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O princípio da moralidade administrativa como fundamento autônomo para imposição sancionatória

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Atualizado em 21 de maio de 2024 13:52

Inquestionável a vagueza inerente ao princípio da moralidade administrativa em contraponto à relevância na seara da probidade administrativa. De fato, a Constituição Federal de 1988 o inseriu dentre os princípios de observância inafastável pela Administração Pública e por todos que a compõem sem, entretanto, dar-lhe contornos mais específicos. Sua aplicação concreta pressupõe então uma elevada carga de subjetividade, o que, não raro, dá ensejo a interpretações conflitantes mesmo diante de situações fáticas semelhantes. Esse impacto é percebido sobremaneira quando a moralidade administrativa é utilizada de forma autônoma para fundamentar uma imposição sancionatória.

É comum que legislações que elencam os deveres, proibições e responsabilidades dos servidores públicos tragam previsões abertas como a obrigação de "manter conduta compatível com a moralidade administrativa"1 ou ameacem aplicação da penalidade de demissão quando praticados atos que importem em "improbidade administrativa"2. Impõem assim resultado prático e penoso, imposição de sanção, sem esmiuçar a infração administrativa, que, nesse caso, encontra-se adstrita à interpretação de princípio jurídico. Talvez, por isso, a LINDB tenha se preocupado em dizer que "não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".3

O professor Carlos Ari Sundfeld4 nos chama a atenção sobre o risco trazido pela utilização de princípios no exercício da atividade administrativa-controladora-sancionadora, especialmente quando aparecem de forma genérica e imprecisa nos textos legais.

De fato, é comum que princípios sejam relevantes instrumentos de interpretação no direito administrativo, pois agregam considerações esclarecedoras, auxiliando na visibilização da vontade concreta da Administração Pública. O desafio se apresenta quando o princípio é tido como base única na imposição sancionatória, como acontece com os dispositivos da lei 8112, de 1990, antes citados, ou com o art. 11 da lei 8429, de 1992 (em sua redação anterior à lei 14.230, de 2021).

Para o autor, tal comportamento está ligado à dificuldade prática do legislador constituinte em elaborar redações mais precisas quando se refere a temas delicados, em razão da ausência de consenso político para a elaboração de definições mais precisas, segundo Sundfeld5. Foi o que teria acontecido com o texto trazido no caput do art. 11 da lei 8.429/92, segundo ele (2017, p. 214):

Esse texto, aparentemente inócuo para inibir comportamentos, por conta da extrema vagueza do que estava se considerando ilícito, acabou servindo, no decorrer dos anos, como fundamento de maior parte das ações de improbidade administrativa propostas pela corporação contra agentes públicos sempre divulgadas amplamente pela imprensa, em busca de apoio da opinião pública. Como forma de aumentar seu poder, a corporação lançou-se em um grande esforço de construção de sentido sobre o texto normativo quase sem conteúdo. 

Por essa ou outras razões, a crítica a ela subjacente, e com a qual concordamos, reside na ideia de que o fim maior que se busca com uma política sancionadora (desestimular condutas) não será alcançado quando o texto legal não consegue ser claro o suficiente sobre qual(is) conduta(s) busca-se impedir. E pior, gerará incongruências reais e injustiças em sua aplicação prática.

A redação original do citado art. 11, na lei 8.429, de 1992, ao constituir ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão que atente contra os princípios da administração pública, dentre eles a moralidade administrativa, faleceu no seu intento de estimular condutas probas por parte de seus agentes quando não esclarece, de fato, o que seria essa tal de moralidade.

Vale lembre que o objetivo de "estimular condutas probas" foi assumido expressamente pelo legislador na Exposição de Motivos que acompanhou a proposta do que seria a então Lei de Improbidade Administrativa6:

Sabendo Vossa Excelência que uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País, é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal adequado - o devido processo legal - impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem, no entanto, suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do estado de Direito. (...) Com relação ao procedimento tendente a apurar os casos de enriquecimento ilícito, está ele disciplinado com a devida minúcia, não apenas para orientar os aplicadores de lei, como também para garantir ao Estado a certeza de sua correta e criteriosa observância, sem margem a desmandos e arbitrariedades. 

O mesmo acontece com o antes citado art. 116, inciso IX, da lei 8112, de 1990 e com outras tantas legislações estatutárias que se utilizam da moralidade administrativa para exigir a adoção de condutas e comportamentos que sequer a Administração Pública sabe, com clareza, quais são. Falta objetividade normativa na definição da tipificação sancionadora, algo inaceitável à luz do que define o próprio princípio da legalidade, sob sua perspectiva material.

