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"Sigilo de 100 anos" e a tênue linha entre a transparência, a publicidade e a proteção de dados

terça-feira, 7 de março de 2023

Atualizado às 08:11

Logo em seu primeiro dia de governo, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva -cumprindo uma promessa de sua campanha eleitoral - assinou despacho1 determinando que a Controladoria-Geral da União (CGU) reavaliasse as decisões do ex-presidente Jair Bolsonaro que impuseram sigilo a documentos e informações da Administração Pública.

O tema, que ficou informalmente conhecido como os "Sigilo de 100 anos", joga luz sobre alguns aspectos jurídicos relevantes que merecem ser debatidos, especialmente por àqueles que, como nós, preocupam-se com a tênue linha que permeia valores como a transparência, a publicidade e a necessária proteção dos dados, públicos e privados.

À partida, lembremo-nos da necessidade de se reafirmar o valor da transparência como base de sustentação essencial do Estado Democrático de Direito.

Não podem existir dúvidas de que a transparência deve ser a regra quando estamos tratando da atuação estatal democrática. Trata-se, inclusive, de um dever estatal que decorre do direito fundamental à informação, abarcando o direito de acesso à informação administrativa, cujos titulares são todos os indivíduos. A transparência emerge, pois, como um princípio constitucional implícito, que dá o substrato material ao princípio da publicidade para que este se torne apto a atender às modernas demandas de um Estado Democrático.

Por outro lado, existem algumas exceções a essa transparência, trazidas expressamente pelo próprio ordenamento jurídico e plenamente justificáveis por protegerem outros valores, bens ou direitos constitucionalmente reconhecidos. Ou seja, essas excepcionalidades constituem resultado de sopesamento, prévio e abstrato, realizado pelo próprio legislador entre a transparência e aqueles outros valores, bens ou direitos constitucionais que com ela tenham entrado em conflito.

A regra prevista no inciso I do § 1º do art. 31, da Lei de Acesso à Informação - LAI (lei 12.527/2011), nos traz um exemplo quando afirma que "O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais". Dispõe então que tais informações "terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem."

Ao que parece, portanto, que a regra estabelecida prevê que o direito à privacidade, à honra e à imagem do indivíduo (e, tem se entendido, também, à proteção de dados pessoais) terão prevalência sobre o dever de transparência estatal e, consequentemente, sobre o direito fundamental de acesso à informação administrativa do qual esse dever decorre. Entendeu o legislador, de forma abstrata e a priori, que as razões que justificam a proteção da privacidade, da honra e da imagem do indivíduo deveriam prevalecer sobre as razões que justificam o direito de acesso à informação administrativa. Dito de outro modo, a proteção dessa camada da personalidade (vida privada, honra e imagem) é tão importante, que tem "peso suficiente" para afastar os fundamentos que garantem a transparência pública.

O art. 31, § 1º, inciso I da LAI traz, pois, o resultado do sopesamento realizado pelo legislador entre transparência, publicidade e direito de acesso à informação administrativa, de um lado, e privacidade, honra e imagem do indivíduo, de outro.

Mas no caso dos "Sigilos de 100 anos" existem ainda dois pontos jurídicos relevantes que precisam ser levados em consideração.

O primeiro deles diz respeito à verificação dos documentos aos quais foi imposto sigilo para entender se eles se subsumem à exceção prevista no inciso I do § 1º do art. 31 da LAI. Ou seja, a análise que parece caber à CGU refere-se exatamente a esta ponderação: as informações protegidas em cada caso analisado efetivamente se enquadram naquelas que justificaram o resultado do sopesamento realizado pelo legislador em prol da proteção da vida privada, honra e imagem da pessoa e em desfavor da transparência e do direito de acesso à informação pública? Essa análise deve ser feita documento a documento, buscando aferir se estão realmente presentes as razões que justificam o acionamento da excepcionalidade.

