisprudencialmente a multiparentalidade, no entanto, em situações que em nada se assemelham com a prática da inseminação caseira.
A partir do Estatuto da Criança do Adolescente8, é preciso afirmar que as decisões que envolvem os filhos menores estão contingenciadas pelo princípio do melhor interesse da criança, comumente observado nas decisões jurisdicionais. Disso resulta que, independentemente dos termos de qualquer contrato de inseminação caseira, é necessário considerar que uma análise da situação do nascido, em caso de litígio, como investigação e reconhecimento de paternidade, pode culminar numa decisão que represente o melhor interesse da criança.
A alternativa mais adequada para solver as controvérsias apontadas é a disciplina normativa do assunto, seja para proibi-la ou para regulamentá-la, mantendo-se o objetivo de esclarecer os limites e as consequências da prática da conduta.
Considerações Finais
Democraticamente, é fundamental poder reconhecer cada vez mais direitos e anseios de todas pessoas, sem contingenciamentos relacionados às condições socioeconômicas ou a orientações sexuais. A regra é o fomento ao exercício da plena liberdade reprodutiva, reconhecida em âmbito constitucional e regulamentada por lei. Tal reconhecimento não aniquila reflexões importantes sobre a extensão dessa liberdade de decidir em termos procriativos.
Cientificamente, a prática caseira não é segura, posto não ser realizada em ambiente adequado, não ser concretizada com instrumentação técnica e não ser conduzida por profissional especializado.
Ascende a preocupação quanto à possibilidade de que se estabeleça um mercado caseiro de venda de material biológico. A não regulamentação da prática, o que inclui o dimensionamento das suas consequências, corrobora tal possibilidade. A título de registro, acrescente-se também ser questionável o acesso constante a material genético importado por clínicas especializadas, já que a legislação brasileira proíbe a sua comercialização.
As demandas procriativas não podem ser pautadas por objetivos neoeugênicos, representados por vezes pela escolha de determinados padrões fenotípicos de doadores.
O regime jurídico da filiação, consoante dispõe o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, não recepcionou a forma caseira de procriação, mas observa a necessidade de preservar a proteção integral do nascido em caso de conflitos que envolvam a possibilidade de violação de seus direitos.
Notas de referência
1 MEIRELES, AT. Neoeugenia e reprodução humana artificial: limites éticos e jurídicos. Salvador: Juspodivm, 2014.
2 ZYLBERKAN, M. Inseminação caseia ganha impulso compai 'real' e custo quase zero. Folha de São Paulo. 15 de outubro de 2017. Disponível aqui. Acesso em: 29 jul. 2019.
3 BRANDALISE, C. Engravidei com inseminação artificil caseira, diz mulher de casal lésbico. Uol notícias. 27 de julho de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 15 jul. 2019; LEMOS, V. Os brasileiros que doam esperma para inseminações caseiras. BBC Brasil. 29 de novembro de 2017. Disponível aqui. Acesso: 23 jul. 2019; ZYLBERKAN, M. Inseminação caseia ganha impulso compai 'real' e custo quase zero. Folha de São Paulo. 15 de outubro de 2017. Disponível aqui. Acesso em: 29 jul. 2019.
4 OLIVEIRA JÚNIOR, EQ. Inseminação artificial caseira. 22 outubro 2017. Migalhas. Disponível aqui. Acesso em: 18 jul. 2019.
5 A prática é normalmente feita entre pessoas leigas e em ambientes domésticos e hotéis, ou seja, fora dos serviços de Saúde e sem assistência de um profissional de Saúde. Por isso, as mulheres que se submetem a esse tipo de procedimento na tentativa de engravidar devem estar cientes dos riscos envolvidos nesse tipo de prática. Como são atividades feitas fora de um serviço de Saúde e o sêmen utilizado não provém de um banco de espermas, as vigilâncias sanitárias e a Anvisa não têm poder de fiscalização. Do ponto de vista biológico, o principal risco para as mulheres é a possiblidade de transmissão de doenças graves que poderão afetar a saúde da mãe e do bebê. Isso se dá devido à introdução no corpo da mulher de um material biológico sem triagem clínica ou social, que avalia os comportamentos de risco, viagens a áreas endêmicas e doenças pré-existentes no doador, bem como a ausência de triagem laboratorial para agentes infecciosos, como HIV, Hepatites B e C, Zika vírus e outros. (ANVISA. Inseminação artificial caseira: riscos e cuidados. Procedimento feito em casa com uso de seringas e esperma colhido na hora pode trazer alguns riscos e está fora da competência da Anvisa. 06 de abril de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 25 jul. 2019).
6 ANVISA. Inseminação artificial caseira: riscos e cuidados. Procedimento feito em casa com uso de seringas e esperma colhido na hora pode trazer alguns riscos e está fora da competência da Anvisa. 06 de abril de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 25 jul. 2019.
7 BRASIL. CNJ. Provimento n.52 de 14 de março de 2016. Dispõe sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Disponível aqui. Acesso em: 15 jul. 2019.
8 BRASIL. ECA. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 22 jul. 2019.
*Ana Thereza Meirelles Araújo é pós-doutoranda em Medicina pela Faculdade de Medicina da UFBA. Doutora em Relações Sociais e Novos Direitos pela Faculdade de Direito da UFBA. Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), do mestrado da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e da Faculdade Baiana de Direito. Coordenadora da pós-graduação em Direito Médico, da Saúde e Bioética da Faculdade Baiana de Direito. Líder do Grupo de Pesquisa JusBioMed - Direito, Bioética e Medicina.
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*Versão original e extensa publicada em artigo científico na Revista Brasileira de Direito Civil, v.24, n.02, 2020.