Nos ensina Sandro Dezan (2024, p. 225) que não basta à Administração Pública, para a construção de um ilícito administrativo, definir a conduta prescrita em lei anterior, escrita e específica, se essa lei não for certa. A lei deve descrever de forma analítica, clara e inteligível o que, de fato, o órgão sancionador entende como conduta contrária ao ordenamento. A dúvida para nós é: a mera previsão acerca do dever de observância do princípio da moralidade administrativa é suficiente para justificar uma sanção?

Eduardo Bittar (2013, p. 59) nos lembra da vagueza do princípio da moralidade a partir da intimidade do direito com a moral. Segundo ele, a previsão constitucional exposta no art. 37, caput, destaca a relevância do princípio moral para a organização administrativa e credibilidade cívica dos serviços públicos. Ocorre que, na prática, o que tem acontecido é que "O que é moralmente recomendável tornou-se juridicamente exigível do funcionalismo público.", sem, entretanto, sabermos ao certo o que é moralmente aceitável. A abstratividade do conceito retira a clareza da regra.

De um modo geral, a utilização dos princípios administrativos para fundamentar as decisões sancionadoras ou até mesmo condenações por ato de improbidade administrativa stricto sensu gera importantes questionamentos. Ao nosso ver, o mais importante dentre eles é o aumento de esforço argumentativo por parte do órgão sancionador.

Reflexão trazida por Carlos Ari Sundfeld em relação à aplicação dos princípios no que se refere aos limites de competência dos aplicadores para suprir as lacunas legislativas, demonstra a dificuldade da interpretação de princípios com alto grau de subjetividade.7

Frise-se que não se entende impossível o sancionamento quando da violação a princípio administrativo ou ainda com base em textos genéricos que tragam em seu corpo conceitos indeterminados.  O que se pretende endossar é que a interpretação seja realizada observando parâmetros objetivos, de modo a cumprir as normas constitucionais vigentes. Nada além do que já nos indicava o princípio da segurança jurídica8, agora reforçado também pelo disposto no art. 20 da LINDB.

Incorporando posicionamento de Carlos Ari Sundfeld, verifica-se que o legislador, ao criar uma lei muito aberta, com conceitos vagos, transfere ao aplicador o ônus regulatório, já que será responsável pela elaboração das políticas sancionatórias.9 Nessa atividade, impõe-se atenção ao consequencialismo, ou melhor, às consequências práticas que justifiquem a imposição de sanção em razão da aplicação isolada do princípio da moralidade administrativa, por exemplo. É o que nos impõe a LINDB, mas sem ares de grande novidade10.

A posição de regulador assumida pelo aplicador nos casos em que a legislação é vaga vem agregada ao ônus de fundamentar suas decisões com mais profundidade, justificando as alternativas possíveis e as escolhidas, de modo a deixar claro os motivos que o fizeram chegar àquela decisão. A motivação é dever da Administração nos termos do art. 2°, da lei 8784, de 1999 e "A não motivação em sede de atos decisórios de procedimentos disciplinares torna nula a manifestação administrativa, não havendo fundamento para sua sustentação" (DEZAN, p. 257).

Sob outro olhar, a inexistência de parâmetros objetivos para a caracterização da violação do princípio da moralidade administrativa como fundamento autônomo de decisão sancionatória deve-se também à ausência de conteúdo jurídico do referido princípio.

O conteúdo jurídico é determinante para se delimitar a abrangência de um instituto e estabelecer o que é considerado lícito ou ilícito no seu âmbito de aplicação. Traz em sua essência os elementos e características jurídicas que delineiam determinado princípio de modo a conceder sua descrição objetiva. Possibilita que as partes tenham o conhecimento e possam se manifestar de forma efetiva, atendendo os ditames do devido processo legal substancial.

Pelas características do princípio da moralidade administrativa constata-se a inexistência de seu conteúdo jurídico já que não se mostra possível descrever seus principais caracteres de forma objetiva sem que seja preciso recorrer a valores.  Igualmente não se verifica em seu bojo elementos jurídicos que permitam criar uma definição própria.

Dessa forma, ainda que se concorde com a posição de centralidade ocupada pelo princípio da moralidade administrativa, tal posição por si só não autoriza uma condenação sem que haja uma fundamentação específica e objetiva acerca da violação autônoma do princípio da moralidade administrativa. Meramente afirmar que o ato é imoral não atende aos preceitos trazidos pelo art. 93, X, da Constituição Federal, por exemplo, além de ferir as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

De igual modo, o fato de o princípio da moralidade administrativa compreender o alicerce de uma administração pública proba não pode ensejar a aplicação de sanção sem que haja uma constatação real e efetiva da irregularidade perpetrada. É impossível que valores e conceitos vagos e imprecisos, como honestidade e bom administrador, ultrapassam os limites de uma interpretação jurídica. Com isso não se quer dissociar a moralidade da boa administração, mas apenas que os critérios para aferição sejam claros, objetivos e contextualizados com a realidade dos fatos e da conduta no caso concreto.