O segundo ponto a ser considerado pela CGU é, entretanto, um pouco mais complexo. O inciso I do § 1º do art. 31 pretende proteger a vida privada, a honra e a intimidade de quaisquer indivíduos cujas informações possam estar vinculadas em documentos de posse do Estado ou que possam ser objeto de pedidos baseados no direito de acesso à informação administrativa. No caso dos "Sigilos de 100 anos", ao que tudo indica, alguns dos indivíduos cuja camada de personalidade (vida privada, honra e imagem) se busca proteger são agentes públicos, especialmente servidores públicos em sentido lato.

Os servidores públicos, via de regra, mantém com o Estado um vínculo que se difere muito daquelas relações travadas entre o Estado e o administrado comum. De fato, a relação entre o Estado e servidor é uma relação jurídico-administrativa que se caracteriza pela duradoura e efetiva inserção do indivíduo na esfera organizativa da Administração Pública, e em razão da qual, esse sujeito resta submetido a um regime jurídico peculiar que se traduz em um tratamento especial de sua liberdade e de seus direitos fundamentais, assim como de suas garantias institucionais, de forma adequada aos fins típicos de sua relação institucional2. Daí estarem submetidos a uma relação de sujeição especial (e não em uma relação de sujeição geral, como os demais administrados).

Ou seja, a própria dinâmica da relação entre o servidor e o Estado - que envolve tanto a posição de maior proximidade que esse servidor ocupa, por integrar o círculo interno da Administração e fazer parte da própria organização administrativa, quanto a maior intensidade da supremacia da Administração, que responde à necessidade do aumento da operatividade na prestação do serviço público, na organização estatal e no atendimento do interesse público geral - distancia tal relação daquela que é travada entre o Estado e o administrado comum.

Ademais, a integração entre o servidor e o Estado costuma ser tão arraigada, que ele próprio consegue nitidamente se perceber dentro daquela organização, seja em razão da necessidade do cumprimento de determinadas pautas de conduta, seja em função da necessidade de respeito a certos poderes (como o hierárquico ou o disciplinar, que acabam por, em alguma medida, embaraçar a independência e a criatividade do sujeito).

Ou seja, pelo fato de se imiscuir na organização administrativa de forma efetiva e duradoura, o agente público se submete a uma realidade jurídica que, apesar de não desconhecer ou desconsiderar seus direitos fundamentais e suas liberdades, em certa medida, pode funcionalizar o exercício desses direitos e liberdades de forma a garantir que o fim da organização administrativa se cumpra3, de forma a tornar possível o cuidado dos interesses gerais da comunidade.

Nesse sentido é que o conceito das relações especiais de sujeição pode acabar desempenhando uma função argumentativa importante na fundamentação de decisões restritivas de direitos no âmbito de relações funcionais. Partindo-se da premissa de que toda restrição deve atender à exigência de proporcionalidade, a noção de relação de sujeição especial pode funcionar como critério argumentativo racional e constitucionalmente adequado para orientar a ponderação de interesses.4

Ou seja, é possível pensar que existem alguns bens e valores que são protegidos pela Constituição e que fundamentam a existência dessa relação entre o Estado e os servidores (e é exatamente em razão desses bens e valores protegidos constitucionalmente que essa relação tem um status especial): por exemplo, a organização administrativa, de forma geral; a funcionalidade da atuação estatal para atingir sua finalidade primordial de tutela do interesse público; o dever de boa administração; a moralidade; a probidade administrativa e a responsabilidade funcional (estas últimas retiradas especialmente das regras relacionadas ao regime disciplinar aplicado à relação funcional). São esses bens ou valores ligados ao atingimento dos fins estatais (e que também são protegidos constitucionalmente) que podem eventualmente se chocar com os direitos fundamentais dos servidores, no âmbito da sua relação com o Estado.  Parece pacífica, pois, a possibilidade de existirem restrições a direitos fundamentais dos servidores públicos com fundamento na relação funcional, como relação de sujeição especial que é (a partir daqueles bens e valores constitucionais citados).

