Dispute board, governança e políticas públicas: uma tríade que pode dar (muito) certo
terça-feira, 23 de janeiro de 2024
Atualizado às 08:26
A alternatividade na resolução de conflitos pela Administração Pública já não causa estranheza1. Fazendo uma rápida digressão histórica, podemos dizer que o conceito de dispute board (DR) surgiu no ambiente corporativo norte americano, na década de 19702 e se popularizou depois que o Banco Mundial passou a exigir esta previsão para a concessão de financiamentos3. A ideia sustenta-se basicamente na criação de um comitê, formado por especialistas imparciais, que tem a atribuição de resolver disputas, durante todo o desenvolvimento de um projeto4, normalmente de alta complexidade e de longa duração.
O dispute board pode ser instituído sob diversos modelos. Dispute review board (DRB), quando não impõe decisões, mas fornece apenas sugestões para a resolução do conflito; o Dispute adjudication board (DAB), com capacidade decisória e o Combined dispute board (CDB), que mescla as possibilidades dos modelos anteriores. Com a rápida evolução, já se admite a utilização do online dispute resolution (ODR).
Seguindo a mesma lógica de consensualidade, os ODRs são métodos de resolução de conflitos sob uma formatação digital. Eles surgiram nos anos 1990, em decorrência do crescimento do comércio eletrônico atrelado à popularização da internet, e ainda é um conceito pouco difundido na Administração Pública.
Segundo Carolina Moulin (2021), a aplicação de tecnologia à prática jurídica não é novidade no Brasil, o diferencial do contínuo desenvolvimento de técnicas de ODR se baseia no potencial da tecnologia de tornar a resolução de conflitos não apenas mais rápida e menos dispendiosa, mas de introduzir novas configurações capazes de melhorar a qualidade do processo, incrementando a percepção de justiça procedimental pelas partes e ampliando o acesso à justiça.
De fato, a solução ou prevenção de conflitos já assumiu seu espaço como instrumento benéfico à Administração Pública, logo a institucionalização de comitê de prevenção e solução de disputa se coloca como mais numa perspectiva que, agora, alia-se à tecnologia para alcançar um novo patamar na entrega de valor público5. Assume, assim, um lugar de destaque como boa prática de governança nas contratações públicas.
Quando instituídos em espaços virtuais, os métodos de resolução digital de controvérsias concedem às partes uma variedade de ferramentas para solucionar a disputa (LODDER e ZELEZNIKOW, 2005, p. 300), plataformas baseadas na internet que permitem às partes completarem o processo de tratamento de um conflito (SELA, 2018, p. 93).
No cenário brasileiro de contratações públicas, a previsão legal está expressa na lei 14.133/2021. Com o propósito de conceder maior legitimidade ao instituto, segurança jurídica e aplicabilidade entre as partes, o legislador autorizou a viabilidade de se resolver uma disputa de forma consensual e administrativa. Nesse contexto, o DB seria mais um modo de compor de conflitos.
Para melhor uniformização procedimental seria interessante uma regulamentação geral sobre o instituto, mas enquanto isso não acontece, a forma de aplicação e funcionamento do DB devem estar previstos minuciosamente no edital do certame e, consequentemente, e reproduzido em cláusula contratual.
Ainda não há regulamentação a nível federal sobre o assunto. O que verificamos é que alguns entes federativos partiram na frente e regulamentaram a utilização do Dispute Board. Como exemplo, cita-se: Lei Municipal nº 16.873/2018 (São Paulo); lei municipal 11.241/2020 (Belo Horizonte); lei municipal 12.810/2021 (Porto Alegre); lei 15.812/2022 e decreto estadual 56.423 (Rio Grande do Sul).
A estratégia principal que qualifica o instrumento do Dispute Board como uma boa prática de governança refere-se ao formato com o qual ele é desenvolvido. Vejamos: a mera exigência de que as próprias partes contratuais selecionem os seus representantes, dentre especialistas imparciais à demanda, é um aspecto importante. Essa opção mitiga o risco de assimetria de informações e previne a ocorrência de conflitos de interesses no momento da construção da solução consensual entre as partes.
