Desinformação e descrença na sociedade líquida: Um diálogo entre teóricos modernos e Zygmunt Bauman
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Atualizado às 07:50
Os pensamentos de Lee McIntyre, Ralph Keyes e Matthew D'Ancona sobre a era da pós-verdade oferecem uma visão incisiva sobre o cenário atual de desinformação, onde a verdade frequentemente sucumbe às crenças e emoções. McIntyre sublinha a relativização da ciência, enquanto Keyes e D'Ancona enfocam a aceitação social da desonestidade e a guerra contra a verdade, respectivamente. Integrando essas ideias com a teoria da "modernidade líquida" de Zygmunt Bauman, percebe-se uma sociedade em constante mudança, onde as relações e verdades são efêmeras, levando a uma descrença generalizada.
Esta descrença pode ser vista como um sintoma de que algo fundamental na estrutura da sociedade não está funcionando. Bauman sugere que na modernidade líquida, a falta de solidez nas instituições e nas relações humanas conduz a uma permanente incerteza, alimentando o ciclo de desinformação. O fenômeno da pós-verdade, portanto, não é apenas uma crise de informação, mas um reflexo mais amplo de uma crise social onde verdades são consumíveis e adaptáveis ao conforto emocional e ideológico, mais do que ancoradas em fatos.
Desinformação na era digital: Uma análise jurídica e filosófica
Lee McIntyre - "Na era da pós-verdade, a ciência é apenas mais uma opinião.
Desinformação pode ser compreendida sob diversas ópticas: jurídica, filosófica e técnica. Juridicamente, desinformação refere-se ao ato intencional de disseminar informações falsas ou enganosas, muitas vezes visando manipular opiniões ou comportamentos. Filosoficamente, trata-se de um problema ético, uma vez que desafia a noção de verdade e a integridade do discurso público. Tecnicamente, desinformação é definida pela criação e circulação de conteúdo falso ou enganoso através de plataformas digitais, destacando-se em especial sua escalabilidade e impacto.
Matthew D'Ancona dizia que " a pós-verdade é a tapeçaria na qual os grandes mentirosos florescem."
No contexto da era da informação, a desinformação torna-se uma questão crucial devido à facilidade e velocidade com que as informações são disseminadas. Isso implica desafios significativos para as sociedades democráticas, onde a informação correta é fundamental para a tomada de decisões conscientes por parte dos cidadãos. Assim, o combate à desinformação não é apenas um desafio técnico ou legal, mas também uma questão profundamente enraizada nos valores éticos e democráticos, exigindo uma reflexão contínua sobre como preservar a verdade e a integridade na comunicação pública.
Desconstrução da verdade: A era do caos da linguagem
Vivemos uma era caracterizada por um verdadeiro caos da linguagem, onde as formas tradicionais de se informar foram usurpadas por uma torrente incessante de fragmentos de informação, muitas vezes descontextualizados e maliciosos. Os sinônimos de 'fake news' e desinformação, como notícias falsas, informações enganosas ou conteúdo fraudulento, apenas arranham a superfície deste fenômeno complexo. A manipulação da verdade não se restringe apenas à criação de falsidades, mas também à curadoria maliciosa de verdades parciais. Informações verdadeiras são recortadas e manipuladas, inseridas em novos contextos que lhes conferem novos significados, frequentemente distorcidos. No ínterim, a sociedade se afasta dos fóruns de notícias oficiais, optando por consumir essas partículas enganosas em plataformas como grupos de WhatsApp, onde a rapidez da partilha supera a verificação da veracidade. Reconheço que esta é uma questão de ética na informação que desafia a integridade de nossa democracia e exige uma resposta tanto cultural quanto legal para reverter a maré de desinformação e restaurar a ordem no discurso público.
Ralph Keyes costumava dizer que "Na era da pós-verdade, os exageros são encorajados, e mentir é uma questão de curso."
O fenômeno da pós-verdade reflete uma era onde as notícias falsas encontram terreno fértil nas predisposições dos leitores. Neste contexto, as pessoas tendem a abraçar informações que ressoam com suas crenças pré-concebidas, muitas vezes ancoradas em valores políticos ou sociais profundos. A análise crítica é frequentemente substituída por uma adesão quase sectária a ideias que confirmam essas crenças, fomentando um ciclo de conspiração que se perpetua de indivíduo para indivíduo. Assim, a verdade objetiva é obscurecida, dando lugar a uma realidade construída que prioriza o conforto emocional e ideológico em detrimento dos fatos.
Na perspectiva de Zygmunt Bauman, a era atual é marcada por uma polarização exacerbada e uma falta generalizada de transparência, o que ressoa profundamente com o sentimento da população brasileira de que "algo não está funcionando". A teoria de Bauman sobre a modernidade líquida sugere que as estruturas flexíveis e fluidas da sociedade facilitam a incerteza e a desconfiança, especialmente em relação aos três poderes. Uma maior transparência seria, portanto, crucial para reconstruir a confiança pública e fortalecer o tecido social, assegurando que os cidadãos se sintam parte de um processo democrático mais sólido e confiável. Essa transparência não apenas aliviaria a sensação de disfunção, mas também promoveria uma maior responsabilidade e engajamento cívico, elementos vitais para a estabilidade e a saúde de qualquer democracia.
Ah, as vozes clamam, com um toque de magnanimidade, que deveríamos abraçar a gloriosa liberdade de deixar os extremistas ineptos inundar nossas redes com seus delírios midiáticos. Afinal, defendem eles, essas notícias vampirescas que sugam nosso conhecimento, ao serem expostas ao sol, não acabam por desidratar-se, murchando sob o escrutínio público? Talvez silenciá-las apenas engorde o monstro do vitimismo entre as falanges de gritos. Ah, puna-se os crimes, mas não toquem no sagrado direito de repetir mentiras até que se tornem verdades, não é mesmo? Mas então, qual seria a solução?
Deixemos todos os profetas do absurdo transmitir suas fábulas encantadas em nome da liberdade de expressão. Não seria majestoso observar como as teorias mais mirabolantes florescem sob o holofote do debate público? Afinal, na arena do absurdo, quem precisa de fatos quando se tem as pseudo notícias para inflamar a opinião pública para moldar a realidade à imagem de cada um? Continuemos, então, a acolher os mestres da distorção, os arautos do caos informacional, em nossa busca incansável pela verdade - ou por qualquer coisa que possa passar por ela nos dias de hoje. Afinal, quem somos nós para negar o espetáculo da desinformação disfarçada de debate?
Referências
1. Lee McIntyre- Autor de "Post-Truth" (2018), uma exploração filosófica sobre o fenômeno da pós-verdade. Para mais informações sobre seu trabalho, você pode visitar o perfil de Lee McIntyre no site da MIT Press.
2. Ralph Keyes- Escreveu o livro "The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life" (2004), que investiga as causas e consequências da desonestidade na vida contemporânea. Informações adicionais podem ser encontradas na sua página oficial.
3. Matthew D'Ancona- Autor de "Post Truth: The New War on Truth and How to Fight Back" (2017), que discute como a verdade foi desvalorizada na política moderna. Mais detalhes sobre seu livro podem ser acessados aqui.
4. Bauman, Z. (2000). Liquid Modernity. Polity Press.
Esse livro discute conceitos como a modernidade líquida, onde Bauman explora como as mudanças rápidas e fluidas na sociedade afetam a identidade individual e a comunidade. Esta referência lhe proporcionará um embasamento teórico sólido sobre as ideias de Bauman acerca da fluidez das relações sociais e da fragilidade dos laços humanos na contemporaneidade.