Tragédias climáticas: A reforma da arquitetura institucional do país também é uma medida não estrutural de prevenção*
sexta-feira, 5 de julho de 2024
Atualizado em 8 de julho de 2024 06:45
No artigo anterior foi realizada uma reflexão sobre a importância do pacto federativo para o sistema de prevenção aos desastres naturais.1
O objetivo foi destacar que uma verdadeira federação investe em arranjos institucionais aptos a garantir, na maior medida possível, a manutenção da unidade entre os entes em igualdade mínima de condições de vida.
Um desastre como as enchentes do ano de 2024 no Rio Grande do Sul não deve ser visto apenas como um problema local, já que impacta a economia nacional.
As tragédias de grandes proporções apontam para a necessidade de aprimoramento das instituições políticas como um todo. Em um quadro restrito, apontam para fortalecimento do pacto federativo, sob a perspectiva da cooperação.
A federação é um dos principais temas da arquitetura de um Estado. É um dos pontos em que, ainda, possuímos muitas deficiências.
A Constituição Federal de 1988, a par de acertos, não foi capaz de construir uma federação sólida, pois manteve um erro típico dos ciclos constitucionais pretéritos: A excessiva concentração de poderes nas mãos do ente central, a União.
Acerta a doutrina quando demonstra que, no tema da federação, possuímos o nome, mas não a realidade.2
É um quadro de difícil reversão. É como se tivéssemos amarrados a uma cultura - semelhante à do presidencialismo, do sistema eleitoral, dentre outros temas - que não nos permite evoluir para novos paradigmas.
O próprio STF mantém jurisprudência ancorada a um modelo orientado ao fortalecimento de competências da União, cedendo, em poucos casos.
É bem verdade que durante o período da pandemia a jurisprudência do tribunal deu uma guinada no sentido de fortalecer as decisões estaduais e municipais em matéria de proteção da saúde, o que foi louvável. Em outros temas, todavia, a centralização permanece.
A tradição nos ensina que não se pode pensar a federação, sem uma experiência considerável de descentralização territorial do poder político e administrativo, ou seja, sem uma divisão espacial do poder.
A modernidade, sem negar a tradição, nos mostra que não convém pensar a federação sem a noção de cooperação.
A complexidade que o enfrentamento das emergências climáticas exige nos mostra que sem uma atitude de cooperação profícua e permanente entre os entes federativos, na busca de medidas preventivas e repressivas, não chegaremos a lugar algum.
De fato, é inerente ao próprio conceito de federalismo a ideia de colaboração.3
Sendo a federação um dos temas ligados à organização fundamental do Estado, o seu cotejo abre caminho para a seguinte reflexão, de natureza complementar.
As tragédias climáticas somente podem ser eficazmente combatidas quando precedidas de inúmeras medidas efetivas, de caráter estrutural e não estrutural.
As primeiras, de característica estrutural, compreendem o conjunto de obras projetadas pela engenharia, com base em estudos técnicos, aptas a fazer frente, na maior medida possível, às forças da natureza.
Pela lógica do princípio da subsidiariedade, guia maior da federação, há que se construir um plano para coordenar deveres e responsabilidades frente às tarefas colocadas pela Constituição aos entes federados.4 Seu foco é a delimitação das tarefas estatais.
Os entes maiores devem agir subsidiariamente, em situações nas quais os menores não tenham condições técnico-financeiras de tomar as melhores decisões.
Não se pode exigir que um município tenha condições de arcar com medidas estruturais necessárias à preservação de acidentes naturais, quando o custo de implementação for incompatível com a receita municipal.
Por outro lado, há que se combater a inflação municipalista5, de modo a impedir que cidades que não tenham condições de se autossustentar, ao ponto de cumprir suas obrigações constitucionais, permaneçam na condição de entes federados autônomos.
Uma equação complexa, mas que deve ser resolvida. É neste difícil equilíbrio que o federalismo de cooperação deve fazer a diferença.
As tragédias começam nos municípios e, em grande parte, pela omissão das autoridades, inclusive dos órgãos de controle. A má redação dos planos diretores ou o seu não cumprimento explica grande parte dos infortúnios.
Ao ministério Público cabe a crítica de não conseguir realizar uma fiscalização efetiva em diversas situações. O litoral brasileiro que o diga.