Instaura-se uma hipótese de negociação sustentável na medida em que, dessa relação entre os representantes especialistas das partes e o fiscal e/ou gestor do contrato incrementa-se a segurança e a diversidade de ideias na formatação da decisão final, evitando-se, muitas vezes, aumento de despesa pública desnecessária e investimento inadequados.
Apesar dos benefícios que a solução consensual, inclusive quando aliada à tecnologia, podem incrementar ao desenvolvimento de políticas públicas6 bem estruturadas, percebemos que alguns gestores ainda não têm utilizado o DB, mesmo quando previsto em edital. Alega-se a existência de riscos em razão da ausência de regulamentação e a questão da autoexecutoriedade de decisões administrativas.
Não verificamos o DB como uma hipótese de inobservância do devido processo em face de sua "autoexecutoriedade decisória" já que previsão legal admite a consensualidade em controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.
Concluir que a solução do conflito compactaria uma decisão administrativa sem que a autoridade máxima, ou órgãos internos competentes, decidissem é uma interpretação apressada e até equivocada. Lembremo-nos que a Administração Pública também indica representante que compõe o comitê de resolução de conflitos. Além disso, pressupõe-se que todas as regras que o envolvem estarão previamente descritas em edital público.
Pois bem, tendo como propósito assegurar a lisura na execução do objeto contratual, o DB possibilita que conflitos sejam solucionados de forma preventiva e evita a judicialização de demandas. Evita-se, ainda, a morosidade decisória7, diminuindo possíveis custos indiretos, principalmente com a atuação desnecessária de agentes públicos.
A ausência da regulamentação a nível federal, nos parece, que em nada prejudica sua utilização, já que uma previsão editalícia adequada supriria a necessidade do detalhamento procedimental que se esperara da normatização infralegal.
Referências
LODDER, Arno; ZELEZNIKOW, John. Developing an Online Dispute Resolution Environment: dialogue tools and negotiation support systems in a three-step model. Harvard Negotiation Law Review, v. 10, p. 287-337, 2005.
MOULIN, C. S. A. Métodos de resolução digital de controvérsias: estado da arte de suas aplicações e desafios. Revista Direito GV, v. 17, n. 1, p. e2108, 2021.
SELA, Ayelet. Can computers be fair? How automated and human-powered online dispute resolution affect procedural justice in mediation and arbitration. Ohio State Journal on Dispute Resolution, v. 33, n. 1, p. 91-148, 2018.
SILVA, Vládia Pompeu. Políticas públicas, conformação e efetivação de direitos. Editora Foco, 2022.
CARVALHO, Thaís Strozzi Coutinho. Comitê de Resolução e Prevenção de Conflitos (Dispute Board) nos Contratos de Concessão de Infraestrutura de Transportes. Monografia de Mestrado - INSTITUTO BRASILIENSE DE DIREITO PÚBLICO - 2022.
RIBEIRO, Ana Paula Brandão e RODRIGUES, Isabella Carolina Miranda. Os Dispute Boards no Direito Brasileiro. REVISTA DIREITO MACKENZIE v. 9, n. 2, p. 129-159.
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1 A lei 13.140, de 26 de junho de 2015, já vinha dispondo sobre a sobre a mediação e a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Bem antes, a lei 9.307, de 26 de setembro de 1996, previa que "A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis", logo em no primeiro artigo. O Código de Processo Civil, em seu art. 3, parágrafo 2, demonstra até uma certa imposição na aplicação, quando nos expõe que " O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos."