Hely Lopes Meirelles (1998, p. 86), já dizia que a moralidade administrativa constitui pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). Não se trata da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração. Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo autor que o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. A doutrina é magistral, mas não suficiente para fins de justificar a aplicação de sanção in concreto.

De fato, não podemos negar que a moralidade administrativa está intimamente ligada ao conceito do 'bom administrador', que, segundo Franco Sobrinho (1974, p.11), "é aquele que, usando de sua competência legal, se determina não só pelos preceitos vigentes, mas também pela moral comum". E explica o mesmo autor: "Quando usamos da expressão nos seus efeitos, é para admitir a lei como regra comum e medida ajustada. Falando, contudo, de boa administração, referimo-nos subjetivamente a critérios morais que, de uma maneira ou de outra, dão valor jurídico à vontade psicológica do administrador".

Tais lições magistrais trazem clareza conceitual, mas reforçam que, em observância ao sistema jurídico adotado para aplicação de sanções trazido pela Constituição Federal, faz-se necessária a descrição de uma conduta específica e objetiva exposta legalmente associada à uma sanção.

O princípio da moralidade administrativa pode e deve subsidiar a imposição de sanção de forma autônoma, mas para isso a administração sancionadora deve analisar o contexto sob uma perspectiva consequencialista e motivar robustamente sua decisão com praticidade e pragmaticidade a fim de reduzir a subjetividade imposta pelo legislador. 

Referências 

BITTAR, Eduardo. Curso de E´tica Juri´dica: E´tica geral e profissional. 10. ed.: Saraiva, 2013.

DEZAN, Sandro. Fundamentos de Direito Administrativo Disciplinar. 6 º ed. Curitiba: Juruá, 2024.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23ª ed. São Paulo: RT Editora, 1998.

SOBRINHO, Manuel de Oliveira Franco. O Controle da Moralidade Administrativa, São Paulo, 1974.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2.ed. 2. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2017.

__________

1 Art. 116, inciso IX, lei 8.112, de 1990.

2 Exemplificativamente a lei 8112, de 1990, em seu art.132, IV.

3 Art. 20, do decreto-lei de 1942.

4 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2.ed. 2. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2017.

5 "Afinal, para vários assuntos espinhosos a linguagem da Constituição é extra, enquanto o significado do direito à vida nem o legislador conseguir precisar totalmente. E qual a dificuldade? A falta de consenso e de apoio político para textos mais extados com certeza tem algo a ver com isso." (SUNDFELD, 2017, p. 213).

6 Exposição de Motivos nº em. GM/SAA/0388, de 14 de agosto de 1991, do Senhor Ministro de Estado da Justiça. Disponível aqui. Acesso em 19 mai. 2024. 

7 "O Judiciário tem, claro, seu papel no controle das falhas e omissões das autoridades legislativas e administrativas, mas ele não é o Legislativo nem a Administração e não pode substitui-los em tudo. Por isto não há solução judicial para todos os problemas jurídicos; o Judiciário não tem como construir todo e qualquer direito, não lhe cabe construir, não é adequado que construa." (SUNDFELD, 2017, p. 217).

8 Segundo Sandro Dezan (2024, p.285), "qualquer norma, ação ou omissão administrativa que crie insegurança as relações entre admiisstração e administrado, administração e servidor público deve ser reavaliada para buscar sua interpretação de forma a repelir inseguranças, instabilidades e dubiedades.

9 "Os parlamentares, sem querer tomar partido claro sobre o que devia, ou não, ser condenado, mas precisando mostrar severidade (para não serem acusados de proteger autoridades malandras), votaram uma lei mandado punir algo indefinido: a violação dos princípios da administração (...) Aos juízes cabia, a partir desses vagos termos, elaborar uma política sobre repressão de infrações funcionais; e, para isso, teriam de resolver por uma dureza maior ou menor na aplicação das sanções. Enfim, teriam que assumir o ônus que o legislador lhes repassou." (SUNDFELD, 2017, p. 226-227).

10 A jurisprudência já se utilizava da percepção consequencial para modular efeitos em discussões de validade de legislação ou como forma de equilibrar os impactos das decisões. A título exemplificativo, o RE 134509, de relatoria do Min. Marco Aurélio, julgado em 29/05/2002 e publicado em 13/09/2002.