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Configuração institucional e cidadania

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Atualizado às 07:04

Em um cenário de polarização política que beira a irracionalidade, é oportuno questionar: o quão distraídos estamos para as grandes questões?

Olhar para o acessório, no lugar do essencial, tem sido uma tendência nos últimos anos. Isto ajuda a explicar grande parte dos nossos infortúnios.

Quais são os fatores determinantes para que uma Constituição "pegue", ou seja, para que se imponha como norma suprema do ordenamento jurídico e faça a diferença na profícua condução do país?

Uma ideia há muito trabalhada na doutrina, como, por exemplo, a partir dos escritos de Ferdinand Lassalle, sobre a concepção sociológica da Constituição.

Defendia Lassalle que de nada servirá o que se escrever em uma folha de papel, se não se justificar pelos fatores reais e efetivos do poder1. A ideia era dizer que os problemas constitucionais são problemas ligados ao poder e não ao Direito.

Konrad Hesse, em debate memorável, opondo-se à concepção de Lassalle, afirmou que a Constituição pode desenvolver força normativa, impondo-se aos fatores reais de poder na sociedade, caso se verifique no tecido social um claro sentimento de vontade em favor da Constituição (Wille zur Verfassung)2.

Anos mais tarde, Robert Dahl demonstrou que condições políticas e socioeconômicas influenciam, demasiadamente, a efetividade de uma Constituição3.

Estas três visões convergem para tese de que o êxito de um Estado não depende, ou ao menos não em primeira linha, da qualidade jurídica das normas constitucionais, mas sim da disposição da população em fazer valer a Constituição.

Significa que o fato de a população se identificar com a Constituição, ao ponto de não tolerar violações constitucionais, faz toda a diferença. É o que se denomina de enraizamento da Constituição na sociedade, incluindo as elites políticas e jurídicas do país4.

Eu aceito a tese de que o modo como a população de um país reage a desmandos é decisivo. Afinal de contas, trata-se de mensurar o grau de cidadania de um povo, na condição de fundamento de exercício da democracia.

Entretanto, não se pode desconsiderar que a qualidade das normas constitucionais, ou seja, o grau de acerto das suas decisões, faz toda a diferença.

Vale dizer, a aptidão da arquitetura institucional de um país depende do êxito da configuração constitucional vigente.

A tese reflete a figura de um círculo, que pode ser virtuoso ou vicioso.

Uma boa configuração institucional encoraja a boa cidadania, ao passo que uma má configuração desperta o contrário.

Boas instituições projetam o que há de melhor nas pessoas, enquanto as más despertam e potencializam o que há de pior.

Decisões constitucionais equivocadas provocam disfuncionalidades que atingem toda a sociedade. É por esta razão que repensar decisões constitucionais não configura, necessariamente, um atentado à democracia.

Pelo contrário, se a reflexão conduz a aperfeiçoamentos, pode levar à salvação da democracia.

O grande desafio é que o Direito Constitucional não consegue se desatar da atuação humana, o que coloca a questão até que ponto suas normas motivam e determinam comportamentos. Significa indagar se valem apenas hipoteticamente ou realmente5.

Há muito o Brasil enfrenta sérios problemas com a representação política. As eleições livres, embora indispensáveis, não são capazes, por si só, de elegerem os melhores. A boa democracia não vive apenas de eleições.

É preciso investir em aprimoramentos profundos nos sistemas de governo, eleitoral e partidário.

O problema é que a Constituição Federal de 1988 não apostou nas melhores soluções em nenhum destes três elementos.

O presidencialismo de coalizão se tornou uma usina permanente de crises.

O sistema eleitoral proporcional não permite ao eleitor ter o controle de quem elege com seu voto, torna as campanhas extremamente caras e gera uma enorme distância entre o eleitor e o representante, o que dificulta o controle.

O não emprego de um sistema eleitoral distrital para os órgãos políticos de representação coletiva mostrou-se um enorme equívoco.

Mandatos de oito anos para Senador não encontram justificativa em uma democracia moderna e funcional.

A possibilidade de ilimitadas reeleições aos cargos do Legislativo potencializa a perpetuação de dinastias políticas, contribuindo para que a atividade se torne um meio de sustento, antes de se afirmar como vocação para a promoção do bem comum.

A inexistência de obrigação de desincompatibilização eleitoral para os cargos legislativos incentiva os candidatos a abandonarem os seus mandatos precocemente, para disputarem cargos mais elevados.

Consequentemente, os votos recebidos migram para outros políticos, sem qualquer necessidade de consentimento por parte do eleitor, gerando deformidades na representação política.

Os partidos, irrigados com verbas públicas cada vez mais vultuosas, refratários à fiscalização efetiva e à democracia intrapartidária, comandados por caciques quase vitalícios, tornaram-se disfuncionais.

Os tópicos são exemplificativos e poderiam ser alargados. Certo é que, passados mais de trinta e cinco anos de vigência da Constituição Federal, transcorreu tempo, mais que suficiente, para se certificar de que muitas decisões tomadas não foram capazes de produzir os resultados que delas se esperavam.

A cidadania efetiva depende da qualidade da configuração institucional vigente.

Aprimorar o sistema, na busca de melhores soluções para o fortalecimento da democracia e para a obtenção dos objetivos fundamentais da República, é uma tarefa permanente.

E dela que os verdadeiros estadistas deveriam se ocupar, incessantemente.

O quão cidadã é uma Constituição é algo que não pode ser medido apenas por rótulos, nem mesmo pelo grau de cultura política e de cidadania de um povo.

A qualidade das normas previstas na Constituição desempenha um papel fundamental na construção de uma nação.

É algo que a polarização exacerbada, no mundo das bolhas políticas e dos algoritmos que moldam o pensamento de muitos, é incapaz de perceber.

Furar as bolhas e se libertar dos extremismos de qualquer natureza é a única saída.

É olhar por trás da coisa, é estar disposto a enxergar o que as aparências escondem.

__________

1 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 37.

2 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft der Verfassung. Freiburger Antrittsvorlesung. In: Recht und Staat, Heft 222. Tübingen: Mohr, 1959, p. 12.

3 DAHL, Robert. Poliarchy. New Haven: Yale University Press, 1973, cap. 4ss.

4 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 108.

5 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 41s.