Desafios éticos no confronto da Covid-19 no Brasil: Hora de perigo, hora de mudança
segunda-feira, 15 de junho de 2020
Atualizado às 15:21
Texto de autoria de Dirceu Greco
Traduzido de: Ethical challenges for Covid 19 confrontation in Brazil - Time of danger, time for change, Dirceu Greco.
No prelo Junho 2020 em "Newsletter da International Bioethics Commission, Unesco Paris"
Em 6 de junho 2020, 468.338 casos de Covid-19 foram registrados no Brasil, com 36.978 mortes, 14 semanas após o primeiro caso relatado (25 de fevereiro).
Do lado positivo, o Brasil possui um Sistema de Saúde Pública (SUS) bem estabelecido, inclusivo e universal, acessível a todos os 210 milhões de brasileiros e financiado exclusivamente com dinheiro público. É responsável, entre outros, pelos programas de enfrentamento da epidemia do HIV/AIDS e das Hepatites Virais, pelo Programa Nacional de Imunização, pelo programa de transplante de órgãos, pelo sistema nacional de hemodiálise e pelo Programa de Saúde da Família, com 35.000 equipes de saúde em todo o país. Infelizmente, em 2016 foi aprovada uma lei que proíbe o aumento real nos orçamentos de saúde e educação por 20 anos. Existe também um sistema privado de saúde subscrito por cerca de 25% da população.
Etapas iniciais do enfrentamento da pandemia do Covid-19:
- O Ministério da Saúde (MS) estabeleceu um gabinete de crise e os Estados e municípios se uniram em uma resposta concertada. O Legislativo e o Judiciário Federal e Estadual apoiaram o MS e, em 20 de março, foi emitido um decreto de Calamidade Pública. Este decreto definiu a suspensão da maioria das atividades, incluindo escolas, cinemas, teatros, negócios (exceto aqueles considerados essenciais) e instando toda a população a ficar em casa. Isso foi chamado de isolamento social horizontal.
- A antítese foi a posição do Presidente do Brasil. Ele declarou inicialmente que a Covid-19 era apenas "outra gripe comum", não faria mal à maioria da população, exceto aos idosos, que alguns poderiam morrer, mas muitos outros poderiam morrer como consequência do impacto econômico da suspensão das atividades. Ao contrário da evidência científica, começou a pressionar pela transformação do isolamento horizontal em vertical, isolando apenas os idosos. Atuando nesse sentido, demitiu seu Ministro da Saúde, que vinha mantendo as evidências científicas, que incluíam as medidas de quarentena e se posicionou contra a distribuição de cloroquina aos pacientes em qualquer fase da infecção. No entanto, como o Brasil é uma república federal, as opiniões do presidente iniciaram forte controvérsia com os governadores dos Estados, a maioria deles decidindo manter o decreto original de isolamento social e de suspensão das atividades não essenciais.
E agora, com os casos aumentando rapidamente, especialmente no Rio, São Paulo e nos estados do Norte e Nordeste, isso traz outro risco, pois o Sistema Único de Saúde (SUS) possui 21.300 leitos em Unidades de Terapia Intensiva, contra 27.000 no setor privado. Assim, para os 75% dos indivíduos cobertos exclusivamente pelo SUS, há 1,4 leitos/10.000 habitantes em comparação com 4,9 leitos/10.000 para 25% da população. Esse é um dilema ético que deve ser resolvido abrindo todos os leitos para acesso igualitário. Existe resistência do setor privado, mas a Constituição Federal permite o uso da propriedade privada em situações de perigo para a saúde pública. No entanto, essa decisão necessária ainda não foi tomada pelas autoridades federais.
Como os determinantes sociais são os principais fatores de saúde e bem-estar, essa pandemia contribuiu para escancarar amplamente as disparidades existentes no Brasil, com os indivíduos mais vulneráveis socialmente sendo atingidos com mais intensidade. Esses vulneráveis compreendem perto de 35 milhões que vivem com menos de 4 US $/dia, 13 milhões em favelas, mais de 12 milhões de desempregados e uma grande quantidade com empregos informais. Recentemente, foi aprovada a distribuição de R$600,00 (cerca de US $ 120,00) mensalmente por três meses para 42 milhões de pessoas necessitadas. Isso, no entanto, é ainda insuficiente.
À medida que a pandemia atinge a periferia das grandes cidades, onde uma parte substancial dessa população vive em condições precárias, sem acesso ao suprimento adequado de água, a saneamento e com dificuldades em manter distância segura uma da outra, há o risco de disseminação explosiva e, o tornará, como uma das consequências, insuficiente o número de leitos na Unidade de Terapia Intensiva. E está ficando cada vez mais difícil lidar com a pandemia e seus impactos éticos, de saúde e sociais com as políticas atuais do atual governo federal.
Embora a perspectiva imediata seja sombria, há intensos esforços da sociedade para superar os desafios. A sociedade civil, a ciência, a saúde e as organizações da bioética têm sido vocais e participativas, expondo esses absurdos a toda a comunidade e exigindo soluções imediatas. A grande mídia também está participando desse esforço.
Muitas frentes foram abertas para combater a situação atual. Eles incluem pressão para manter o isolamento social enquanto for necessário; pressão para impedir o uso de qualquer medicamento novo ou off label fora dos protocolos de ensaios clínicos e por projetos de lei que visem aumentar e expandir o apoio financeiro para os necessitados, e impedir que patentes sejam aprovadas para medicamentos e insumos para tratamento da Covid. Além disso, há pressão para expandir o apoio financeiro e de infra-estrutura do sistema de saúde pública e estender para além dessa pandemia o enfrentamento das desigualdades e proteger os direitos humanos.
*Dirceu Greco, MD, PhD, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.