Milhares de construções que ameaçam o patrimônio natural, que privam a população do acesso às praias, que permitem a construção desenfreada, independentemente de as cidades cumprirem requisitos mínimos adequados de preservação ambiental, tratamento de esgoto, urbanização racional etc.
Todo este quadro, em maior ou menor grau, contribui para o cenário de emergência climática.
Somente a ação conjunta e coordenada entre os entes federados será capaz de produzir bons resultados em matéria de prevenção, o que demanda canais permanentes de contato entre os entes central e parciais.6
É aí que entram as medidas não estruturais de prevenção, que dizem respeito às ações e políticas públicas, inclusive de caráter normativo, voltadas à prevenção e à redução dos danos.
Aqui surge um grande problema e, ao mesmo tempo, um enorme desafio.
A erosão da política nacional vem perpetuando, cada vez com mais intensidade, o patrimonialismo e o clientelismo na administração da coisa pública. O resultado imediato é impedir que estes canais, tão essenciais à profícua condução da coisa pública, sejam marcados pela racionalidade.
A forma como o orçamento público vem sendo conduzido no país pela via das emendas parlamentares individuais, focadas na perpetuação do poder pelo fortalecimento de currais eleitorais e na busca de uma governabilidade que não é gerada naturalmente pelo sistema de governo presidencialista, confirma esta dura afirmação.
Há que se compreender que a organização político-institucional de um país deve passar a ser considerada como uma das medidas não estruturais de prevenção das tragédias climáticas.
Isso porque em um cenário de irracionalidade política e de falência das instituições não se poderá sequer pensar em boas soluções para problemas complexos, que demandam investimentos vultuosos.
Em suma, o enfrentamento das tragédias climáticas também passa por medidas não estruturais de prevenção, como o próprio aprimoramento do sistema constitucional. Passa, em outros termos, por uma ampla reforma das instituições políticas, como o sistema de governo (presidencialismo, a forma de Estado (federação) e os próprios sistemas partidário e eleitoral.
A adoção de instrumentos de colaboração e de coordenação entre os entes federados só pode funcionar a contento em um ambiente marcado pela racionalidade das instituições políticas.
A deixa já estava nos famosos artigos federalistas, quando Hamilton advertiu: É possível construir um governo federal capaz de regular as questões comuns e preservar a tranquilidade geral, fundado nos objetivos constitucionais. Sua ação dever ser dirigida aos cidadãos e não aos donos do poder.7
Esta é a linha que deve guiar o aprimoramento das instituições brasileiras.
Se apartar deste pensamento é conviver com as tragédias, sem delas se afastar.
*Esta reflexão acadêmica é resultado parcial de pesquisa desenvolvida no âmbito de um projeto de pesquisa institucional intitulado "A promoção de medidas não-estruturais de prevenção das vulnerabilidades dos Municípios da região hidrográfica da bacia do Guaíba com áreas suscetíveis de inundações", financiado pela CAPES, objeto do Edital Emergencial II - n° 28/2022, relacionado ao Programa Emergencial de Prevenção e Enfrentamento de Desastres Relacionados a Emergências Climáticas, Eventos Extremos e Acidentes Ambientais, denominado de "vulnerabilidade social e direitos humanos".
1 Disponível aqui.
2 REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O Federalismo numa Visão Tridimensional do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 131s.
3 DUQUE, Marcelo Schenk. O Federalismo Cooperativo Alemão: tendências atuais. In: MARQUES, Claudia Lima; BENICKE, Christoph; JAEGER JUNIOR, Augusto (Org.). Diálogo Entre o Direito Brasileiro e o Direito Alemão: fundamentos, métodos e desafios do ensino em tempos de cooperação internacional. Porto Alegre: Orquestra, 2011, p. 326ss.
4 Isensee, Josef. Subsidiaritätsprinzip und Verfassungsrecht. Eine Studie über das Regulativ des Verhältnisses von Staat und Gesellschaft. 2. Auflage. Berlin: Duncker & Humblot, 2001, p. 378.
5 Disponível aqui.
6 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 426.
7 HAMILTON, Alexander. In: MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. The Federalist Papers, n.º XVI. From the New York Packet, December 4, 1787. Disponível aqui.