2-3 Nesse sentido, a legislação brasileira para contratos administrativos se apresenta bastante favorável à utilização de mecanismos extrajudiciais de solução de controvérsias, assim genericamente denominados, conforme disposição da norma do §5º do art. 42 da Lei n. 8.666/1993 (BRASIL, 1993), o qual permite sejam adotadas cláusulas contendo meios alternativos à jurisdição estatal desde que exigidos pela instituição responsável pelo financiamento do projeto como condição para sua aprovação (GALVÃO, 2012). Art. 42. Nas concorrências de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes. § 5o Para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior (BRASIL, 1993). (...) O mesmo se diga quanto à Lei n. 8.987/1995 (BRASIL, 1995) que em seu art. 23-A também autorizou a Administração Pública a celebrar contratos de concessão de serviços públicos que prevejam cláusulas de mecanismos privados para resolução de disputas, incluindo-se aqui os dispute boards, e quanto à Lei n. 11.079/2004 (BRASIL, 2004), art. 11, III, para os contratos de parcerias público-privadas: Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996. Art. 11. O instrumento convocatório conterá minuta do contrato, indicará expressamente a submissão da licitação às normas desta Lei e observará, no que couber, os §§ 3º e 4º do art. 15, os arts. 18, 19 e 21 da Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, podendo ainda prever: III - o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato (BRASIL, 2004). (Dispute Board no Direito Brasileiro, REVISTA DIREITO MACKENZIE v. 9, n. 2, p. 128-159) Lei 13.140/2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; altera a Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972; e revoga o § 2º do art. 6º da Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997.
4 Alguns exemplos de sua aplicação foi a construção do aeroporto de Hong Kong, a expansão do Canal do Panamá e, no Brasil, podemos citar a construção da Linha 4-Amarela do metrô de São Paulo.
5 Segundo o decreto 9.203, de 22 de novembro de 2017, entende-se por valor público, "produtos e resultados gerados, preservados ou entregues pelas atividades de uma organização que representem respostas efetivas e úteis às necessidades ou às demandas de interesse público e modifiquem aspectos do conjunto da sociedade ou de alguns grupos específicos reconhecidos como destinatários legítimos de bens e serviços públicos."
6 "Processo que direciona o agir do governo e a atuação da administração pública, estruturada pelo direito e conformada a partir do inter-relacionamento entre Estado e sociedade, com a finalidade de concretizar acesso a dignidade humana a todos os cidadãos" (SILVA, 2022, P. 33)
7 "Igualmente, podemos dizer que existem benefícios intangíveis próprios da mera presença do DB que influenciam em uma atitude de cooperação das partes, em uma atitude proativa na administração dos conflitos; mediante a oportuna intervenção do DB se evita que as controvérsias entre as partes originem conflitos maiores, como poderia ser a paralisação da obra; permite-se agilizar a resolução das controvérsias em contratos de larga execução e complexidade técnica, especialmente em obras de engenharia e de construção; atuam tão logo são solicitados de forma ágil; estão familiarizados com o desenvolvimento da obra, a prova dos fatos está à mão, pelo que tudo isso leva as recomendações ou decisões do DB a serem, na grande maioria dos casos, acatadas e aceitas pelas partes, com o que se evita ir à arbitragem ou à litigação" (VALDÉS, 2012, p. 128, tradução nossa). (Do original:. "Igualmente, podemos decir que existen beneficios intangibles propios de la sola presencia del DB que influyen en una actitud de cooperación de las partes, en una actitud pro-activa en la administración de los conflictos; mediante la oportuna intervención del DB se evita que las controversias de las partes deriven en conflictos de mayor entidad, como podría ser la paralización de la obra; se permite agilizar la resolución de las controversias en contratos de larga ejecución y complejidad técnica, especialmente en obras de ingeniería y de la construcción; actúan tan pronto son requeridos en forma ágil; están interiorizados del desarrollo de la obra, la prueba de los hechos está a la mano, por todo lo cual lleva a que las recomendaciones o decisiones del DB son en la gran mayoría de los casos acatadas o aceptadas por las partes, con lo que se evita ir a arbitraje o a litigación." Disponível aqui.