Noutras palavras, é possível se afirmar que o âmbito de proteção definitivo de alguns dos direitos fundamentais dos servidores públicos no âmbito da relação funcional podem contar com âmbito de proteção efetivo menos alargado do que ocorre no âmbito de relações de sujeição geral.5

E esse parece ser o ponto que se aplica à análise dos "Sigilos de 100 anos".

Ao que parece, nos casos em que o sigilo tiver sido imposto com o intuito de proteger a vida privada, a honra ou a imagem de indivíduos que mantém com o Estado uma relação especial de sujeição,  o próprio conceito da relação especial de sujeição pode desempenhar uma função argumentativa importante na fundamentação de decisões.

Isso quer dizer que, nesses casos, àquele sopesamento realizado pelo legislador em abstrato e a priori, e à identificação se o caso concreto a ele se amolda, parece essencial acrescentar uma análise subsequente: a própria existência da relação entre o Estado e o servidor público.

Noutras palavras, parece necessário acrescentar ao processo de ponderação todos aqueles bens e valores citados acima e os deles decorrentes que fundamentam a própria existência da relação entre o Estado e o servidor público (a organização administrativa, de forma geral, a funcionalidade da atuação estatal para atingir sua finalidade primordial de tutela do interesse público, o dever de boa administração, a moralidade, a probidade administrativa e a responsabilidade funcional). Ou seja, esses bens e valores devem passar a ser considerados no processo de ponderação. Daí se afirmar que, no caso concreto, pode ser possível que, no processo de análise e ponderação, verifique-se que o âmbito de proteção efetivo do direito fundamental à proteção da vida privada, da honra ou da imagem desses servidores seja menos alargado do que ocorre no âmbito de relações de sujeição geral.

__________

1 Conforme Despacho do Presidente da República, publicado no Diário Oficial da União de 02.01.2023. Disponível em . Acesso em 19 jan 2023.

2 Tomamos aqui emprestado, em livre tradução, por sua completude e clareza o conceito apresentado pelo administrativista espanhol Mariano López Benítez (Naturaleza y presupuestos constitucionales de las relaciones especiales de sujeción, 1a ed. Córdoba: Madrid: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Córdoba; Civitas, 1994, p. 161 e 162).

3 Num exemplo quase anedótico: impedir que um servidor frequente um curso que acontece, todos os dias, todos os dias, durante boa parte do horário do expediente é funcionalizar o exercício do seu direito à educação à necessidade do cumprimento da finalidade da organização administrativa (é necessário que, durante o horário do expediente, o servidor esteja disponível para exercer sua atividade pública).

4 Nesse sentido, veja-se a doutrina de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. As restrições aos direitos fundamentais nas relações especiais de sujeição. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio (Orgs.). Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 603 a 657. No entanto, a autora adverte a necessidade de que a categoria seja empregada com muita prudência para evitar arbitrariedades e restrições odiosas as direitos fundamentais, acima dos limites justificáveis. Destaca que as relações de sujeição especial só podem justificar restrições a direitos fundamentais na medida em que buscam promover bem ou valor constitucionalmente legítimo a elas relacionado - por isso mesmo, as limitações aos direitos fundamentais daí decorrentes não precisam estar previstas de forma expressa na Constituição, devendo ser aferida sua constitucionalidade à luz da teoria geral das restrições aos direitos fundamentais (devendo, pois, serem considerados nas ponderações que envolvem esse processo: a relevância do bem promovido pela instituição na qual se insere a relação de sujeição especial, o peso abstrato do direito fundamental atingido e a gravidade da restrição imposta a ele). A ideia da relação de sujeição especial pode funcionar, pois, como um argumento acessório na apreciação da proporcionalidade das medidas que afetam os direitos fundamentais.

5 Análise mais aprofundada do tema em: GONTIJO, Danielly Cristina Araújo Gontijo, A (re)configuração da privacidade em ambiente laboral público, em especial quanto às medidas de controle interno estatais: uma "reabilitação" democrática das relações especiais de poder?, Tese de doutoramento, Faculdade de Direito - Universidade do Porto, Porto, 2021.